http://dx.doi.org/10.5902/1984686X69253

Os conceitos de “normal” e “anormal” em publicações científicas e educacionais da década de 1930

The concepts of "normal" and "abnormal" in scientific and educational publications of the 1930s

Los conceptos de "normal" y "anormal" en las publicaciones científicas y educativas de los años 30

Beatriz Lopes Porto Verzolla

Doutoranda na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

E-mail: bia.verzolla@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2173-6001

Ariadne Lopes Ecar

Professora doutora da Universidade Ibirapuera, São Paulo, SP, Brasil

E-mail: ariadneecar@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4562-8702

Recebido em 08 de fevereiro de 2022

Aprovado em 18 de fevereiro de 2022

Publicado em 23 de agosto de 2022

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar os conceitos de “normal” e “anormal” em publicações científicas e educacionais publicadas na década de 1930. Para tanto, foram escolhidos artigos dos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental e da Revista Escola Nova que abordavam o tema em questão, em formato digital. Foram utilizadas como metodologia a pesquisa documental e a análise de conteúdo, recurso que auxilia na interpretação do significado latente ou manifesto em registros escritos. Foram analisadas 11 publicações, correspondentes aos anos de 1930 e 1931. As análises permitem perceber que não havia um consenso no que diz respeito à adoção dos termos “normal” e “anormal” e que esses significados serviram para classificar e criar estigmas em crianças que não se encaixavam nas descrições padronizadas pelo pensamento médico-educacional, tendo ou não algum déficit intelectual, de acordo com a aplicação dos testes de inteligência. Esses achados estavam em consonância com o ideal eugenista, que exerceu influência direta nas práticas pedagógicas do período estudado.

Palavras-chave: Normal; Anormal; Publicações científicas e educacionais.

ABSTRACT

This article aims to analyze the concepts of "normal" and "abnormal" in scientific and educational publications published in the 1930s. To this end articles from the Brazilian Archives of Mental Hygiene and the New School Magazine that addressed the theme in question were chosen, all of them in digital format. So, 11 publications were analyzed, corresponding to the years of 1930 and 1931. Documentary research and content analysis were used as a methodology, considering a kind of resource that helps in the interpretation of latent or manifest meaning in written records. The analyses led us to realize that there was no consensus regarding the adoption of the terms "normal" and "abnormal" and that these meanings served to classify and create stigmas in children who did not fit the standardized descriptions according to the medical-educational thinking, whether or not they had some intellectual deficit by the application of intelligence tests. These findings were in line with the eugenics ideal, which had a direct influence on the pedagogical practices of the period studied.

Keywords: Normal; Abnormal; Scientific and educational publications.

RESUMEN

Este artículo pretende analizar los conceptos de "normal" y "anormal" en las publicaciones científicas y educativas publicadas en la década de 1930. Para ello, se eligieron artículos de los Archivos Brasileños de Higiene Mental y de la Revista de la Escuela Nueva que abordaban el tema en cuestión, en formato digital. Se utilizó como metodología la investigación documental y el análisis de contenido, recursos que ayudan en la interpretación del significado latente o manifiesto en los registros escritos. Fueran analizadas 11 publicaciones, correspondientes a los años 1930 y 1931. Los análisis nos llevaron a darnos cuenta de que no había consenso en cuanto a la adopción de los términos "normal" y "anormal" y que estos significados servían para clasificar y crear estigmas en los niños que no se ajustaban a las descripciones estandarizadas por el pensamiento médico-educativo, si tuvieran o no algún déficit intelectual, según la aplicación de pruebas de inteligencia. Esto estaba en consonancia con el ideal eugenésico, que influyó directamente en las prácticas pedagógicas del período estudiado.

Palabras clave: Normal; Anormal; Publicaciones científicas y educativas.

Introdução

A transição do século XIX para o século XX foi marcada por um período de transformações na medicina, que passou a ocupar um espaço cada vez mais importante no controle sobre os processos biológicos e sobre o funcionamento das populações, tendo o corpo como alvo das ações de disciplinamento e normatização por meio de mecanismos de poder sobre a regulação da vida, o que FOUCAULT (1988) denomina biopoder. Esse período marcou também a ascensão do movimento eugenista, inaugurado pelo britânico Francis Galton, que cunhou o termo “eugenia” em 1883 (GALTON, 1909). Na ocasião, a eugenia foi definida como a ciência que tinha como objetivo melhorar as qualidades inatas da raça humana, visando à formação de gerações de indivíduos sadios, fortes e belos.

Aplicando os princípios da teoria evolucionista de Charles Darwin do mundo natural para a sociedade humana, as ideias originais de Galton ocupavam-se do melhoramento da espécie humana por meio de ações externas, como educação eugênica e higiene – eugenia positiva – sendo, gradativamente, modificadas a partir do início do século XX com a aplicação de ações mais restritivas, como medidas de segregação, restrição de imigrações, esterilização reprodutiva e extermínio, sendo identificadas como eugenia negativa, encontrando terreno fértil especialmente nos Estados Unidos e expandindo-se, gradativamente, para outros países (BLACK, 2003; STEPAN, 2005; VERZOLLA E MOTA, 2017).

