http://dx.doi.org/10.5902/1984686X71150

Entre Portas Fechadas: frestas e brechas para pensar processos inclusivos na Educação

Between Closed Doors: cracks and gaps to think about inclusive processes in Education

Entre Puertas Cerradas: grietas y vacíos para pensar procesos inclusivos en Educación

Edna Rodrigues da Silva

Mestra pela Universidade Federal Fluminense, Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil

E-mail: ednarodriguesuff@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0559-4357

Cristiana Callai de Souza

Professora doutora na Universidade Federal Fluminense, Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil

E-mail: criscallai@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8721-9184

Maria Goretti Andrade Rodrigues

Professora doutora na Universidade Federal Fluminense, Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil

E-mail: mariagoretti@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3607-1946

Recebido em 29 de julho de 2022

Aprovado em 30 de janeiro de 2023

Publicado em 31 de março de 2023

RESUMO

Neste trabalho é tensionado o direito à educação para as crianças com deficiências, garantido nos documentos legais, com as narrativas das mães de crianças com diagnóstico do espectro autista e suas lutas para matricular as crianças na escola. Foi percebido que as interpretações que existem na lei, como “preferencialmente na rede regular de ensino”, deixam a responsabilidade também para outras instituições educativas, que muitas vezes, criam barreiras para matricular as crianças. Nas narrativas das mães, são recorrentes as portas fechadas, mas elas insistem, encontram frestas e brechas para habitar a escola. Mães que tem suas histórias de vida invisibilizadas, enfrentam lutas (a) morosas por uma educação inclusiva. Narrativas são utilizadas como recurso metodológico, inspiradas em Benjamin, Portelli e Certeau, e a dimensão do acontecimento a partir de Deleuze, para a produção de novas maquinações. A Educação Especial no Brasil é marcada pela medicalização, e os efeitos mais devastadores dessa cultura medicalizante são percebidos nos discursos de docentes que se apresentam como incapazes de ensinar crianças com deficiência. Urge que a escola desse tempo de agora considere as diferenças como condição de existência de cada um.

Palavras-chave: Mães; Narrativas; Processos Inclusivos.

ABSTRACT

In this work, the right to education for children with disabilities is tensioned, guaranteed in legal documents, with the narratives of mothers of children diagnosed with the autism spectrum and their struggles to enroll children in school. It was perceived that the interpretations that exist in the law, such as “preferably in the regular school system”, leave the responsibility to other educational institutions, which often create barriers to enrolling the children. In the mothers' narratives, closed doors are recurrent, but they insist, finding cracks and gaps to inhabit the school. Mothers whose life stories are made invisible face long struggles for an inclusive education. Narratives are used as a methodological resource, inspired by Benjamin, Portelli and Certeau, and the dimension of the happening from Deleuze's point of view, for the production of new machinations. Special Education in Brazil is marked by medicalization, and the most devastating effects of this medicalizing culture are perceived in the speeches of teachers who present themselves as incapable of teaching children with disabilities. It is urgent that the school of this time consider differences as a condition of existence of each one.

Keywords: Mothers; Narratives; Inclusive Processes.

RESUMEN

En este trabajo se tensiona el derecho a la educación de los niños con discapacidad, garantizado en documentos legales, con los relatos de madres de niños diagnosticados con el espectro autista y sus luchas por matricular a los niños en la escuela. Se percibió que las interpretaciones que existen en la ley, como “preferiblemente en el sistema escolar regular”, dejan la responsabilidad a otras instituciones educativas, lo que muchas veces crea barreras para la matrícula de los niños. En los relatos de las madres son recurrentes las puertas cerradas, pero ellas insisten, encontrando grietas y aberturas para habitar la escuela. Madres cuyas historias de vida son invisibilizadas enfrentan largas luchas por una educación inclusiva. Utilizamos las narrativas como recurso metodológico, inspirándonos en Benjamin, Portelli y Certeau, y la dimensión del acontecimiento desde el punto de vista de Deleuze, para la producción de nuevas maquinaciones. La Educación Especial en Brasil está marcada por la medicalización, y los efectos más devastadores de esta cultura medicalizante se perciben en los discursos de los docentes que se presentan como incapaces de enseñar a niños con discapacidad. Es urgente que la escuela de este tiempo considere las diferencias como condición de existencia de cada uno.

