A educação de surdos e a proposta de alfabetização fônica: discursos e controvérsias na proposta de um Plano Nacional de Alfabetização (PNA)

 

Deaf people education and the phonic literacy proposal: discourses and controversies in a National Literacy Plan (NLP)

Educación de sordos y la propuesta de alfabetización fónica: discursos y controversias en un plan nacional de alfabetización (PNA)

 

Cleuzilaine Vieira Silva

Universidade Federal de São João Del Rei- UFSJ, MG, Brasil.

cleuzilaine@ufsj.edu.br

 

Maria de Fátima Cardoso Gomes

Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG, MG, Brasil.

mafacg@gmail.com

 

 

Recebido em 01 de abril de 2022

Aprovado em 18 de dezembro de 2024

Publicado em 20 de dezembro  de 2024

 

 

RESUMO

O presente artigo propõe, por meio de uma revisão de literatura, atingir o seguinte objetivo: analisar de forma crítica e discursiva a proposta de alfabetização fônica e sua inclusão em um Plano Nacional de Alfabetização idealizado por Capovilla (2020) no artigo Intitulado “Por um Plano Nacional de Alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição biológica”. Para tanto, são apresentadas, com base na Teoria Histórico-Cultural, representada por Vigotski, e na Análise do Discurso tendo fundamento em Bakhtin e seu Círculo, argumentações que demonstram a inviabilidade do método fônico, bem como as incongruências com relação à aplicação desse método na educação dos surdos. Os resultados dessa discussão são apresentados por meio de um diálogo fecundo acerca de diferentes visões sobre alfabetização e/ou letramentos em que são esclarecidas as divergências entre a proposta de alfabetização fônica e as tendências discutidas com relação ao termo alfabetização e ao termo letramento na educação de modo geral, e, também na educação de surdos.

Palavras-chave: Alfabetização fônica; Educação de surdos; Letramentos.

 

 

ABSTRACT

This article intends, through a bibliographic review, analyze critically and discursively the phonic literacy proposal and its inclusion in a National Literacy Plan (NLP), conceived by Capovilla (2020) in the article: “Por um Plano Nacional de Alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição biológica”. For this purpose, the article presents arguments that demonstrate the impracticability of the phonic method, as well as inconsistencies of this method in its application to deaf people. The arguments are based on the Historic-Cultural theory, represented by Vigotski, and the Discourse Analysis, represented by Bakhtin and his circle. This article shows the result in a fruitful dialog about different perspectives about literacy and/or critical literacy. We clarify divergences between the phonic literacy proposal and trends related to the terms literacy and critical literacy in education in general and, also, in the education of deaf people.

Keywords: Phonic literacy; Deaf people education; Literacies.

 

 

RESUMEN

El presente artículo propone, por medio de una revisión bibliográfica, el objetivo de analizar, de forma crítica y discursiva, la propuesta de alfabetización fónica y su inclusión en el Plan Nacional de Alfabetización idealizado por Capovilla (2020) en el artículo: “Por um Plano Nacional de Alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição biológica”. Para eso, son presentadas – con base en la Teoría Histórico-Cultural, representada por Vigotski, y en la Análisis del Discurso, con base en Bakhtin y su círculo – argumentaciones que demuestran la impracticabilidad del método fónico, así como las incongruencias de la aplicación de ese método en la educación de los sordos. Los resultados de esa discusión son presentados por un diálogo fecundo acerca de diferentes perspectivas de la alfabetización y/o letramientos en que son esclarecidas las divergencias entre la propuesta de alfabetización fónica y las tendencias discutidas con relación al los términos alfabetización y letramiento en la educación en general y también en la educación de los sordos.

Palabras clave: Alfabetización fónica; Educación de sordos; Alfabetizaciones.


Introdução

O presente artigo propõe, por meio de uma revisão de literatura  com base na teoria Histórico-cultural (VIGOTSKI, 1926/2003,1924/2012, 2018, 2021) e na Teoria Enunciativa- discursiva (BAKHTIN, 1929/2014), analisar,  de forma crítica e discursiva, a proposta de alfabetização fônica e sua inclusão em um Plano de Nacional de Alfabetização idealizado por Capovilla (2020) no artigo Intitulado “Por um Plano Nacional de Alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição Biológica”, em que são apresentadas argumentações a favor da alfabetização fônica para crianças com quadro de comprometimento neurossensorial, neuromotor e neurolinguístico.

Nesse sentido, problematizamos o que representa a adoção do método fônico na alfabetização de crianças surdas, cegas e surdo-cegas, ideia defendida por Capovilla (2020), e apresentamos contra-palavras a partir da teoria Histórico-cultural representada por Vigotski e da Análise do Discurso tendo fundamento em Bakhtin e seu Círculo.

Com base na teoria Bakhtiniana, é possível relacionar o aspecto funcional da linguagem entre os sujeitos, situando o locutor e interlocutor no processo de interação por meio da enunciação. Já a teoria de Vigotski enfatiza a vivência (perejivánie) na constituição histórica dos sujeitos de pesquisa, abrangendo a cultura ouvinte e a cultura surda, e como as relações entre linguagem e cultura se unem na construção do conhecimento por meio das linguagens em uso, Libras e Língua Portuguesa.  

De acordo com Freitas (1994), Vigotski e Bakhtin se assemelham em muitos aspectos, entre eles o fato de os dois autores se basearem no referencial teórico do materialismo histórico-dialético. Que, conforme a autora:

 

Partindo da dialética, construíram uma visão totalizante, não fragmentada da realidade, uma perspectiva histórica e uma compreensão do homem como um conjunto de relações sociais. Diante do marxismo – embora marxistas – tiveram uma posição antidogmática e anti-mecanicista, opondo-se à ideologia oficial do stalinismo. Identificaram-se com um marxismo que entende o homem como sujeito social da e na história. (FREITAS, 1994, p. 157).