Estavam no alvo das ações eugenistas um grupo heterogêneo de pessoas, formado por indivíduos que apresentavam desde doenças infecciosas, como a lepra, a sífilis e a tuberculose, até aqueles que eram considerados inferiores por serem “moralmente indesejáveis”, com potencial de propagar características da degeneração aos seus descendentes ou por serem considerados improdutivos ou inaptos ao trabalho, como as pessoas com algum tipo de deficiência ou transtorno mental. Nesse período, as pessoas consideradas indesejáveis eram agrupadas sob as terminologias genéricas e indefinidas de “anormais”, “delinquentes”, “loucos”, “idiotas”, tendência que permaneceu até meados do século XX (FOUCAULT, 1997). Aliada aos mecanismos de controle e vigilância, a influência progressiva da medicina em diferentes áreas da sociedade, a partir do final do século XIX, contribuiu para as categorizações sobre o normal e o patológico e a instauração de mecanismos de identificação, seleção, correção e intervenção (CANGUILHEM, 2009).

A partir do século XIX, diferentes instituições especializadas em atividades pedagógicas e de reabilitação surgiram ao redor do mundo, inclusive no Brasil – sendo as pioneiras o Imperial Instituto de Meninos Cegos, fundado em 1854 e o Imperial Instituto para Surdos-Mudos de Ambos os Sexos, fundado em 1856. Alinhadas às políticas de intervenção e controle sobre os corpos considerados indesejáveis e improdutivos, as instituições funcionavam, inicialmente, como locais de confinamento e isolamento da sociedade, sendo objeto da atenção médica com fins corretivos e normalizantes, sob o pretexto de prepará-los para a reintegração na sociedade. As instituições eram organizadas de acordo com a faixa etária e a patologia dos internos, sendo inspiradas nos hospitais psiquiátricos, no caso dos adultos, ou em espaços educativos, no caso das crianças (GOFFMAN, 1987; ROCHA, 2006; LANNA JUNIOR, 2010). Tais instituições utilizavam diferentes nomenclaturas para se referirem ao atendimento das pessoas que compunham seu público-alvo, como “Pedagogia de Anormais”, “Pedagogia Terapêutica”, “Pedagogia Curativa” e “Pedagogia Teratológica” (COSTA, BARBOSA E SOUZA, 2016).

A intervenção sobre os corpos ocupou espaço nos debates sobre educação realizados no início do século XX, quando havia expectativas sobre a formação do cidadão brasileiro. Como exemplo, podemos citar o empenho de Oscar Thompson – Diretor da Instrução Pública de São Paulo (1909-1911) – em adquirir aparelhos estrangeiros que pudessem medir e analisar se o funcionamento do corpo infantil era adequado à série ou grau que estava cursando. Seu sucessor, João Chrysostomo Bueno dos Reis Junior (1911-1917), convidou o médico italiano Ugo Pizzolli para ministrar o Curso de Pedagogia Científica, de 15 de junho a 15 de julho de 1914, para educadores paulistas.  O curso pretendia “ministrar ao educador um conhecimento scientifico completo do educando” (O ESTADO DE S. PAULO, 19 de julho de 1914), através de 46 lições teórico-práticas divididas em exame anamnéstico, físico, antropológico, psicológico e fisiológico, proposta parecida com a de seu curso em Crevalcore.

No curso ministrado por Pizzolli, o objetivo era esclarecer quem eram os normais e os anormais e ensinar as técnicas de exames para detecção da anormalidade. Para Pizzolli, quando o educador aprofundava os estudos sobre a natureza da criança, tendia a aumentar sua energia profissional, podendo fazer o papel de “médico”, “pai” e “conselheiro escolar”. No curso havia 52 inscritos, 34 frequentando assiduamente. Do grupo de inscritos havia alguns nomes conhecidos no meio educacional, como: Gastão Strang, Guilherme Kulmann, Francisco Azzi e Antonio de Almeida Junior. As 46 lições teórico-práticas estavam divididas em:

a-    Exame anamnéstico: Hereditariedade. Nascimento. Família. Phases da vida. Caracteres hereditários e adquiridos. Morbosidade da infância. Ambiente familiar.

b-    Exame physico: Cânones da normalidade física da belleza. Peso, apparelhos, systemas, organs. Technica para exame physico.

c-     Exame anthropologico: Cabeça, tronco, membros. Caracteres étnicos. Desvios do normal. Estigmas de degenerescência physisca. Applicações individuaes. Folha biográfica. Technica para colher os dedos anthropometricos. Caracteres somato-anthropologico dos anormaes (idiotas, cretinos, phrenastenicos). Exame prático dos deficientes.