Palabras clave: Madres; Narrativas; Procesos Inclusivos.

Entre frestas e brechas

Os inúmeros embates travados por mães no cotidiano escolar nos fazem perceber/sentir que as lutas pelos processos de inclusão de pessoas com deficiências são lutas morosas, conflitos históricos que sinalizam o quanto a exclusão ainda está arraigada e tão presente em nossa sociedade.

Nesse cenário educacional excludente, trazemos histórias narradas por três mães, marcadas pela dor do preconceito, que contam suas histórias de lutas para matricular seus filhos nas escolas. A Educação para todos, é um direito garantido pelos documentos oficiais (conforme BRASIL, 2015; BRASIL, 2011; BRASIL, 2001; BRASIL, 1994), porém, o que ainda se tem encontrado são portas fechadas, escolas que não tem vagas, com o discurso de que ainda não tem profissionais qualificados para acolher os sujeitos com deficiência em seus espaços educativos.

O processo de inclusão caminha por entre as frestas e brechas no processo educativo, pois acolher a todos na sala de aula requer um ato “amoroso”. Um ato de luta contra o opressor que está dentro de nós reafirmando um paradigma de pensamento dominante hegemônico que oprime as minorias em suas marchas pela vida, o qual nos fala Paulo Freire (1987).

O acontecimento para Deleuze (2007), não é coisa nem estado de coisas, é efeito, e seu esplendor é o sentido. Em Lógica do Sentido (DELEUZE, 2007), o filósofo afirma que:

o acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera. (...) (em todas as suas determinações,) ele é o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece (DELEUZE, 2007, p. 152).

Nesse sentido, se o acontecimento não é o que acontece, não deveríamos perguntar, então, qual é o sentido de um acontecimento. Deleuze traz que “o acontecimento é o próprio sentido”. Segundo ele, “o acontecimento pertence essencialmente à linguagem, ele mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas” (DELEUZE, 2007, p. 23). E se o acontecimento deve ser compreendido no que acontece, é porque o sentido nunca é origem, “o sentido não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações” (DELEUZE, 2007, p. 75).

As narrativas dos acontecimentos trazidos dos encontros com as mães são visibilizadas no presente trabalho para que “novas maquinações” (DELEUZE, 2007) possam habitar o encontro com a alteridade de estudantes ditos com autismo na escola regular. Para tanto, em “fios teóricos” a seguir, apontamos autores que sustentam a narrativa como caminho metodológico para nos dar a ver a riqueza do cotidiano.

Adentramos então nas narrativas colhidas a partir do acontecimento do encontro com mães de estudantes diagnosticados com autismo em uma sala de aula de uma escola especializada, onde o encontro é entendido como um acontecimento. Problematizamos tais acontecimentos a partir de conceitos enfatizados por Skliar (2015), como normalização e “crisis” de acolhimento nos espaços educativos, à luz de documentos governamentais brasileiros, bem como de aspectos de medicalização da educação especial.

Fios teóricos

Ao trazer as narrativas das mães, encontramos com Walter Benjamin (1987), que diz que a narrativa é a arte de comunicação entre os sujeitos no cotidiano. A arte de comunicar está na forma de como os sujeitos contam suas histórias, fazendo aparecer cada detalhe do acontecimento, cada gesto, os cheiros, os detalhes nas imagens que compõe o lugar, é como fazer um artesanato com aquilo que conta.