 

 Ao ler os escritos dos dois teóricos, são perceptíveis os traços do materialismo histórico-dialético, o que justifica seus interesses pelas relações sociais, interacionais e discursivas, a preocupação com o desenvolvimento, a formação da pessoa e da consciência.

Para Freitas (2007), as teorias de Vigotski e Bakhtin são fundamentadas no materialismo histórico-dialético e foram gestadas a partir de suas insatisfações e críticas em relação aos reducionismos das concepções empiristas e idealistas, indicando perspectivas de superá-los. Nesse sentido, Freitas (2007) destaca que Vigotski, em sua crítica aos modelos psicológicos objetivistas e subjetivistas, elaborou sua teoria social do desenvolvimento, compreendendo o ser humano como constituído não a partir dos fenômenos internos ou como produto de um reflexo passivo do meio, mas construído nas relações sociais via linguagem.

Já Bakhtin, segundo Freitas (2007), critica a linguística de seu tempo, a qual valorizava na linguagem apenas os sistemas abstratos de normas ou a expressão monológica isolada. Para superar essas posições fragmentárias, o referido autor considera que a interação verbal é a realidade fundamental da língua e constrói, assim, o que chamou de uma metalinguística ou translinguística. Além disso, Bakhtin “funda a teoria do signo e do significado em que a consciência do falante não se orienta pelo sistema da língua, mas pelo novo, pelo irrepetível do enunciado, pelo concreto de sua singularidade, pelo seu horizonte social avaliativo” (FARACO, 2009, p. 23).

Assim, pontuamos neste trabalho contrastes e discussões que abrem um precedente para o debate sobre a educação para surdos e sobre o (PNA) Plano Nacional de Alfabetização, no sentido de refletir por meio da palavra, que “é o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2014, p. 36). Dessa forma, abordamos neste texto as visões de alfabetização e letramento segundo Soares (2020), e letramentos sociais e/ou práticas letradas segundo Street (2014) e Kleiman (1995), no sentido de compreender as tendências discutidas na educação sobre alfabetização e sobre letramento, e como essas práticas educacionais podem ser abordadas com relação às crianças surdas.

Problematizando o Método Fônico para crianças surdas e surdo-cegas

 

Com as discussões sobre a implantação da educação inclusiva por meio do decreto nº 5.606/2005, que regulamenta a Lei Libras e dá providências com relação à inclusão e ao ensino bilíngue, e, depois, com o Decreto  n° 6.571/2008, incorporado pelo Decreto  n° 7.611/2011, que visa ao desenvolvimento inclusivo dos sistemas públicos de ensino e define o atendimento educacional especializado, muitas escolas de surdos foram fechadas ou ameaçadas de serem encerradas para a implantação da modalidade de ensino inclusivo. Na época, o professor Fernando Capovilla desenvolvia um Programa de Avaliação Nacional do Desenvolvimento Escolar do Surdo Brasileiro (PANDESP), o que motivou as federações de surdos a convidá-lo para comentar a descontinuação das escolas bilíngues para surdos e a implantação da modalidade de educação inclusiva. Em 2009, fruto do programa de pesquisa mencionado, o professor Fernando Capovilla publicou, na Revista Pátio (ano XIII, maio-julho 2009, número 50, pp, 24-25), o artigo intitulado: “Avaliação escolar e políticas públicas de Educação para os alunos não ouvintes”.

O Artigo em questão, embora seja produto de uma pesquisa, não traz dados completos sobre como as escolas foram selecionadas, qual o perfil detalhado e a quantidade de escolas por nível (ensino fundamental, médio e superior) que participaram da pesquisa; em quais estados essas escolas estavam situadas; como foram realizadas as avaliações; além de não apresentar a quantidade total dos alunos avaliados nem o perfil desses discentes (era apresentada apenas uma estimativa de mais de 8.000 surdos de quinze estados brasileiros).

No artigo “Por um plano Nacional de Alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição biológica”, publicado também pelo Professor Fernando Capovilla, em 2020, algumas informações do artigo de Capovilla (2009) sobre o programa PANDESP foram alteradas, como o número de alunos pesquisados, que passou a ser 9.200 estudantes surdos de todas as regiões do Brasil. Os estados continuaram sem divulgação, sendo acrescentado que a pesquisa comparou escolas bilíngues especiais e escolas monolíngues comuns e dados da Prova Brasil adaptada para Libras.

Embora Capovilla (2020) apresente alguns dados novos em complementação ao artigo publicado em 2009, e se coloque em defesa de escolas bilíngues para surdos, suas análises ainda são baseadas em um modelo clínico terapêutico da surdez, o qual apresenta a alfabetização fônica e a plasticidade neural como central para o desenvolvimento de crianças surdas.  

Dessa maneira, passemos para a análise do artigo intitulado “Por um Plano Nacional de Alfabetização (PNA) capaz de respeitar diferenças de língua e constituição biológica”, em que Capovilla (2020) defende a necessidade de um Plano Nacional de Alfabetização para crianças com quadro de comprometimento neurossensorial, o que abrange pessoas surdas e surdocegas, bem como aquelas com limitações neuromotoras. Em suas palavras: 

 

Um Plano Nacional de Alfabetização precisa incluir a alfabetização de crianças com quadros de comprometimento neurossensorial (e.g., surdos, surdocegos), neuromotor (e.g., paralisia cerebral), e neurolinguístico (e.g., dislexia do desenvolvimento), bem como com múltiplos comprometimentos. Um Plano Nacional de Alfabetização precisa defender o uso de recursos e adaptações e procedimentos especiais para a alfabetização competente dessas populações. O Plano deve abordar essa alfabetização à luz das neurociências cognitivas, com especial atenção à plasticidade neural, e propor intervenção precoce já na educação infantil para desenvolver todos os pré-requisitos à alfabetização, de modo a assegurar sua disponibilidade para a alfabetização escolar no 1º ano do ensino fundamental (CAPOVILLA, 2020, p. 209).