d-    Exame physiologico: Coração. Pulso. Esphygmografia. Pulmões. Espirometria e espirometrographia. Força muscular. Dynamographia e dynametrographya: ergografia. Linguagem. Defeitos. Sensações fundamentaes. Dôr e prazer. Sentimentos – Emoções – Temperamentos.

e-    Exame psychologico: Sensibilidade externa e interna – Vista: Potencia da visão – Campo visual – Senso chromático – Poder de acomodação – Exercícios práticos para examinar a vista. Provas práticas para indagar a vocação esthetica dos alunos para as artes figurativas. Audição: Acuidade da audição – Qualidade dos sons – Orientação dos sons – Educação da audição. Tacto e senso muscular: Discriminação táctil – Senso estereognostico – Baroesthesioscopia – Myocinesioscopia – Graphismo. Seu exame. Exercícios práticos. Gosto e olfato: Acuidade e poder de discriminação – Sensibilidade à dor. Attenção: Suas leis – Provas (mental-tests) para estudar o grau e a natureza da attenção dos alunos. Exercícios práticos. Memória: Poder de retentividade - Poder de evocação – Experiências (mental-tests) para estudar a memória. Imaginação e suas qualidades. Associação: Typos de associação – Ideação – Provas – Exercícios práticos. Volições: Innibições – Carater – Impulsivos – Reflexivos – Provas para o exame de comportamento e disposição (O ESTADO DE SÃO PAULO, 19/07/1914).

O grupo visitou o Instituto Disciplinar (no dia 9 de julho), dirigido por João Motta, que contava com 120 educandos entre meninos e rapazes sendo preparados para o trabalho profissional e para a agricultura. Pizzolli comentou ter encontrado alguns educandos com “estigmas de degeneração” o que o levou a exemplificar o que significava deficiência moral, assunto de uma das lições. Também visitaram o Hospital de Alienados do Juquery, dirigido por Franco da Rocha, no dia 11 de julho. De acordo com a sua impressão, naquele local foram observadas “as mais baixas degradações humanas e as grandes misérias da psyche” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 19/07/1914), ao se observarem casos de microcefalia e idiotia. O grupo de cursistas fez exames das matérias do curso (técnica antropométrica e aplicação dos mental-tests), submetendo-se à banca composta por João Chrysostemo, diretor-geral de Instrução Pública; Franco da Rocha, diretor do Hospital de Alienados; Oscar Thompson, diretor da Escola Normal Secundária; e Gomes Cardim, diretor da escola modelo.

Ugo Pizzolli também foi responsável por criar o Laboratório de Psicologia Experimental, com o objetivo de possibilitar medidas de inteligência, bem como avaliar aptidões e testes profissionais. No entanto, após o retorno de Pizzolli à Itália, o laboratório foi desativado, vindo a ser reativado no final da década de 1920 com a visita do psicólogo francês Henri Pierón ao Brasil. Pedro Voss, Diretor Geral da Instrução Pública de São Paulo, aproveitou a estrutura do laboratório criado por Pizzolli com aparelhos que pretendiam medir atenção, fadiga muscular, além de testes para classificação do nível mental, atenção, caráter, personalidade e memória (GOLOMBECK, 2016).

A influência da medicina no contexto educacional das pessoas consideradas “anormais” prevaleceu até a década de 1930, quando o movimento conhecido como Escola Nova introduziu as teorias de aprendizagem psicológica à educação de forma geral e às práticas de educação às pessoas com deficiência, enfatizando a importância da escola, dos métodos e das técnicas de ensino. Nesse período, ampliou-se, no Brasil, a importância atribuída às técnicas de avaliação da inteligência, por meio de instrumentos capazes de mensurar as diferenças individuais, selecionar aqueles que seriam mais capazes, contribuindo para a organização de grupos escolares homogêneos e destinando aqueles considerados menos aptos às classes especiais e às instituições especializadas (JANNUZZI, 2004).

Em São Paulo foi criado o Serviço de Antropometria Pedagógica, em 1932. De acordo com ROCHA (2010, p. 34), a antropometria “é uma ciência que se dedica à mensuração de medidas físicas humanas na busca de um padrão que defina com exatidão um indivíduo com proporções consideradas perfeitas e que sirva de modelo para o processo de normatização da população”. No Brasil, esta ciência foi apropriada tendo em vista as teorias que classificavam as raças em superiores e inferiores e as perspectivas eugenistas em torno da miscigenação (ECAR, 2020).