Em sua tese sobre a história, Benjamin (1987) critica a forma linear e cronológica da historiografia burguesa, em que a escrita da história se apoia em uma concepção de tempo vazio e homogêneo, que apenas destaca a cronologia dos fatos. Em detrimento de ouvir as vozes daqueles que vivem os fatos, aqueles que passam pela experiência dos acontecimentos. Os narradores.

As histórias narradas, em lugar de apontar para uma “imagem eterna do passado”, constituem uma experiência com o passado. Quem conta, tem sempre algo a compartilhar. Os saberes. “Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os frutos que podem ser colhidos” (BENJAMIN, 1987, p. 214).

Nos escritos de Portelli (1997) – “O que faz a história oral diferente” –, o autor nos faz entender que os saberes se fazem vivos nas histórias de vida das pessoas que nos contam. As histórias são saberes de um povo, de uma sociedade, de um grupo de pessoas e de sujeitos que lutam.

Escutar as histórias é um momento de parar, de ouvir, de refletir e de aprender com o outro. As narrativas das histórias de vida são interpretações do vivido e, quando contadas, o narrador repensa sobre o que foi vivido. “Realmente, o importante é não ser a memória um depositário passivo de fatos, mas também um processo ativo de criação de significações” (PORTELLI, 1997, p. 33).

Ao narrar, a memória deixa de ser um depósito de lembranças e produz saberes que podem ser compartilhados. Para Certeau (1998) a memória “longe de ser um relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita” (1998, p. 163).

Contamos aquilo que passamos, aquilo que vivemos, contamos aquilo que pode ser comunicado aos outros. A presença das mães na sala de aula com seus filhos faz parte de uma história muitas vezes invisibilizadas. Essas mães habitam o cotidiano escolar, são “sujeitos ordinários” que escrevem “histórias múltiplas, sem autor e sem espectador” (CERTEAU, 1998, p. 171).

Trazemos as narrativas de uma pesquisa contextualizada em uma Escola Especializada, em 2016. As possibilidades de escolarização numa perspectiva inclusiva da Educação Especial não foram encontradas pelas mães no município em questão à época, apesar da legislação já em curso no Brasil. As mudanças na prática são morosas.

Mães narradoras

Ao entrarmos no cotidiano de uma escola de Educação Especial, da Associação de Pais e Amigos do Excepcional (APAE), na cidade de Pirapetinga/Minas Gerais, acompanhamos o processo de adaptação dos sujeitos da educação. Diariamente encontrávamos com mães, crianças e professora. Éramos todos aprendentes em sala de aula.

“Estar juntos”, pensar uma relação entre sujeitos, encontros. Estar juntos supõe entender o limite entre uma pessoa e outra, é pensar que cada sujeito tem suas singularidades e suas capacidades. Estar juntos pressupõe entender que não há apenas um modo de ser, estar e pensar. Estar juntos vai além de estar presente em sala de aula, inclui as singularidades que precisam estar presentes nos planejamentos pedagógicos.

Por isso, estar juntos não tem sentido em si mesmo, senão implicaria sentir e pensar o que acontece entre nós; estar juntos não tem valor moral por si; estar juntos inclui desde a amorosidade para alguém até a raiva, porém talvez não a indiferença; estar juntos fala de um limite (é uma relação entre dois corpos), não de uma fusão ou uma assimilação (de um corpo em outro corpo); estar juntos não provém de uma determinação de uma relação jurídica obrigada, mas da potencialidade e da singularidade de uma paixão ética; estar juntos refere mais ao político que à política; estar juntos supõe simultaneamente hospitalidade e hostilidade; estar juntos impede ou suspende ou vai além da ideia de tolerância (SKLIAR, 2011, p. 33).

Diante da presença das mães no cotidiano da escola com seus filhos, nos questionamos: Qual o sentido da presença das mães em sala de aula? As gestualidades das mães diante das aulas preparadas, das atividades pensadas para as crianças, em cada aula, nos provocavam a refletir sobre o trabalho pedagógico.