 

Concordamos que um Plano Nacional de Alfabetização precisa defender o uso de recursos com adaptações e procedimentos especiais para a população de pessoas com deficiência, no entanto, é preciso um plano nacional não apenas de alfabetização, mas também de letramentos, termo que explicitaremos mais adiante neste trabalho.

Para a análise do artigo escrito por Capovilla (2020), dividimos nossa discussão em três tópicos que são de extrema relevância para entendermos as controvérsias e conflitos que o autor propõe em um Plano Nacional de Alfabetização:

1-    o primeiro diz respeito à importância dada por Capovilla (2020) ao fator orgânico como fundamental ao desenvolvimento do ser humano, baseando-se quase que inteiramente na plasticidade neural, sendo a relação da pessoa com o meio um fator coadjuvante na questão;

2-    o segundo diz respeito à proposta da alfabetização fônica, que inclui a oralização para crianças com surdez congênita profunda e a discussão acerca da Libras como uma metalinguagem para a aprendizagem do Português;

3-    no terceiro discutimos as concepções da alfabetização e/ou Letramentos.

Discordamos de Capovilla (2020) quando este afirma que o tipo de alfabetização proposta para a população de crianças com quadros de comprometimento neurossensorial, neuromotor e neurolinguístico deve ser feita à luz das neurociências cognitivas, levando em consideração o fator orgânico para o desenvolvimento da alfabetização, e que todos os grupos citados devem ter o mesmo tipo de recurso, no caso, o método fônico, para alcançar um desenvolvimento considerado aceitável de domínio da fala e da escrita. Nesse ponto, tendo como base a Teoria Histórico-cultural, vemos o retrocesso de Capovilla (2020) em considerar o fator orgânico como preponderante para a constituição do ser humano.

A ideia de Capovilla (2020) sobre a plasticidade neural como central na questão do desenvolvimento é refutável, uma vez que ele desconsidera os fatores social, histórico e cultural como aspectos constituintes do desenvolvimento do ser humano como humano. Segundo Vigotski (1924/2012, p. 26), “na medida em que o desenvolvimento orgânico é realizado em um ambiente cultural, ele é transformado em um processo biológico historicamente condicionado”. Assim, o desenvolvimento da linguagem nas crianças pode ser um bom exemplo da fusão dos dois níveis de desenvolvimento: o natural e o cultural. Vigotski (1924/2012) rejeita a ideia do desenvolvimento humano tendo como base apenas a superação orgânica e biológica da pessoa, uma vez que essa ideia está associada a uma abordagem naturalista do desenvolvimento humano. Capovilla (2020) ressalta que, com base na relação de plasticidade neural,

 

[...] se as crianças com surdez congênita profunda forem expostas à língua de sinais somente aos 5 anos de idade, elas serão significativamente menos fluentes que aquelas expostas à língua de sinais desde seu nascimento. Se elas forem privadas de acesso à língua de sinais até os 12 anos de idade, elas nunca atingirão proficiência plena em língua de sinais, mesmo que venham a ser expostas diariamente a essa língua pelos próximos 30 anos de vida. (CAPOVILLA, 2020, p. 209).

 

Ao propor a argumentação acima, Capovilla abre um precedente para discutirmos a relação da hereditariedade e do meio. Na visão do autor, esses dois aspectos por si só já solucionam a questão do desenvolvimento infantil, já que ele se apoia na questão da plasticidade neural e na relação das crianças surdas com o meio para a fluência da Libras. No entanto, conforme aponta Vigotski (2018, p. 43), fazer esse tipo de discussão é estar ainda com uma visão de análise de elementos isolados e não de unidade de análise. Nessa direção, Vigotski define que:

 

[...] a análise que decompõe em elementos é definida pelo fato de o elemento não conter propriedades do todo. Já a unidade é definida pelo fato de que é a parte de um todo que contém, mesmo que de forma embrionária, todas as características fundamentais próprias do todo (VIGOSTKI, 2018, p. 40).

 

 

Dessa forma, tendo em vista a discussão proposta por Vigotski, quando Capovilla (2020) se apoia na plasticidade neural e no meio, ele se limita a discussões que, para Vigotski (2018), dizem respeito ao inatismo e ao empirismo, já que “a fala da criança se desenvolve, por um lado, com base nas características hereditárias embrionárias e, por outro, sob a influência do meio (p. 42)”. Vigotski acrescenta que, basear-se na hereditariedade e no meio para explicar o desenvolvimento da fala não permite decompor esses dois aspectos, ou seja, eles não têm em si partes de um todo, “porque os caracteres embrionários hereditários não contêm em si, necessariamente, o surgimento da fala e o meio externo não contém em si a necessidade do surgimento da fala na criança” (VIGOTSKI, 2018, p. 42-43).  

Vigotski (2018) ainda afirma que a infertilidade do método que decompõe em elementos está no fato de pressupor que qualquer aspecto do desenvolvimento da criança se mostrará sempre dependente da hereditariedade e do meio, ou seja, as explicações sobre o desenvolvimento infantil não conseguem ser aprofundadas porque estão presas apenas em dois aspectos sem saída, como explicita Vigotski (2018, p. 43): “a fala se desenvolve da relação mútua entre hereditariedade e meio. Mas o mesmo pode ser dito em relação a outras características da criança. O crescimento depende da influência do meio e da hereditariedade; o peso da criança também depende disso”, tudo sempre estará relacionado à hereditariedade e ao meio. Na proposição de Vigotski (2018, p. 43), é preciso analisar o desenvolvimento da fala da criança

 

[...] a partir do fato que nela existem momentos isolados que representam unidades e não elementos, ou seja, que representam momentos que conservam, mesmo que de forma primária, características próprias da fala, assim como uma celulazinha conserva, de forma primária, características próprias do organismo como um todo. 