A escola era considerada o local mais adequado para que as crianças fossem instruídas nos princípios eugenistas, na medida em que deveriam ser distribuídas de acordo com seu potencial intelectual, mensurado pelo professor por meio de testes padronizados, tais como os desenvolvidos por Alfred Binet a partir de 1904, compostos por escalas que constituíram as bases para a mensuração do quociente de inteligência – QI (BASILE, 1920; CUNHA, 1933; GOULD, 1999). A partir da aplicação dos testes, diferentes nomenclaturas foram adotadas para classificar o desempenho das crianças – anormais, atrasadas, retardadas, débeis-mentais, idiotas, imbecis – variando de acordo com a escala aplicada e com as referências utilizadas. Porém, de forma geral, o aspecto mais importante a ser considerado seria a utilização dos resultados para a distribuição das crianças de acordo com seu potencial e suas aptidões, como demonstra Antonio Cunha, em sua tese doutoral apresentada para a obtenção do título de doutor pela Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo em 1933:

Na pesquiza dos debeis mentais, primeiro passo para sua educação em escolas especializadas e seu tratamento medico-pedagogico, afim de controlarmos as impressões subjetivas, assegurarmo-nos contra as apreciações muito indulgentes ou os exageros pessimistas, fixarmos o seu atrazo, nos utilizamos do metodo TESTES, isto é, procuramos com auxilio de provas, a que nivel mental de uma criança normal corresponde o nivel mental do retardado (CUNHA, 1933, p. 11, grifo do autor).

Aplicado ao contexto escolar, o conceito de “anormal” englobava um grupo de crianças que não conseguiam desempenhar adequadamente tarefas escolares, por razões diversas, quando comparadas a outros alunos considerados com desempenho normal. A despeito de algumas críticas à definição e utilização do conceito de “anormal” de forma indiscriminada e da relativização do conceito de norma, tal como defendido por ARTHUR RAMOS (1949), as classificações por aptidões e a seleção e segregação de crianças permaneceram presentes no Brasil de forma institucionalizada ao longo do século XX, aliadas ao projeto de melhoramento da população brasileira.

Durante a primeira metade do século XX, a preocupação com a formação das crianças, aliada à importância atribuída à educação para a redução dos altos índices de mortalidade infantil, proporcionaram terreno fértil para a ampliação da Puericultura, como um ramo da Higiene (NOVAES, 2009), atribuindo aos indivíduos a responsabilidade por seus cuidados em saúde, recrutando, especialmente as mães e futuras mães para a observação atenta e cuidadosa de qualquer possível desvio da norma. A Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada pelo psiquiatra Gustavo Riedel, em 1923 (BRASIL, 1923), foi uma das instituições que tinha como objetivo a melhoria da assistência aos doentes mentais, por meio da prevenção, amparo social e modernização do atendimento psiquiátrico, através da realização de um programa baseado na Higiene Mental e na Eugenia, voltado às atividades individuais, escolares, profissionais e sociais (ABHM, 1925).

Reunindo importantes nomes da psiquiatria brasileira e contando com subsídio governamental, a Liga tinha a criança como foco do trabalho, por ser considerada a chave para o progresso da nação (REIS, 2000), além de ter exercido um papel importante no reconhecimento da psicologia como um saber fundamental para estabelecer os limites entre o normal e o anormal em todas as dimensões sociais (NASCIMENTO E MANDELBAUM, 2020). Como uma filial da Liga Brasileira, foi fundada em 1926, a Liga Paulista de Higiene Mental, que promovia campanhas de educação à população quanto aos riscos potenciais da miscigenação racial, do uso de álcool, da imigração de pessoas consideradas degeneradas, entre outros temas, com a finalidade de promover a educação eugênica para reduzir o número de doentes mentais entre os paulistas (TARELOW, 2011).

É pertinente observar que tais teorias foram incorporadas pela psicologia educacional, que até a década de 1930 insistia na explicação da hereditariedade para classificar as crianças. De acordo com PATTO (1999), a explicação para as diferenças entre as crianças deixa de ser hereditária e passa a ser cultural.

Tendo em vista todo o exposto, apresentaremos a seguir análises sobre normalidade e anormalidade em publicações dos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (ABHM) e da Revista Escola Nova.

Metodologia

Realizamos uma pesquisa documental na qual separamos registros escritos da ABHM e da Revista Escola Nova como fontes primárias, disponíveis em formato digital, totalizando 11 documentos. O documento pode ser considerado como uma das principais fontes de análise da historiografia, produzidos a partir do movimento de transcrever, fotografar ou recopiar os objetos, separando-os, reunindo-os e transformando-os, modificando seu lugar e seu estatuto (CERTEAU, 1982). Buscamos encontrar temas relacionados à normalidade e anormalidade, em seguida, fizemos uma análise de conteúdo, que, de acordo com SEVERINO (2016), compreende analisar informações que constam em documentos, de modo a interpretar o significado latente ou manifesto no registro escrito, como é a proposta deste artigo.