Ainda não entendíamos que a contribuição das mães em sala de aula tinha o sentido de uma mediação e tampouco, que a presença das mães na escola foi uma exigência para aceitar as crianças, devido ao diagnóstico de autismo dos filhos, pois não havia professor no momento para dar aulas para elas.

As mães contaram que tiveram que mudar dos lugares em que viviam para que as crianças pudessem frequentar a escola. Silvana morava em um sítio e Carina também. Então tiveram que morar na cidade para que os filhos tivessem acesso à escola. Mudar toda a rotina não foi fácil para elas.

Na época as crianças estavam com cinco anos de idade e precisavam ir para a escola. Então, tiveram que adaptar-se àquela nova situação, saindo dos sítios e mudando para a cidade, procurando casa em um bairro mais próximo da escola para atender aquela nova realidade.

Saíram em busca de uma escola para matricular os filhos. Carina e Silvana encontraram as portas fechadas e Cidinha encontrou as portas da escola entreabertas. Porque entreabertas? Cidinha conseguiu matricular o Denis em uma creche na cidade onde morava, Teresópolis, Estado do Rio de Janeiro, porém, a criança só poderia ficar uma hora por dia na escola.

A matrícula foi feita com um combinado, que a mãe levasse no primeiro horário e buscasse uma hora depois. Cidinha conta que pelo fato de não morar perto da escola, não ia embora, ficava sentada do lado de fora da sala de aula, esperando a saída.

Estar juntos vai além de estar presente em sala de aula, inclui as singularidades que precisam estar presentes nos planejamentos pedagógicos. Quem conta é a Cidinha:

O Denis começou a ir para a escola em Teresópolis/RJ. Foi quando a médica que cuidava do meu filho disse: Seu filho tem que ir para a creche, pois lá ele vai ter contato com outras crianças, vai ter interação, é o que precisa. Eu sempre fiquei com meu filho na escola, pois lá em Teresópolis, meu filho ainda era muito pequeno, eu tinha muito medo que outras crianças batessem nele. Meu filho não sabia falar. Denis tinha cinco anos quando começou a ir para a escola. Mas meu filho não podia ficar como as outras crianças ficavam, só podia ficar uma hora na escola. Eu ficava do lado de fora esperando meu filho. Depois de dois anos, consegui matricular o Denis na escola normal. Começou com uma hora de aula durante um ano. Depois passou para duas horas.

No ano de 2010, nós saímos de Teresópolis/RJ e mudamos para Pirapetinga/ MG e então matriculei meu filho na APAE. Na APAE, também acompanhava meu filho todos os dias. Eu ficava esperando. A professora já tinha mais experiência. E então eu ficava também na escola, pois qualquer coisa eu já estava ali para ajudar.

(CIDINHA, Histórias de Vida, 2016).

Silvana morava na zona rural da cidade, quando foi procurar uma escola para matricular Wilgner, em 2001 já havia um grupo de amigos na cidade de Pirapetinga/MG preocupados com a situação educacional das crianças com deficiências. Esse grupo de amigos percebeu que as crianças teriam que sair da cidade todos os dias e ir para Santo Antônio de Pádua/RJ, uma cidade próxima, para terem atendimentos de saúde e educação, também em uma escola especial. A dificuldade de algumas famílias era grande, pois envolvia a locomoção das crianças todos os dias em um percurso de estrada perigosa.

Em meio a uma demanda política por uma Escola de Educação Especial, por pressão de pais e professores, foi criada na cidade a Associação de Pais e Amigos do Excepcional, acolhendo no início de 2001, somente algumas crianças que tivessem necessidades educacionais especializadas.