 

Embora o meio seja fonte do desenvolvimento manifestado pelas vivências, em que o desenvolvimento cultural e as novas formações podem acontecer, o que conta são as relações que as crianças constroem com o meio, não sendo, portanto, o meio que garante o seu desenvolvimento.

Para explicar o desenvolvimento da fala da criança, Vigotski relaciona a unidade fala-pensamento em que a principal característica reside na significação, o que, conforme Mahn (2019), é um fenômeno criado por essa unidade como um sistema de significação de fala/pensamento. Assim, podemos argumentar que não há respaldo para fazer as crianças surdas aprenderem os sons se estes não possuem significado, ou mesmo, aprenderem os sinais sem que estes façam sentido e/ou tenham significados para elas. Nas palavras de Vigotski:

 

A diferença entre o som da fala humana e os sons da natureza é que, em sua essência, os sons com a ajuda dos quais transmitimos um determinado sentido são uma unidade da fala e não um mero som, mas um som significante, ou seja, um som que tem a característica de transmitir um significado (VIGOTSKI, 2018, p. 44).

 

 Para Vigotski, a constituição biológica[1], cultural e social contribui de forma dialética para o desenvolvimento humano, inclusive, ele propõe unidades dialéticas que refratam, que modificam a constituição de um todo e carregam as características dele, como: afeto-cognição; fala-pensamento; instrução-desenvolvimento; individual-social; interno-externo; pessoa-meio. Conforme Vigotski (2018, p. 37-38), “um método de estudo da unidade do desenvolvimento abrange não apenas um aspecto do organismo, da personalidade da criança, mas todos os aspectos de um e de outro”. Quando Capovilla (2020) propõe a construção de suas argumentações a partir das neurociências cognitivas e, mais especificamente, a partir da plasticidade neural, ele leva em consideração, principalmente, a memória e estar em um ambiente precocemente para que essa memória seja ativada, como se a mente da criança fosse uma esponja preparada para se acrescentar o conhecimento e quanto mais precoce melhor. É visível que Capovilla (2020) não traz em seu texto as relações da memória e do pensamento como parte de um todo, nem tampouco as relações da memória com as outras funções psicológicas superiores, de origem cultural, como atenção voluntária, percepção, fala, emoção, formação de conceitos.

Desse modo, vale entender que o que Capovilla (2020) chama de plasticidade neural, Vigotski chama de plasticidade da matéria. Vigotski (1926/2003, p. 143), afirma que:

 

A plasticidade constitui uma das propriedades fundamentais e primárias de toda a matéria. Toda substância é mais ou menos plástica, isto é, possui a propriedade de se modificar sob a ação de influências, muda a estrutura e a disposição das moléculas e conserva vestígios dessas mudanças.

 

 

No caso dos seres humanos, Vigotski (1926/2003) salienta que nossa substância nervosa é, certamente, a mais plástica de todas as que conhecemos na natureza, podendo desenvolver, como nenhuma outra, a capacidade para as mudanças, para a acumulação de suas marcas e para a predisposição, que constituem a base das funções psicológicas superiores. Ainda conforme Vigotski (1926/2003), no caso das pesquisas sobre a memória, elas demonstraram que essa função trabalha com maior intensidade e eficiência quando é atraída e orientada por certo interesse. “Aquilo que observamos com grande interesse é mais bem assimilado. Consideramos o interesse como uma inclinação interna que orienta nossas forças para a pesquisa de um objeto (p. 148)”. Ainda de acordo com Vigotski, a memória trabalha intensamente junto com o sistema de sentidos e significados das palavras, ou seja, com a unidade pensamento-fala, e há que saber quais são as motivações afetivo-volitivas por detrás de cada pensamento.

Nesse sentido, é imprescindível entender que nós, seres humanos, somos seres que nos constituímos de formas singulares, sendo assim, também desenvolvemos interesses por objetos, alimentos, áreas profissionais/ ou de atuação, entre outros aspectos de formas diferentes, e que, devido a essas peculiaridades, nossa memória assimila a ponto de preservar mais facilmente fatos, acontecimentos e conhecimentos quando estes são também de nosso interesse ou que, ao recordar, despertam em nós emoções. Dessa forma, Vigotski (1926/2003, p. 149) orienta que, “para obter uma boa assimilação, o interesse sempre deve estar coordenado com a recordação. Se o professor desejar que algo seja bem assimilado, deve se preocupar em torná-lo interessante”.

 

Nada se recorda tanto como aquilo que, em um determinado momento, esteve ligado ao prazer. Esta parece ser a expressão da tendência biológica do organismo, ou seja, reter e reproduzir vivências relacionadas ao prazer. Por isso, transforma-se em regra pedagógica a exigência de uma certa vivência emocional, através da qual deve passar todo o material didático. Além de preparar as correspondentes forças da inteligência, o professor sempre deve se preocupar com as correspondentes forças do sentimento. Não se esqueçam de estimular o sentimento do aluno sempre que quiserem que algo fique enraizado em sua mente. Dizemos com frequência: ‘Lembro-me disso porque me surpreendeu na infância’ (VIGOTSKI, 1926/2003, p. 149).

 

Além disso, tendo a singularidade, as emoções e as diferenças culturais como uma temática importante é que discutimos, por meio de um olhar crítico, a proposta do método fônico apresentada por Capovilla (2020), questionando se esse método seria ou não eficaz ao conjunto de pessoas.

