http://dx.doi.org/10.5902/1984686X67952

A interação da criança surda a partir da Teoria Histórico Cultural: possibilidade de desenvolvimento

The interection of the deaf child from Historical Cultural Theory: possibility of development

La interacción de niños sordos desde la Teoría Histórico Cultural: posibilidad de desarrollo

Patrícia Siqueira dos Santos

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, PA, Brasil

E-mail: mailto:paty07santos@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7037-0723

Eleny Brandão Cavalcante

Professora doutora da Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, PA, Brasil

E-mail: elenycavalcante@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8839-7916

Recebido em 22 de julho de 2022

Aprovado em 03 de novembro de 2022

Publicado em 22 de novembro de 2022

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo principal compreender, no espaço da educação infantil, como acontecem as interações entre a criança surda e o meio social em que está inserida e da qual é partícipe, em uma Unidade Municipal de Educação Infantil, situada na área urbana do município de Santarém/Pará. É uma pesquisa que busca se inspirar nos pressupostos da Teoria Histórico Cultural que compreende o desenvolvimento humano a partir das relações sociais e culturais. Os instrumentos para produção de dados consistiram em observações anotadas em diário de campo e entrevistas semiestruturadas. Os sujeitos envolvidos foram 4 professores (3 ouvintes e um surdo) e uma criança surda, os dados foram provenientes dos anos 2018 e 2019. Objetivos específicos a) Observar de que forma a prática pedagógica do professor leva em consideração a criança surda na educação infantil b) Compreender de que forma o professor organiza o espaço educativo para que as interações aconteçam c) Problematizar de que forma mantém-se a relação entre a criança surda e seus professores. Os resultados descritos por meio desta categoria revelaram que, mesmo os professores conhecendo a forma de comunicação da criança surda, a falta de sensibilidade era recorrente e isso refletia em suas práticas pedagógicas para com essa criança. Assim, a pesquisa apontou que as interações da criança surda na educação infantil é uma dimensão que existe e que para o seu desenvolvimento cultural acontecer, é preciso uma educação que seja pautada em atitudes que possibilitem a constituição da subjetividade desta criança. 

Palavras-chave: Teoria Histórico Cultural; Educação de Surdos; Educação Infantil.

ABSTRACT

The present research has as main objective to understand, in the space of early childhood education, how the interactions between the deaf child and the social environment in which it is inserted happens and from which it is partquipe, in a municipal childhood education unit, situated in the urban area of the municipality of Santarém / Pará. It is a research that seeks to be inspired by the presuppositions of the Historical Cultural Theory that understands human development from social and cultural relations. The instruments for data production has consisted of observations noted in field diary and semi-structured interviews. The subjects involved were 4 teachers (3 listeners and 1 deaf) and a deaf child, the data came from the years 2018 and 2019. Specific objectives a) to observe how the teacher's pedagogical practice takes into account the deaf child in child education b) understand how the teacher organizes the educational space so that the interactions occur c) To problematize how the relationship between the deaf child and their teachers remain. The results described through this category revealed that even teachers knowing the deaf child's communication form, lack of sensitivity was recurrent and this reflected in their pedagogical practices to this child. Thus, the research pointed out that the children's interactions in early childhood education is a dimension that exists and to their cultural development to happen, it's necessary a education that is based on attitudes that enable the constitution of the subjectivity of this child.

Keywords: Historical Cultural Theory; Deaf Education; Child Education.

RESUMEN

El objetivo principal de esta investigación es comprender, en el espacio de la educación de la primera infancia, cómo suceden las interacciones entre el niño sordo y el entorno social en el que se insertan y en el que participa, en una Unidad Municipal de Educación Infantil, ubicada en el área urbana del municipio de Santarém/Pará. Es una investigación que busca inspirarse en los supuestos de la Teoría Histórico Cultural que entiende el desarrollo humano desde las relaciones sociales y culturales. Los instrumentos para la producción de datos consistieron en observaciones anotadas en revistas de campo y entrevistas semiestructuradas. Los sujetos involucrados fueron 4 docentes (3 oyentes y un sordo) y un niño sordo, datos provenientes de los años 2018 y 2019. Objetivos específicos a) Observar cómo la práctica pedagógica del docente tiene en cuenta a los niños sordos en la educación de la primera infancia b) Comprender cómo el docente organiza el espacio educativo para que las interacciones ocurran c) Problematizar cómo se mantiene la relación entre los niños sordos y sus maestros. Los resultados descritos a través de esta categoría revelaron que, a pesar de que los profesores conocían la forma de comunicación de los niños sordos, la falta de sensibilidad era recurrente y esto se reflejaba en sus prácticas pedagógicas para este niño. Así, la investigación señaló que las interacciones de los niños sordos en la educación infantil, es una dimensión que existe y que para que su desarrollo cultural suceda, es necesaria una educación que se base en actitudes que permitan la constitución de la subjetividad de este niño.

Palabras clave: Teoría Histórico Cultural; Educación para sordos; Educación de la Primera Infancia.