Com o passar do tempo, essas mães conseguiram matricular seus filhos na escola de Educação Especial e se uniram, compartilhando suas experiências de vida. Silvana conta que não procurou vaga na escola regular e foi direto para APAE para matricular o Wilgner, porque a exigência era matricular em uma escola especial, com fonoaudióloga e fisioterapia. Como a APAE estava iniciando seu trabalho na comunidade, faltavam alguns profissionais como professores que atendessem a demanda que existia na cidade.

Naquele momento, Silvana encontrou algumas barreiras para matricular o Wilgner, por que seu filho não estava acostumado a ir à cidade. A família morava em um sítio e lá Wilgner estava acostumado com a tranquilidade e o silêncio do lugar, em meio à natureza.

Mas, a escola, era um lugar novo para ele, cheio de limites. Era necessário ficar somente dentro da sala de aula, então Wilgner precisou aprender a conviver com o novo. Foi preciso superar o barulho de crianças que corriam pelos corredores da escola. Foi preciso superar os barulhos dos motores dos carros, das buzinas e dos movimentos das ruas. Wilgner colocava as mãos nos ouvidos quando ia chegando à cidade e perto da escola.

Na escola, Silvana sorria pouco, o tempo que ficava com o Wilgner na escola, falava de seus sentimentos.

O Wilgner era uma criança muito agitada. Tipo assim, ele conseguia pegar algo que queria em cima de um armário que tinha na sala de aula. Mas em uma altura que só os adultos conseguiam pegar, mas ele como criança não deveria conseguir. Mas ele colocava uma cadeira em cima da outra para subir, lá. Então as professoras e a diretora diziam: ele não tem limite!

E pelo fato de não ter limite a gente não pode ser responsável por ele aqui dentro da escola. Então a diretora fez uma exigência, de que a mãe fosse e ficasse com seu filho na escola. E na época não tinha uma professora certa para trabalhar com eles, teve uma professora que se propôs a ficar somente um determinado horário com eles. Era apenas três dias por semana, das 07h00min até as 09h00min. A escola é lugar deles, mas foi uma luta para que meu filho pudesse frequentar a escola.

(Silvana, Histórias de vida, 2016).

Aqui nos remetemos à análise de Foucault sobre a escola como “lugar de corpos dóceis”. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1999, p. 163). O corpo que não entra no lugar de ser submetido fica “sem lugar” se a mãe não estiver junto.

Carina foi para a escola regular e diante do diagnóstico do filho, a escola regular fechou as portas dizendo: “não podemos aceitar seu filho, ele vai atrapalhar as outras crianças”. Carina não parou diante do primeiro desafio, seguiu sua caminhada em busca de escola, foi quando descobriu o trabalho da APAE na cidade. Quem conta é a Carina:

Primeiro eu tentei nas outras escolas, mas ninguém aceitou o meu filho. Diziam que como ele tinha o diagnóstico de autismo, ele não era para aquela escola. Naquele momento eles não sabiam como trabalhar com uma criança com esse tipo de transtorno (TEA). E a verdade, é que as professoras não sabiam mesmo como ensinar meu filho. Caso meu filho entrasse na escola, “a professora teria que parar e dar toda atenção para meu filho e a turma iria ter um atraso”, dizia a professora na época. Então, eu posso dizer: o preconceito é muito grande! Até hoje, não é? É uma situação que a gente tem que lutar muito! A gente encontra muito não. Se a gente não erguer mesmo a cabeça e falar assim, eu vou lutar, eu quero, não consegue não! É uma luta!

(CARINA, Histórias de Vida, 2016).

Diante dos “nãos” encontrados nas escolas regulares, Carina foi até a APAE, mas devido ao fato da Instituição de Pais e Amigos estar em seus primeiros passos na educação, Carina não encontrou vaga na escola para matricular seu filho.