Diferentes pesquisadores que abordam a temática da surdez (FERNANDES, 2015; LAGE, BEGROW; OLIVEIRA, 2020; SKLIAR, 2016;) argumentam que incluir a oralização para crianças com surdez congênita profunda como parte de um plano de alfabetização é, além de um retrocesso, considerar a surdez apenas do ponto de vista clínico terapêutico, desconsiderando toda a luta da comunidade surda contra a imposição do método oral. Conforme Lage; Begrow; Oliveira (2020, p. 79):

 

A defesa da PNA de que a abordagem metodológica pautada na instrução fônica e na consciência fonológica é superior a qualquer outra e deve ser tomada como princípio na fase inicial da alfabetização é medicalizante porque reduz a complexidade do processo de alfabetização e desconsidera a heterogeneidade que marca as diferentes formas de aprender tanto da criança ouvinte quanto da criança surda.

 

Embora Capovilla (2020) afirme defender que um “plano de alfabetização deve propor que sejam feitas adaptações necessárias às diversas combinações entre diferenças culturais de um lado e diferentes combinações entre diferenças constitucionais de outro lado” (CAPOVILLA, p. 209-210), o pesquisador afirma, também, que, “no caso da criança surda, ela aprende a usar Libras como metalinguagem para analisar as palavras em morfemas semânticos” (CAPOVILLA, 2020, p. 210), relegando a Libras à função de um acessório para o alcance da leitura e da escrita pelas crianças surdas, e não a considerando como uma língua com uma constituição histórica, social e cultural da comunidade surda.

Além disso, nota-se o quanto o modelo clínico-terapêutico se faz presente nos discursos de Capovilla (2020), já que, para fazer suas análises sobre a família dos participantes surdos no estudo do PANDESP em 2009, o pesquisador usou prontuários médicos ao invés de utilizar instrumentos de pesquisa de cunho psicossocial ou educativo.

Capovilla (2020, p. 211) afirmar que,

 

[...] segundo a filosofia educacional do Bilinguismo a alfabetização da criança surda não deve almejar que ela venha a articular a fala, de modo algum. Espera-se apenas que ela venha a ser capaz de ler silenciosamente com precisão; e a escrever com precisão ortográfica e correção semântica.

 

Essa postulação de Capovilla com relação ao uso da Libras para a aprendizagem do português, seja por meio da leitura orofacial ou escrita, em que o pesquisador ressalta a importância do aprendizado das regras gramaticais e ortográficas pelo surdo, assemelha-se ao típico mascaramento de práticas oralistas, em que se defende a língua de sinais com o propósito de alcançar a língua oral. Neste ponto Skliar (2016, p. 10) nos esclarece que:

 

Ainda que o modelo clínico seja entendido como o disciplinamento do comportamento e do corpo para produzir surdos aceitáveis para a sociedade dos ouvintes, em algumas representações ilusoriamente antropológicas, o discurso parece ser ou é o mesmo. A língua de sinais é, para ambos os casos, um meio eficaz para resolver a questão da oralidade dos surdos, mas não, por exemplo, um caminho para a construção de uma política das identidades surdas. Também sabemos que determinadas representações sobre a educação bilíngue – e não somente no que se refere ao caso dos surdos – podem se constituir numa ferramenta conservadora e politicamente eficaz para produzir uma ideologia e uma prática orientada para o monologismo: utilizar a primeira língua do aluno para “acabar” rapidamente com ela, com o objetivo de “alcançar” a língua oficial.

 

Góes (2012), em concordância com Behares; Massone e Curiel (1990), salienta que a educação oralista assume uma concepção do surdo como um paciente com deficiência auditiva, que não ouve, mas que pode fazer leitura orofacial.As críticas a esse método não se vinculam ao objetivo de ensinar a língua majoritária, mas ao fato de que esta é tomada como meta e meio exclusivos.

É notório que Capovilla (2020) ressalta a necessidade de domínio das regras gramaticais e ortográficas do Português por todos, afirmando que “um Plano Nacional de Alfabetização precisa considerar, como denominador comum a todas essas crianças, o fato de que todas elas terão de aprender a ler e escrever a Língua Portuguesa, já que são todas são cidadãs brasileiras” (p. 211). No entanto, a questão que nos chama atenção é: como os surdos podem construir sentidos e significados em Libras se ela é apenas um acessório? E como podem construir sentidos e significados em português sem a referência linguística em sua língua materna, linguagem em uso? Podem até aprender os sons, mas será que aprenderão seus significados? Nesse ponto, Gomes (2020, p. 54) argumenta que:

 

Os processos de significação são, portanto, dependentes das relações das crianças com o meio, de como elas sentem, se apropriam, pensam e manipulam a fala e as diferentes formas de linguagem nas diferentes situações sociais de desenvolvimento. Estamos nos referindo a uma fala viva, concreta, intimamente ligada às vivências das crianças, à unidade pessoal-social.

 

No artigo em análise, Capovilla (2020) nos apresenta dados de um estudo em que foram analisados erros de leitura e escrita de participantes surdos. Nota-se que, embora o estudo apresenta dados sobre habilidades de leitura e escrita de palavras utilizando figuras e Libras, não foi mencionado o contexto histórico, social e cultural dos participantes do estudo, a faixa etária dos participantes também foi ocultada e, por último, não foi relatado a que método de alfabetização essas crianças que participaram da pesquisa tiveram acesso. Assim questionamos: Quem são os participantes? Quais as suas idades? Suas famílias são compostas por pessoas surdas ou ouvintes? Elas já adquiriram a Libras? Que vivências constituem essas pessoas e como elas ressignificam suas realidades?

O estudo citado por Capovilla (2020) parece focar em sucesso e fracasso de palavras que os surdos conseguem ou não ler e escrever, ao invés de determinar que sentidos e significados os surdos produzem por meio das palavras e como estas fazem parte de suas vivências e seus contextos de vida.