Sendo assim, buscamos analisar os artigos publicados nos ABHM, publicação editada pela diretoria da Liga Brasileira de Higiene Mental, contemplando um dos objetivos da instituição, que correspondia à publicização do conhecimento científico em higiene mental, por meio de artigos científicos inéditos, escritos por pesquisadores e médicos de referência na área. Os quatro artigos analisados contemplam os anos de 1930 e 1931. De igual modo, analisamos sete artigos publicados na Revista Escola Nova, subordinada à Diretoria Geral de Ensino de São Paulo, nas edições do ano de 1931. A revista tinha como objetivo a exposição e crítica de assuntos educativos e publicava artigos de professores e pesquisadores da área educacional e que desejassem colaborar com a “obra de coordenação da nascente cultura pedagógica nacional” (ESCOLA NOVA, 1931a, p. 1).

Resultados e Discussão

Diferentes autores de artigos dos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental apontam a relevância dos testes de avaliação da inteligência, em especial os testes de Binet-Simon, para a compreensão do perfil de inteligência, classificação e direcionamento dos alunos nas escolas brasileiras (ALVES, 1930; FROSSARD, 1930; LOPES, 1930; LOPES, 1931). Isaias Alves – diretor do Centro de Pesquisas Psicopedagógicas do Ginásio do Ipiranga/Bahia e membro correspondente da Liga Brasileira de Higiene Mental – estabelece um comparativo entre estudos com o teste Binet-Simon realizados no Brasil e nos Estados Unidos, apontando que, neste país, o QI médio foi identificado como superior ao dos brasileiros avaliados, o que refletiria a influência de melhores métodos escolares, melhores estímulos ambientais e uso generalizado de testes nos Estados Unidos (ALVES, 1930).

Além do teste de Binet-Simon, o teste de Binet-Terman também era utilizado no Brasil para realizar avaliações de inteligência, teste sobre o qual Ernani Lopes – presidente da Liga Brasileira de Higiene Mental e psiquiatra da Assistência a Psicopatas – apresenta orientações relativas à interpretação dos dados, em seu artigo publicado na primeira edição do ABHM de 1931 (LOPES, 1931). De acordo com o autor, o QI mensurado pelo referido teste deveria ser o resultado da relação entre a idade mental e a idade cronológica do indivíduo – considerados dentro da média os resultados entre 90 e 110 – sendo estabelecida uma escala de classificação decrescente a partir da referência de normalidade estabelecida (Tabela 1). Em escala ascendente, estariam as inteligências superiores à média (110-120), os talentos (120-140) e os supra-normais genuínos (acima de 140). O autor indica a importância da complementação da avaliação de QI com informações sobre o estado social, ocorrências escolares, qualidade dos trabalhos escolares e defeitos físicos, além de observações sobre o comportamento da criança no momento da aplicação do teste.

Tabela 1 – Classificação dos níveis de QI, conforme apresentada por Ernani Lopes, a partir do teste de Binet-Terman

Nível de QI

Classificação

Entre 80 e 90

“Rudes” de inteligência

Entre 70 e 80

Limítrofes e débeis mentais “superiores”

Entre 50 e 70

Débeis mentais caracterizados

Entre 25 e 50

Imbecis

Abaixo de 25

Idiotas

Fonte: Lopes, 1931 (adaptado pelas autoras).

Nicolar Frossard – professora municipal e titular da sessão de psicologia aplicada e psicanálise da Liga Brasileira de Higiene Mental – apresenta em seu artigo publicado nos ABHM, em 1930, um trabalho realizado no ano de 1926, com a aplicação do teste de Binet-Simon em 195 alunos, com idades entre 7 e 15 anos, de duas escolas no Distrito Federal. De acordo com os resultados obtidos, 123 alunos foram classificados como “abaixo da média”, 46 como “dentro da norma” e 26 como “acima da norma”. Apesar de não discutir especificamente os resultados, a autora reforça que a avaliação foi realizada seguindo minuciosamente todas as etapas propostas pelos autores e que o teste poderia ser considerado adequado para mensurar a inteligência das crianças, sendo recomendada a aplicação em escolas de diferentes estados brasileiros, com escolares provindos de diferentes camadas sociais, a fim de confirmar os resultados obtidos (FROSSARD, 1930).

Em relação às particularidades dos indivíduos considerados “incorrigíveis”, Ernani Lopes estabelece uma distinção entre aqueles que deveriam ser analisados sob o aspecto intelectual e aqueles que deveriam ser considerados de acordo com seu caráter, temperamento e reações. Em relação ao aspecto intelectual, LOPES (1930) aponta que todas as crianças “atrasadas ou deficientes intelectuais” deveriam ser consideradas incorrigíveis e que, apesar de poderem receber instrução, não seriam capazes de resolver questões que exigissem um nível intelectual superior ao de sua idade mental. Quanto aos aspectos relacionados ao caráter, o autor aponta que os indivíduos considerados “pré-delinquentes” apresentavam o que denomina de “doença moral”, tendo conservadas as funções intelectuais, a memória, a associação de ideias e a imaginação, sem os estigmas físicos de degeneração, tais como estariam presentes nos “idiotas” ou “imbecis”:

Os menores incorrigiveis, em sua modalidade mais grave, caracterizam-se por uma anormalidade pronunciadissima, com tendencias perversas oriundas de sua inaffectividade congenita, Desde tenra idade exteriorizam elles impressionante incapacidade de affecto, e completa indifferença pelos cuidados que recebem da genitora, ou da ama. Incapazes de carinho, seu prazer parece, ao contrario, ser sómente bater, estragar, machucar, fazer mal... (LOPES, 1930, p. 243 – mantida a escrita original).