Foi nesse momento que Carina, marcada pela dor do preconceito, pela luta por uma escola para seu filho, também decidiu ficar dentro da escola, acreditando que este seria o caminho para conseguir uma vaga para seu filho. O diagnóstico de “autismo infantil” foi o fator principal para que Carina encontrasse dificuldade para matricular seu filho na escola regular e na escola especial, enfrentando as barreiras nomeadas de “crisis” de acolhimento nos espaços educativos por Skliar (2015).

O direito à educação para as crianças com deficiência deve ser garantido pelo Estado, pois é dever do Estado a garantia do direito ao atendimento educacional especializado, preferencialmente, na rede regular de ensino. Assim, as interpretações que existem na lei como, “preferencialmente na rede regular de ensino”, deixam a responsabilidade também para outras instituições educativas.

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, p. 43).

Skliar (2015) nos provoca a re-pensar as políticas públicas de inclusão, para que todos possam estar juntos na educação. O autor questiona uma realidade que tem se tornado insuportável na vida das famílias que tem seus filhos com deficiência, pois, tem que conviver cotidianamente com barreiras preconceituosas no sistema educacional anulando-os como sujeitos capazes de produzir conhecimentos.

Entre as inúmeras perguntas diante de um cotidiano excludente, algo nos inquieta, nos provoca a re-pensar a escola, que de fato possa ser inclusiva. Como as escolas podem incluir, acolher todos em suas singularidades, sem exigir que se enquadrem em um padrão dito “normal” de comportamento e de aprendizado?

É nesse sentido que Skliar (2015) dá visibilidade ao conjunto de incertezas, dos problemas e dúvidas que surgem sobre o informe do direito da pessoa com deficiência nos processos educativos. Seria possível repensar os processos de inclusão educando os nossos olhares? Olhares esses moldados pelo padrão normativo social, marcados pelos estereótipos, preconceitos que reproduz a diferença, na suposta falta que procuramos encontrar no outro.

Em um sistema educacional excludente, em que o padrão de normalidade é pré-requisito para matricular crianças, jovens e adultos na escola, vemos o quanto precisamos avançar/lutar para que possamos “estar juntos” na educação.

O que temos encontrado em nossa realidade é a ausência dos direitos garantidos pelo Estado. Direitos que não são respeitados. Direitos que são ocultados. Sujeitos que são visibilizados como diferentes, considerados incapazes. Afirmar a incapacidade do outro é anular a condição do outro existir como pessoa de direitos.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015) assegura o direito à educação, “bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”, então por que a inclusão ainda é uma questão a ser tratada e não o nosso modo de ser ou estar no mundo com os outros?

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem (BRASIL. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, 2015, cap. V).

Skliar (2015) nos faz refletir sobre a “crisis” da linguagem, das barreiras atitudinais que surgem em diferentes espaços educativos, nas relações entre aqueles que são ditos “normais” e os ditos “diferentes” no meio no qual vivemos. Nesse contexto, chamado de “crisis” muitas vezes reproduzimos um discurso que reforça a exclusão. Que transporta para a deficiência a nossa responsabilidade do ato de educar. Que coloca no outro a (in) capacidade de aprender. Que culpabiliza o outro pelo suposto atraso escolar.

Esse modo de pensar reflete o ranço histórico excludente naturalizado em nós, quando pensamos; “não estamos preparados para acolher esse ou aquele em nossa sala de aula”; “não sabemos lidar com essa ou aquela deficiência”, “não temos materiais didáticos suficientes para trabalhar, eles não são capazes de aprender juntos com os outros”, “a escola não está preparada para recebê-los”.

Uno de los modos más eficaces y quizá menos atractivo para comenzar a hablar de “los tiempos que corren” en educación es remitirlo todo, absolutamente todo, a la vaga idea de “crisis”: crisis de las instituciones, crisis de las condiciones de trabajo, crisis en la profesionalización de los docentes, crisis de la didáctica, crisis intergeneracional, crisis de accesibilidad de la población a la enseñanza, crisis de la transmisión, crisis de la escuela, crisis de universalización, crisis de permanencia, crisis de repitencia, crisis en los paradigmas de aprendizaje, crisis curricular, etc. (SKLIAR, 2010, p.103).