 

Vivência é uma unidade na qual se representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pessoa –, e, por outro lado, como eu vivencio isso. Ou seja, as especificidades da personalidade e do meio estão representadas na vivência: o que foi selecionado do meio, os momentos que têm relação com determinada personalidade e foram selecionados desta, os traços do caráter, os traços constitutivos que têm relação com certo acontecimento (VIGOTSKI, 2018, p. 78)

 

Capovilla (2020) deixa transparecer uma grande preocupação com relação à apropriação de regras gramaticais e ortográficas do português, entretanto, o pesquisador desconsidera a linguagem em uso, afirmando que, na proposta do Plano Nacional de Alfabetização, com base no método fônico:

 

Ao abordar palavras escritas do Português, o aluno, cuja L1 não é o Português (seja esse aluno indígena, surdo, ou indígena surdo), começará aprendendo a traduzir as palavras do Português para sua língua, e de sua língua para o Português. Em seguida, aprenderá a fazer análise morfêmica de cada palavra, decompondo-a em seus lexemas e gramemas. (CAPOVILLA, 2020, p. 211).

 

Refletindo sobre as afirmações de Capovilla (2020), é preciso ter em mente as seguintes controvérsias: primeiro, se as crianças surdas não estudam a Libras como primeira língua na grande maioria das escolas brasileiras, (a Libras ainda não faz parte do PCN’s[2]), como farão a transposição dos sinais para o português sem as referências linguísticas na Libras? Segundo, o processo de tradução e interpretação envolve outras habilidades como o conhecimento profundo da língua alvo e da língua fonte, inclusive o conhecimento da cultura dos falantes e dos sinalizantes dessas línguas, tendo em vista que língua e cultura se constituem mutuamente. E, por fim, para que uma pessoa aprenda uma língua, seja escrita, sinalizada ou falada (oral), faz-se necessário que aprenda essa língua em uso e não apenas identificando morfemas, grafemas, lexemas etc. fora da função principal da língua que é a comunicação, por meio da interação verbal. Segundo Bakhtin (1929/2014),

 

na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular. Para o falante nativo, a palavra não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A, B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática linguística. Para que se passe a perceber a palavra como uma forma fixa pertencente ao sistema lexical de uma língua dada – como uma palavra de dicionário –, é preciso que se adote uma orientação particular e específica. É por isso que os membros de uma comunidade linguística, normalmente, não percebem nunca o caráter coercitivo das normas linguísticas. A significação normativa da forma linguística só se deixa perceber nos momentos de conflito, momentos raríssimos e não característicos do uso da língua (para o homem contemporâneo, eles estão quase exclusivamente associados à expressão escrita) (BAKHTIN, 1929/2014, p. 98, grifo nosso).

 

 

Relacionando os apontamentos de Bakhtin (1929/2014) e Vigotski (1926/2003), em contraponto às argumentações de Capovilla (2020), podemos dizer que as pessoas, em particular as crianças, constituem-se por meio de relações sociais entre locutor e receptor em um processo dialético, tendo a linguagem em uso como fio condutor de um diálogo ininterrupto que constrói a língua e a pessoa por meio do afeto, elaborando as vivências que possibilitam a manifestação da palavra, que é ideológica. Nas palavras de Bakhtin (1929/2014, p. 98-99, grifos do autor):

 

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.

 

 Por fim, nossa última contra-palavra a Capovilla (2020) diz respeito ao que conta para o pesquisador como alfabetização, o que discutimos a seguir, ampliando o conceito de alfabetização, letramentos e/ou práticas letradas.

 

Alfabetização, Letramento e Práticas de Letramentos

 

Para Capovilla (2020, p. 211), a alfabetização em Português deve ancorar a escrita na fala, uma vez que, segundo o autor, “(1) Todas essas crianças terão de aprender a ler e escrever a Língua Portuguesa, (2) O Português emprega o sistema de escrita alfabético; e (3) O sistema alfabético mapeia a fala”. Capovilla (2020, p. 213) também afirma que “o princípio fonotático, é a chave da alfabetização em português”, sendo assim, para esse autor, a alfabetização deve ser ancorada na fala e a alfabetização fônica é uma alfabetização Lalêmica Multissensorial, já que ancora na fala em três modalidades sensoriais: a fala pode ser recebida por audição (em crianças ouvintes ou cegas), visão (por crianças videntes, ouvintes ou surdas), e por tato (em crianças sencientes, videntes ou não, como as surdocegas). Segundo Capovilla (2020, p. 210):

 

O princípio fonotático diz respeito ao fato claro de que a escrita mapeia a fala. As unidades da escrita (grafemas) mapeiam unidades da fala correspondentes (lalemas). Essas unidades da fala podem ser audíveis (fonemas ou otolalemas, que ouvintes processam para a compreensão auditiva da fala), visíveis (optolalemas, que surdos videntes processam para compreender a fala na leitura orofacial visual), ou táteis (esteselalemas, que surdocegos processam para compreender a fala na leitura orofacial tátil).

 

 

Por outro lado, contudo, Vigotski (2021, p. 104) já explicitava que a escrita e a fala possuem histórias de desenvolvimento diferentes. Em suas palavras: “Diferentemente do ensino da fala oral, na qual a própria criança se enraíza, o da escrita estrutura-se como um modo artificial de treino que exige o emprego de enorme atenção e forças por parte do professor e do aluno”. Além disso, para Vigotski (2021, p. 105), “o domínio da fala escrita significa para a criança o domínio de um sistema simbólico peculiar e extremamente complexo de signos” e “o domínio desse sistema de signos não pode ocorrer de forma mecânica, de fora para dentro, via simples pronúncia, por meio de um treinamento artificial” (p. 105). Isso quer dizer que esses signos precisam ter sentidos e significados para a criança, ou seja, eles são partes de suas vivências e, por isso, Vigotski afirma que não é algo pontual, já que a escrita é marcada por evoluções, involuções e rupturas que fazem parte do desenvolvimento cultural da humanidade. 