Apesar de considerar a doença moral como incurável, o autor indica que deveriam ser realizados esforços para orientar a educação moral, especialmente afetiva, para alcançar alguma melhora no comportamento dos indivíduos, com investimentos em serviços psiquiátricos especializados, anexos ou não aos manicômios. Ainda em seu artigo da edição número 7, do ano de 1930, Ernani Lopes aponta como principais formas de profilaxia da delinquência infantil o combate ao alcoolismo dos genitores, o desaconselhamento de uniões consideradas anti-eugênicas e a esterilização cirúrgica de indivíduos considerados degenerados, decisões que deveriam partir de discussões e aprovação unânime de comissões de técnicos em psiquiatria e eugenia (LOPES, 1930).

Nos números 1 e 2 do volume II da Revista Escola Nova, do ano de 1931, há uma extensa seção intitulada “A Educação da Saúde – Programma para escolas primarias e normaes”, de autoria do Dr. Thomaz Wood – presidente da Comissão dos Vinte e Sete, de Nova York – na qual são apresentados os objetivos da educação em saúde e a contribuição das escolas e das professoras na aplicação da higiene e da educação eugênica, visando ao aprimoramento individual, mas também coletivo, assegurando gerações mais sadias e, consequentemente, uma raça de brasileiros mais fortes e capazes. No capítulo que trata da Higiene Mental, o autor defende que, na maioria dos casos, “as pessoas não nascem mentalmente anormaes; tornam-se anormaes" (WOOD, 1931, p. 80), chamando a atenção para a necessidade de cuidados com os aspectos psíquicos, que constituiriam as bases para a formação da personalidade, com origens já na infância. Nesse sentido, sugere a realização de exames físicos e mentais prévios ao ingresso das crianças nas escolas e a formação das professoras voltada para o estudo da psicologia e da fisiologia infantis, para auxiliar na compreensão das necessidades de seus alunos.

Na mesma edição da revista, há a publicação de um trecho de uma conferência realizada na Sociedade Brasileira de Pediatria (SABOIA, 1931), acerca do tema “Higiene Mental em pediatria”, ministrada pelo Dr. Massillon Saboia – inspetor médico-escolar no Rio de Janeiro – na qual o médico apresenta uma classificação em quatro grupos de crianças consideradas deficientes mentais. Nos dois primeiros grupos, apresenta os denominados “imbecis” (grupo 1: zero a dois anos de idade mental; grupo 2: três a sete anos de idade mental); no terceiro grupo estariam aqueles que denomina “simplórios e patetas” (com idade mental de sete a doze anos), os quais poderiam obter bons resultados e aproveitamento à sociedade se recebessem educação apropriada em instituições especializadas. No quarto grupo, apresenta aqueles considerados com desvio de caráter, da vontade, dos sentimentos e da moral, porém sem déficits na inteligência, os quais mereceriam atenção especial quanto à possibilidade de gerarem prejuízos à ordem social. Saboia defende a necessidade de um levantamento dos casos considerados “anormais” e “subnormais”, por meio de avaliações específicas, que pudessem direcionar os encaminhamentos considerados mais adequados em cada caso:

Um instituto central com todos os requisitos e modernos aperfeiçoamentos, confiado a pessoal de comprovada capacidade technica, deveria ter por funcção estudar a criança brasileira, as taras e possibilidades de aproveitamento dos subnormais, encaminhando de preferencia para colonias agricolas os anormais (SABOIA, 1931, p. 252 – mantida a escrita original).

Ainda no volume II da Revista Escola Nova de 1931, os números 3 e 4 trazem como tema central dos artigos publicados a “Iniciação ao estudo dos testes”, tratando da importância das avaliações de inteligência, da caracterização de alguns dos testes mais utilizados e sua aplicação no cotidiano escolar. No artigo de abertura, Lourenço Filho – educador que se dedicou também à psicometria e então diretor-geral de ensino do estado de São Paulo – aborda a finalidade da aplicação dos testes de inteligência, que pretendiam substituir as avaliações subjetivas, dando lugar a uma “avaliação objetiva, constante e inequívoca” (LOURENÇO FILHO, 1931, p. 255), consistindo em uma medida, um padrão, uma grandeza invariável, respaldada por investigação estatística. Reforçando a importância de mensurações rigorosas, o autor exemplifica com a aplicação dos Testes ABC em mais de 20 mil crianças em grupos escolares do município de São Paulo, permitindo a organização de 468 classes diferentes, de acordo com as classificações obtidas.