A proposta de uma Educação para Todos emerge em uma Conferência Mundial em 1990, que aconteceu na Espanha, reafirmando o compromisso com a Educação Inclusiva (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). No texto oficial a declaração deixa claro que o “princípio fundamental” é que as escolas devem acolher todos, independente de suas dificuldades, porém, a inclusão tem sido um processo lento. Um processo de luta das minorias excluídas.

O princípio fundamental das escolas inclusivas consiste em todos os alunos aprenderem juntos, sempre que possível, independentemente das dificuldades e das diferenças que apresentem. Estas escolas devem reconhecer e satisfazer as necessidades diversas dos seus alunos, adaptando-se aos vários estilos e ritmos de aprendizagem, de modo a garantir um bom nível de educação para todos, através de currículos adequados, de uma boa organização escolar, de estratégias pedagógicas, de utilização de recursos e de uma cooperação com as respectivas comunidades. É preciso, portanto, um conjunto de apoios e de serviços para satisfazer o conjunto de necessidades especiais dentro da escola (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994, p. 11).

Skliar (2015) em “Incluir a diferença?” mostra-nos os questionamentos que nos atravessam no dia a dia, quando temos que lutar por uma escola para um filho que tem alguma deficiência, sabendo que essa luta não é só dessas mães moradoras de uma cidade pequena. E sim uma questão social que atravessa as discussões de diferentes países.

Quantas pessoas com deficiência poderiam estar no sistema educacional e não estão? Onde estão esses meninos, essas meninas, esses jovens com deficiência que não estão em nenhuma instituição conhecida? Quantas pessoas com deficiência estão no sistema educacional? E como essas pessoas estão, ou seja: o que está acontecendo com a sua educação? Em que medida houve um abandono desta população ao não se encontrar as singularidades pedagógicas adequadas nas instituições comuns, nas ditas escolas regulares (escolas não especiais)? (SKLIAR, 2015, p. 13).

A proposta de uma Educação para Todos emerge em uma Conferência Mundial em 1990, que aconteceu na Espanha, reafirmando o compromisso com a Educação Inclusiva (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). No texto oficial a declaração deixa claro que o “princípio fundamental” é que as escolas devem acolher todos, independente de suas dificuldades, porém, a inclusão tem sido um processo lento. Um processo de luta das minorias excluídas.

Estar juntos na Educação requer de nós uma disponibilidade interna capaz de entender que cada sujeito tem um tempo para aprender. O tempo de um não é o mesmo do outro e isso precisa ser respeitado, mas o currículo escolar não foi pensado para as singularidades. Foi pensado em um tempo cronometrado “dito” tempo normal de todos aprenderem.

Nacinovic & Rodrigues (2020) pontuam a Educação Especial no Brasil marcada pela medicalização. O termo “educação especial” está fortemente vinculado ao sistema de educação que prioriza os modelos de separação dos/as alunos/as com deficiência dos/as demais, seja através de escolas especiais, classes especiais ou outro arranjo que impossibilite o convívio e a presença desses/as alunos/as em turmas regulares. “O principal foco desse modelo é oferecer um ensino pautado em atividades desarticuladas das demais pessoas de mesma idade” (NACINOVIC & RODRIGUES, 2020, p. 210).

A forte influência do campo médico na educação de pessoas com deficiência no Brasil deu origem a essas instituições de cunho paternalista, nas quais não se faziam distinções claras entre o tratamento médico e a abordagem pedagógica (Mendes, 2010). Diversas iniciativas tiveram como ponto de partida de suas ações a atenção voltada para a dimensão corporal do ser humano, motivo pelo qual a avaliação médica do/a paciente aparecia como um dos critérios para admiti-los/as como alunos/as. Como consequência desse arranjo, habitavam esses espaços especiais todos/as aqueles/as que não atendiam às exigências de um padrão normativo (NACINOVIC & RODRIGUES, 2020, p. 211).