 

[...] não é a consciência dos sons, em si mesmos, nem a forma como eles se combinam, os responsáveis pela aquisição da língua, mesmo para a criança ouvinte. Em princípio, o que a criança ouve são conjuntos sonoros, não a reprodução de letras através de sons que a auxiliarão de alguma forma pontual no início da codificação, na modalidade escrita. (...) Assim, supor que o conhecimento dos sons de uma língua, através de treinamento sonoro, deve anteceder a etapa do letramento de uma criança surda, é uma forma de compor o mundo através das letras e não das significações.  (FERNANDES, 2015, p. 99)

 

Nesse sentido, vale salientar o conceito de alfabetização em que Capovilla (2020) se baseia, tendo como escopo que seu posicionamento com relação à leitura e à escrita parte nitidamente da ancoragem na fala oral, sendo que, para a criança surda, isso se daria pela leitura oro-facial e por meio da Libras para a apreensão de normas gramaticais e ortográficas. Sendo assim, nas palavras de Capovilla (2020, p. 213):

 

Alfabetizar é ensinar a ler por decifragem de grafemas em lalemas (ouvidos, visto ou tateados), e a escrever por cifragem desses lalemas em grafemas. Em cada grupo, as atividades são implementadas por um modelo distinto. Na criança ouvinte, capaz de articular a fala (i.e., não anártrica, como aquela com paralisia cerebral), duas das atividades mais importantes para o ensino de leitura e escrita são o ensino de leitura em voz alta e o de escrita sob ditado. Na criança surda, no ensino de leitura, a leitura deve ser sempre leitura silenciosa mediada por soletração digital, por acesso semântico por meio de figuras, e finalmente por meio de ancoragem na fala articulada visivelmente. O ensino de escrita deve se dar no contexto de nomeação de figuras, para descrever eventos e situações, e para tomar ditado por leitura orofacial visual. (CAPOVILLA, 2020, p. 213).

 

Para refutar esse conceito de alfabetização que Capovilla (2002) discute, buscamos em Soares (2020) o conceito de alfabetização e o de letramento, os quais Capovilla (2020) não cita em seu texto. Assim, para Soares (2020, p. 27):

 

Alfabetização e letramento são processos cognitivos e linguísticos distintos, portanto, a aprendizagem e o ensino de um e de outro é de natureza essencialmente diferente; entretanto, as ciências em que se baseiam esses processos e a pedagogia por elas sugeridas evidenciam que são processos simultâneos e independentes. A alfabetização – a aquisição da tecnologia da escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento, ao contrário, a criança aprende a ler e escrever envolvendo-se em atividades de letramento, isto é, de leitura e produção de texto reais, de práticas sociais de leitura e escrita.

 

Notemos que, para Soares (2020), a alfabetização está mais para a apropriação do código escrito, e o letramento parece abranger bem mais do que apenas ler esse código. Também conforme a autora, o letramento envolve leitura e produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e escrita. Como já explicitamos sobre a relação da linguagem em uso e da importância dos contextos e interações verbais para a construção da língua, o letramento, de acordo com Soares, vai além da aquisição de decifragem de grafemas, pois a criança, por meio de práticas sociais, constrói sentidos e significados dessas práticas, recordando, assimilando e fazendo conexões com suas vivências na comunicação real.

No entanto, é visível que Soares (2020) conceitua alfabetização e letramento como processos separados que se interligam. Kleiman (1995, p. 16) evidencia que

 

[...] o conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos como tentativa de separar os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos da alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita.

 

Nesse sentido, Kleiman (1995, p. 18-19) define letramento “como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”.

Já Street (2014) propõe uma abordagem não de alfabetização, mas de letramento, ou melhor, letramentos. Isso porque, conforme Street (2014), o uso de letramentos, no plural, se justifica no sentido de enfatizar o caráter múltiplo das práticas letradas, em contraponto ao letramento com caráter único, neutro e singular. Para Street (2014), ao descrever a especificidade dos letramentos em lugares e tempos, é útil considerar o emprego do conceito de práticas de letramento, que abrange os significados sociais das práticas culturais, sendo mais amplo que os eventos de letramentos, cunhado por Heath (1982). Ou seja, “o termo ‘eventos de letramento’ se refere a qualquer ocasião em que um trecho de escrita é essencial à natureza das interações dos participantes e a seus processos interpretativos” (STREET, 2014, p. 18). Já o conceito de práticas de letramento ou práticas letradas

 

[...] é um conceito mais amplo, alçado a um nível mais elevado de abstração e referindo-se a comportamentos e conceitualizações relacionados ao uso da leitura e/ou da escrita. As práticas letradas incorporam não só os ‘eventos de letramento’, como ocasiões empíricas de que o letramento é parte integrante, mas também ‘modelos populares” desses eventos e preconcepções ideológicas que os sustentam (STREET, 2014, p. 174).

 

Segundo Kleiman (1995), o uso do termo letramento ou “letramentos”, em vez do termo tradicional, “alfabetização”, se justifica porque, em certas classes sociais, as crianças são letradas no sentido de possuírem estratégias orais letradas, antes mesmo de serem alfabetizadas. Concordamos com Kleiman, pois, de acordo com a autora:

 

Uma criança que compreende quando o adulto lhe diz ‘olha o que a fada madrinha trouxe hoje!’ está fazendo uma relação com o texto escrito, o conto de fadas. Assim ela está participando de um evento de letramento (porque já participou de outros, como o de ouvir uma estorinha antes de dormir); também está aprendendo uma prática discursiva letrada e, portanto, essa criança pode ser considerada letrada, mesmo que ainda não saiba escrever. Sua oralidade começa a ter as características da oralidade letrada, uma vez que é junto à mãe, nas atividades do cotidiano que essas práticas orais são adquiridas (KLEIMAN, 1995, p. 18, grifos da autora).