Introdução

O trabalho apresentado faz parte de uma pesquisa de Mestrado, contou com o apoio financeiro da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (FAPESPA), está vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Surdos (GEPES) do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará.

O objetivo principal da pesquisa foi compreender no espaço da educação infantil como acontecem as interações entre a criança surda e o meio social em que está inserida e do qual participa. Essa pesquisa foi desenvolvida em uma Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI), na cidade de Santarém-PA.

A proposta deste trabalho é discutir a educação de surdos na educação infantil, inspirada na teoria histórico cultural que possibilita compreender as relações sociais existentes no processo cultural do homem. A educação infantil, para a teoria histórico-cultural, é considerada o cerne do desenvolvimento social da criança, é o fio condutor da formação social concreta da pessoa que define a criança como um ser ativo do processo educativo, seja surda ou ouvinte, ela precisa fazer parte desse processo.  De acordo com Teixeira e Barca (2017, p. 31), “[...] a criança é elemento ativo na definição da influência do meio sobre seu desenvolvimento [...]” e para acontecer esse desenvolvimento, o meio educativo deve ser organizado de maneira a favorecê-lo.

Colocar em discussão a educação infantil em paralelo com a educação de surdos é um processo que instigou nesta pesquisa compreender como acontecem as interações da criança surda, especificamente, nesta etapa da educação. O conceito de interação aqui compreendido e que será utilizado, é aquele em que a “ação de conhecer se dá no movimento inter e intrapsicológico, no vaivém dialético entre os parceiros: na confirmação de objetivos comuns, no confronto de ideias, na busca de soluções, na competição, na cooperação” (MACHADO, 2010, p.31).

Quando se fala em interação, temos que ter claro a compreensão de meio e sua influência nesse processo, pois a criança precisa ter a oportunidade de estar em um meio que potencialize e contribua para o seu desenvolvimento, pois  este é um dos elementos do processo educativo e deve ser organizado de forma a permitir que a criança possa participar dele, como um ser ativo, como descreve Vigostki (2010). E o professor como organizador desse espaço deve possibilitar à criança sua interação. Vigotski (2010) considera o meio a fonte de todas as qualidades humanas, por isso, não pode ser tomado como estático, mas como um processo, sempre em movimento.

Neste sentido, a educação exerce papel fundamental, no processo de humanização do homem, podendo transformá-lo num sujeito crítico, consciente, que possa usufruir dos conhecimentos construídos pelas gerações passadas. Para isso, é necessário ter acesso à uma educação para além da reprodução de conteúdo escolares, que dê a todas as crianças, sem distinção de classes, oportunidades de apropriar-se dos bens produzidos pela humanidade. Uma educação que de fato contribua para a humanização do homem, enquanto sujeito cultural e que tem como principal desafio a superação das desigualdades sociais.

Educação de surdos e educação infantil

A educação de surdos foi um processo em que o interesse não estava em suas possibilidades de desenvolvimento, mas recaía na corrida para atender à crescente produtividade que se demandava, juntamente com o sistema capitalista. E assim, os diversos métodos adotados para corrigir o defeito dos surdos tiveram como ponto de partida sua inserção na sociedade, para que depois fossem utilizados como uma mão de obra barata (SOARES,1999).

Segundo Lacerda e Lodi (2009), a oficialização da Língua de Sinais Brasileira (LIBRAS) para a comunidade surda aconteceu, definitivamente, em 2005, após ser reconhecida, inicialmente, pela Lei nº 10.436 de 2002. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 5.626 de 2005 que, além de reconhecer essa língua, obriga a inserção da Libras no currículo dos cursos de formação de professores, fonoaudiologia, tanto nas esferas das instituições públicas, como nas privadas de todo Brasil. Foi a partir desse momento que iniciaram as discussões em torno da singularidade linguística dos surdos, nos espaços educacionais para o desenvolvimento de práticas de ensino que levassem em consideração essa particularidade.

Atualmente, há uma defesa em torno da educação bilíngue, que seria o ensino da língua de sinais como primeira língua para os surdos e o ensino da língua portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua. Em alguns lugares, como no estado de São Paulo, já existem escolas bilíngues, assim como classes bilíngues dentro de escolas comuns de ensino.

Campello e Rezende (2014) enfatizam que o direito à educação bilíngue é uma luta histórica que os surdos têm atravessado, ao longo dos anos, para terem seu reconhecimento linguístico e cultural por meio de uma educação que seja condizente com suas experiências de vida e que valorize, sobretudo, sua forma de comunicação. Para Quadros (2006), a educação bilíngue depende de decisões político-pedagógicas, pois se configura como uma proposta que demanda ações concretas que precisam, por sua vez, ser implementadas desde a educação infantil, para que a criança surda possa ter acesso a uma língua que possibilite sua aprendizagem.

Mas, há, também, uma defesa de escolas para surdos, que seria uma escola onde a língua de sinais seria majoritária em todos os sentidos. Uma escola onde estes sujeitos possam ser respeitados como seres criativos, tendo como referências acadêmicas professores surdos que atuam em escolas de surdos e o convívio com seus pares (VILHALVA, 2011). Essa proposta parece um tanto radical, porque quando sugere colocar somente surdos em um mesmo espaço, situa a educação de surdos fora de um contexto maior que compõe a sociedade, considerando as lutas de classes.