Um modelo de suporte educacional que toma como ponto de partida os aspectos médicos das diferenças entre pessoas, desconsidera as infinitas facetas de um ser humano, aprisiona em torno de categorias diagnósticas singularidades que nunca se encaixarão em listas. A medicalização da educação desapropria a escola de seu genuíno saber, esvazia a potência do fazer docente e o relega a um lugar de coadjuvante. Os efeitos mais devastadores dessa cultura medicalizante são percebidos nos discursos de docentes que se apresentam como incapazes de ensinar estudantes com deficiência e para isso as mais diversas justificativas são apresentadas, desde a inexistência de preparação até a alegação de que aquele/a aluno/a não é seu/sua, mas sim da educação especial. Ora, há que se questionar: é possível se preparar para toda possibilidade de existência humana? A produção dessa subjetividade docente despotencializada pela ideia da existência de um/a profissional especialista, supostamente preparado/a para o fenômeno da diversidade humana, é um ponto crucial para se pensar em estratégias de desmedicalização, de acordo com (Referência retirada para preservar o anonimato).

Traços finais

O que nos passa, encarna em nós o sentido da própria existência nos espaços e nos tempos em que vivemos uns com os outros. É o sentido que damos a nossa própria vida, diante daquilo que nos acontece, que podemos chamar de experiência.

É espantoso que, com o passar do tempo, nós vamos perdendo a capacidade de sentir as crianças em suas diferenças, individualidades, potencialidades e com um olhar superficial e devastador sentenciamos a vida dos sujeitos, afinal, a exclusão é do excluído, embutidos em regimes de verdade vamos categorizando a vida.

Ao naturalizarmos a “normalidade”, aderimos ao padrão sem ao menos problematizar as vozes plurais, sem sentir os efeitos que elas produzem, o que elas nos fazem pensar e as implicações de nossas práticas e discursos na formação desse ser humano que se encontra na escola, dia após dia.

Nesse projeto de escola, a criança continua a ser comparada a alguma coisa que ela não é, e que também não está nela, logo, a “falta” ganha visibilidade. Referimo-nos a um discurso romântico construído na Modernidade, a um ideal de criança e infância que ainda insiste em reinar em pleno século XXI.

Envoltos na engrenagem da maquinaria escolar somos submetidos ao aparato de controle e regulação, que tem por objetivo produzir subjetividades dóceis, disciplinadas e obedientes, retratando uma realidade violenta e punitiva. O controle disciplinar determina onde cada sujeito deve ficar ao ser identificado sua singularidade como falta. E assim são aprisionados os sujeitos que de certa forma não se encaixam nas normas criadas para este controle social, então, separa-se, polariza-se os sujeitos de forma colonizadora.

A sociedade inventa, cria, produz uma visão maléfica do “outro” e indica o lugar onde esse ou aquele deve ficar que são nas instituições disciplinares específicas. Encontrar as mães na escola foi afirmar um compromisso com a educação, sobretudo uma educação que abra as portas, que não quer saber quem é este que chega à escola, que interroga o outro. A escola é um lugar que deve ser habitado por todos. A escola é um lugar de encontros, lugar onde os direitos das pessoas devem ser respeitados e garantidos por todos. Para isso é necessário educar os nossos modos de sentir/pensar/ver para além dos padrões sociais dominantes.

É nesse sentido que precisamos re-pensar a escola. Precisamos de uma escola que considera as diferenças como condição de existência de cada um. Uma escola que abra as portas “Para Todos”. Uma escola que acolha a singularidade como o modo de ser e estar no mundo de cada um.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaio sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas vol. 01. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1987.

BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Estatuto da Pessoa com Deficiência. Brasília, DF: 2015. Disponível em:.http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm

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