 

Semelhante ao exemplo de Kleiman sobre as práticas orais adquiridas que constituem as práticas de letramentos por meio dos eventos de letramentos, é expressamente importante que, no caso dos surdos, essas práticas letradas possam ser evidenciadas por meio da língua de sinais. Se uma criança surda adquire a Libras e tem acesso, por exemplo, a contações de histórias em Libras, envolvendo-se nesse universo dialógico em que ela consegue não apenas ver essa contação e identificar alguns sinais ou palavras que devem ser memorizadas e escritas, mas recontar por meio dos sinais o que entendeu, essas também constituem práticas letradas, não nos restringindo apenas a contos e histórias dos livros infantis, mas pensando em eventos de letramento da vida cotidiana que constituem práticas discursivas e são de grande relevância para a construção  ideológica de ledores surdos de Libras e de Português.

Conforme Lodi; Bortolotti; Cavalmoreti (2014), as práticas de letramento não devem ser identificadas ou reduzidas à competência da escrita, mas ser letrado implica

 

[...] participação e envolvimento dos surdos nos discursos da cultura letrada em ambas as línguas; significa saber falar sobre eles e refletir, metalinguisticamente, sobre aquilo que é enunciado e sobre os sentidos que circulam nesses textos. (p. 133).

 

Para tanto, as autoras ressaltam, ainda, que:

 

Para este processo, entende-se, como condição primeira, que aos surdos deve ser garantida a imersão na cadeia interdiscursiva constitutiva das interações verbais em Libras, processo que depende do estabelecimento de relações com outros surdos usuários de Libras. Práticas discursivas que carregam sentidos e visões de mundo e de sujeitos, logo de caráter dialógico e ideológico, que diferem, em diferentes graus, daquelas constitutivas da sociedade ouvinte. (LODI; BORTOLOTTI; CAVALMORETI, 2014, p. 133).

 

 Por isso, o acesso à Libras não deve ser restrito apenas para aprender as normas e a gramática do português, mas para que se pratiquem letramentos em Libras e, consequentemente, em português. Kleiman (1995) nos dá um exemplo com relação à expressão “entre aspas”, que, muitas vezes, usamos quando contamos algo com ironia. Geralmente, para o uso dessa expressão, gesticulamos as duas mãos à altura dos ombros, com dois dedos de cada mão desenhando a forma das aspas no papel. E fazemos isso porque temos familiaridade com a escrita por causa da leitura de certos tipos de textos. Na opinião de Kleiman (1995), isso mostra que temos familiaridade com certas práticas de letramento. Em Libras, usamos esse mesmo movimento das aspas sinalizadas para destacar temas de palestras, títulos de algum texto ou estória, o que podemos afirmar serem práticas letradas em Libras/Língua Portuguesa pelo significado que possui para os surdos. Com isso enfatizamos a importância de alunos surdos aprenderem mais sobre a Libras em uso, pois, consequentemente, a datilologia, acentos e algumas manifestações gráficas, que já são incorporadas aos sinais, terão mais sentido para os usuários da língua enquanto práticas de letramentos.

 

Conclusão

 

Entre os confrontos e conflitos que apontamos no artigo de Capovilla (2020), o último tópico escrito pelo pesquisador retoma o artigo: “Avaliação escolar e políticas públicas de Educação para os alunos não ouvintes”, publicado em 2009. Embora Capovilla adicione informações complementares ao artigo, é possível notar muitas generalizações sobre quando os alunos surdos começam a adquirir leitura e escrita, havendo ainda uma defesa das escolas bilíngues, sendo que prevalece, nos argumentos de Capovilla (2020), que a alocação para estudantes com deficiência auditiva seria mais adequada em escolas comuns pelo critério inclusivo, e as crianças surdas, para quem a Libras constitui a primeira Língua, deveriam ficar alocadas em escolas bilíngues. Discordamos dessas rotulações, uma vez que pensamos que não é o aluno surdo que deve estar nesse ou naquele lugar, é a Libras que deve ser universalizada nos diferentes espaços, inclusive como conteúdo curricular para surdos e ouvintes.

Capovilla (2020) também afirma que a leitura orofacial não se desenvolve apartada da alfabetização, e que as crianças surdas de escolas públicas são alfabetizadas mais facilmente em escolas bilíngues do que em escolas comuns. No entanto, apresentamos, neste artigo, argumentos que nos levam a questionar se realmente as crianças surdas necessitam de leitura orofacial para serem alfabetizadas. E, no que tange à escola comum e à escola bilíngue, essa é uma discussão complexa em que, mais do que uma generalização, é preciso compreender os tipos de “bilinguismo” ou “educação bilingue”, já que esses termos têm sido ressignificados ao longo dos anos. Essa é uma discussão que não traremos neste texto, mas que carece de um olhar investigativo mais profundo.

Nossos contrapontos e contra-palavras nos possibilitam um exercício de reflexão e refração do que está sendo construído e do que se vislumbra construir na área da educação de surdos, principalmente tendo em vista a implementação de uma proposta bilíngue centrada no surdo. Argumentamos, também, a necessidade de mais pesquisas que envolvam as políticas linguísticas, sociais e culturais da comunidade surda, e de uma educação que inclua a Libras como linguagem/língua em uso, como objeto de estudo, de comunicação e de instrução, não apenas como metalinguagem para a aprendizagem do português pelo aluno surdo. Nossa análise discursiva leva-nos a considerar que um projeto de escolarização na perspectiva dos letramentos sociais, para pessoas ouvintes e surdas, deve ser construído tendo como referência as pluralidades e singularidades do “Ser humano” e do “Ser surdo”.

 

Referências

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[1] Biológico, para Vigotski, significa natural.

 

[2] Embora a Lei 10.436/2002 e o decreto nº 5.626/2005 assegurem que a Libras deve ser parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Básica (PCN’s), atualmente a Libras enquanto disciplina é ofertada em cursos superior e de formação de professores e, em muitas escolas brasileiras de educação básica, ainda não há inserção da Libras como disciplina, sendo realizada a tradução e a interpretação do par Libras/Língua Portuguesa via Tradutor Intérprete.