É importante pontuar que, na década de 1930, o movimento de organização científica escolar foi ganhando força e os testes passaram a ser incorporados em diretorias de instrução pública e escolas normais. O movimento dos testes tornou-se expressivo em São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e no Distrito Federal (RJ). Os testes tomaram a feição diagnóstica e prognóstica do rendimento escolar, irradiando-se para outras regiões do Brasil. O livro Testes ABC foi publicado em português entre 1933 e 1974 em 12 edições, totalizando 62 mil exemplares, bem como em espanhol e em francês.

Na mesma edição da revista, Alexandre Gali – secretário do Conselho de Pedagogia de Barcelona – discorre sobre questões referentes às avaliações do desempenho escolar, recomendando o uso de testes de inteligência, mas também tecendo algumas críticas a respeito dos contextos de aplicação e à interpretação dos resultados (GALI, 1931). De acordo com o autor, a suposta objetividade dos testes deveria ser relativizada e contextualizada com as produções cotidianas dos alunos na escola, aproximando-se das propostas montessorianas, e apontando que as exigências de objetividade envolvidas na produção dos testes implicam em uma forma de “desalojamento” do sujeito no momento da avaliação, isolando-o de seu contexto, não representando o dinamismo envolvido nos processos de aprendizagem:

O facto é que o teste, instrumento empregado, não tem relação absoluta, não encobre, duma maneira total, as condições da cousa medida [...] A impossibilidade de reductibilidade total deixa sempre nas medidas obtidas por meio de testes alguns pontos debeis, pelos quaes, muitas vezes, aquella pode falhar (GALI, 1931, p.  290 e 291 – mantida a escrita original).

Sidney e Luella Pressey – professores de psicologia da Universidade de Ohio – apresentam, em seu artigo, sua posição sobre a importância e os benefícios dos testes, defendendo que eles deveriam fazer parte do material de cada escola e não serem empregados apenas em situações específicas (PRESSEY E PRESSEY, 1931). De acordo com os autores, a aplicação dos testes seria útil, especialmente, na avaliação da inteligência geral para subdividir as turmas em grupos homogêneos, no controle dos conhecimentos adquiridos pelos alunos ao longo do ano, na identificação de pontos fracos no ensino de determinada matéria e no direcionamento de atividades para cada habilidade a ser trabalhada.

Um dos artigos publicados nos números 3 e 4 da revista é um trecho da Conferência realizada na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, proferida por Théodore Simon – psicólogo e psicometrista francês, presidente da Sociedade Alfred Binet, em Paris, e co-autor do teste de Binet-Simon em 1905 – em que o autor rebate algumas das principais críticas feitas às medidas de inteligência propostas por ele, em conjunto com Alfred Binet. SIMON (1931) inicia sua exposição apontando como um contrassenso o fato de que todas as pessoas fazem, naturalmente, julgamentos sobre a inteligência do outro, a partir dos contatos pessoais e das interações, mas questionam a validade de instrumentos desenvolvidos especificamente para esse fim. A partir dessas colocações, o autor procura apresentar um conceito de inteligência, em resposta aos questionamentos sobre a complexidade do termo e das variáveis envolvidas em sua avaliação e mensuração:

[A inteligência] é um certo jogo regular, e tal que essas operações se desdobram em raciocínios justos, em juizos exactos, taes em uma palavra, que, obedecendo a uma direcção por ajustamentos repetidos e por verificações successivas, nosso pensamento esposa a realidade e a ella se accomoda e nos conduz a resoluções que com ella concordam. Em outros termos, a intelligencia nos aparece como um modo, como um poder de adaptação (SIMON, 1931, p. 356 – mantida a escrita original).

A maior parte dos artigos da Revista Escola Nova trata das especificidades dos testes de inteligência, das classificações obtidas e de sua aplicabilidade no meio escolar, especialmente em relação aos alunos com inteligência abaixo da média, considerados “infra-normais”. Porém, em um dos artigos publicados nos números 3 e 4 – extraído de um trecho do jornal Correio da Manhã – o médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Antonio Leão Velloso, aborda o tema dos “supra-normais”, que constituiriam, em conjunto com os infra-normais, a categoria dos “anormais pedagógicos”. O autor destaca que o termo “anormal” era comumente associado aos alunos classificados com inteligência ou caráter inferiores à média, porém salienta a presença dos alunos com inteligência superior à média nesse grupo, acrescentando que “delles é que sáem os homens superiores, os conductores, os super-homens” (VELLOSO, 1931, p. 385). O autor defende a aplicação de testes de inteligência para identificar não apenas os alunos considerados abaixo da média, mas também para orientar o direcionamento escolar dos alunos com desempenho acima da média:

Napoleão para ser Napoleão não precisou que lhe apontassem o caminho da gloria... Não quer dizer isso que no dia em que a sciencia pedagogica permittir a descoberta precoce dos genios, cercando-os dos requisitos necessarios ao seu mais facil aproveitamento, não lucre com isso a humanidade (VELLOSO, 1931, p. 385 – mantida a escrita original).

Considerações finais

A década de 1930 foi frutífera em estudos e pesquisas que procuravam medir a inteligência e classificá-la de acordo com testes padronizados. Percebemos essa tendência nos discursos de educadores e médicos que publicaram trabalhos nos ABHM e na Revista Escola Nova.

Nos ABHM identificamos uma comparação entre a inteligência de crianças brasileiras e estrangeiras, particularmente estadunidenses, ao ser aplicado o teste Binet-Simon. Isaías Alves concluiu que o ambiente e métodos de ensino adequados contribuíam para que as crianças estadunidenses tivessem o desempenho melhor que as brasileiras. Nesse sentido, cabe destacar que a comparação desvelava o déficit no ensino e a falta de organização educacional no Brasil. Não por acaso, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, indicava a fragmentação e a desarticulação do ensino que tinham como base a falta de planejamento e objetivos concernentes à educação e a inexistência de métodos científicos que pudessem resolver problemas escolares.

Considerando ainda os ABHM, analisamos o artigo de Ernani Lopes, que além do teste Binet-Simon utilizava o teste Binet-Terman, no entanto, para o caso brasileiro, indicava a confrontação de outros dados como o estado social e as verificações escolares, opinião um pouco divergente de Nicolar Frossard que se baseava somente nos testes para classificar a inteligência infantil.

Ernani Lopes elucidou seu posicionamento diante dos casos que ele denominou como incorrigíveis, argumentando que as crianças que se encontravam nessa classificação não poderiam modificar seu comportamento, estando doentes moralmente. Para que esses casos não proliferassem, aconselhava o tratamento eugênico, incluindo a esterilização preventiva. A partir das análises dos artigos publicados nos ABHM, depreendemos que o comportamento infantil fora do padrão dito normal, estava atrelado à hereditariedade e, nesse caso, a criança estaria sentenciada a ser aquilo que o diagnóstico ou pesquisa teria concluído sobre sua inteligência.

Na abordagem da Revista Escola Nova, percebemos uma diferença. De acordo com a declaração de Thomaz Wood de que as crianças não nasciam anormais, mas se tornavam anormais, constatamos que o termo condizia com aquelas crianças fora do padrão estabelecido pela sociedade estadunidense, sendo incorporado por educadores brasileiros. Para evitar que esses tipos atrapalhassem o andamento da escola, deveriam ser aplicados testes antes do ingresso, o que foi implementado por Lourenço Filho em São Paulo, ao reativar o Laboratório de Psicologia Experimental da Escola Normal, tendo como base a psicologia dos fatos sociais e individuais. Para o educador, a medida psicológica deveria ser realizada por meio de testes que pudessem permitir a verificação do valor individual para classificação dos escolares. Sem discordar da aplicação de testes, Antonio Leão Velloso argumentou acerca do tema dizendo que as verificações deveriam identificar os alunos com inteligência inferior e superior, no caso, os últimos estariam destinados a serem homens superiores e condutores da nação.

A Revista Escola Nova apresenta opiniões divergentes, como a de Alexandre Gali, que considerava que os testes deveriam ser aplicados, todavia levando em conta os casos particulares. Também expôs os estudos de Sidney e Luella Pressey, que tinham os testes como imprescindíveis para organizar as classes de modo a agrupar os alunos com inteligência parecidas numa mesma sala. É pertinente assinalar que no Brasil, até a década de 1990, algumas escolas tinham a prática de separar os estudantes por níveis de conhecimentos; por exemplo, a 1ª série poderia ser dividida em A, B, C, D, E de acordo com o grau de compreensão das matérias pelas crianças, significando que quem estivesse na 1ª série A comporia o grupo dos alunos “mais inteligentes”, enquanto os que estivessem na 1ª série E estariam fadados ao fracasso, à repetência; ou seja, não havia um trabalho específico para que as crianças avaliadas com dificuldades pudessem saná-las. Esse tema carece de problematizações para a compreensão da escolarização das gerações passadas, como se formaram e como lidam com o conhecimento na atualidade.

Ao finalizar, queremos destacar que não havia um consenso sobre as nomenclaturas dadas às crianças após aplicação dos testes. Os anormais poderiam ser aqueles que não seguiam o padrão imposto pelo pensamento médico-educacional, sem comprometimento cognitivo, como também, aqueles que tinham algum déficit intelectual. De igual modo, fica explícito o empreendimento para identificar os mais inteligentes para que fossem os dirigentes na sociedade, com a pretensão de criar uma raça forte, disposta ao trabalho, sem doenças, uma intenção eugênica que reforçava o caráter elitista da sociedade brasileira.

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