Para Sá (2011, p. 22),

Ora, os surdos, bem como estudiosos que defendem a escola específica para surdos, não querem a criação de guetos; querem a criação de espaços garantidos para que o surdo se torne mais rapidamente uma pessoa “bilíngue”, e, para tanto, precisa de um ambiente linguístico natural para a aquisição de sua primeira língua, a partir do qual terá condições de desenvolver sua consciência metalinguística, ampliando as possibilidades de aprendizagem da segunda língua. (Grifos da autora)

Nas considerações da autora, percebe-se que há uma supervalorização da língua de sinais nas escolas específicas para surdos, o que não é garantia de que eles terão de fato uma educação de qualidade. Além disso, a proposta tem sofrido algumas críticas em relação à sua forma centralizada de defender a educação de surdos. Lacerda et al (2013) enfatiza que escolas para surdos e educação inclusiva vão além do reconhecimento linguístico, pois implica, principalmente, em atitudes concretas dessas políticas.

Assim como a educação de surdos, a educação infantil também teve, ao longo da história, diferentes concepções. A educação infantil se constituiu, a priori, como assistencialista, funcionando como sendo um favor, e as creches foram consideradas um mal necessário,

Mal, porque sintoma de desajustamento moral ou econômico, sintoma de uma sociedade mal organizada, onde a mulher precisa abandonar a educação dos filhos para ajudar no sustento da família, sintoma do desamparo às famílias numerosas. Necessário, porque sua não existência acarretaria males maiores, como, por exemplo, a dissolução de uma família, a delinquência infantil, um sem-número de crianças débeis-físicas e quem sabe mentais. (VIEIRA, 1988, p.8)

A colocação da autora se dá mediante as propostas e preceitos do Departamento Nacional da Criança (a partir de 1940) a respeito da creche, difundidos até o final de 60, como parte da política de assistência à maternidade e à infância, no Brasil. Neste sentido, a creche como “mal necessário” se consolida como parte de uma estrutura criada na sociedade, para atender seus interesses, já que a mulher passa a trabalhar fora de casa e, para não deixar seus filhos nas ruas, esse modelo de instituição tornou-se necessário.

A provisão de atendimento institucional para crianças pequenas foi inicialmente motivada pela necessidade de proteção e cuidado à crianças vítimas de abandono ou em condição de extrema pobreza, mas principalmente pela necessidade de cuidado das crianças oriundas de famílias da classe trabalhadora, particularmente quando as mulheres se tornaram parte importante da força de trabalho. Nesse sentido, a análise das origens e do desenvolvimento histórico do ensino pré-escolar nos revela que essa prática social surge e se estabelece como tal na sociedade capitalista. (PASQUALINI, 2010, p.78)

A preocupação em oferecer esse atendimento às crianças pequenas não foi uma prática desinteressada, mas proveniente das transformações das estruturas familiares e dos processos socioeconômicos vinculados à industrialização, na qual as mães que, antes ficavam em casa para cuidar de seus filhos, a partir da revolução industrial passam a ser deslocadas para as indústrias e seus filhos deixados nas ruas. Assim, como forma de manter o controle social, criam-se as primeiras instituições para abrigar as crianças pobres. As origens das primeiras instituições de atendimento às crianças menores de 6 anos surgiram em Paris, no final do século XVIII (PASQUALINI, 2010).

Com o avanço da organização social que se estruturava e com a criação de Leis referentes à educação em contexto brasileiro, a educação infantil passa a ser parte da educação básica, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996, destacada como a primeira etapa da educação, sofrendo alterações ao longo dos anos. Atualmente, a educação infantil, dentro da LDB, é descrita da seguinte forma (redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013):

Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.

Art. 30. A educação infantil será oferecida em:

I Creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;

II - Pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade.

Outro documento que enfatiza a educação infantil e suas competências são as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI), criada em 2009, por meio da Resolução nº 5 de 17 de dezembro. Dentro dessa resolução, as interações e as brincadeiras são os eixos norteadores da prática pedagógica. Através dessa resolução, a educação infantil ganha um status importante para o avanço focado no desenvolvimento da criança. É um documento que, além de trazer as interações e as brincadeiras como práticas que devem guiar o trabalho pedagógico do professor, enfatiza também o objetivo principal das instituições de educação infantil.

A proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças. (BRASIL, 2009, p.2)

As instituições de educação infantil, como destacado, devem promover as crianças possibilidades de acesso ao conhecimento de forma que seus direitos de criança sejam respeitados e garantidos, e que não sejam apenas um “lugar” onde as crianças passam o dia todo, ou uma preparação para o ensino fundamental, mas, que cumpra com seu o objetivo de um espaço de educação infantil importante no desenvolvimento integral da criança.

As crianças são seres culturais e precisam se desenvolver de forma integral, sem, portanto, desconsiderar o cuidar como parte desse processo. Elas são sujeitos capazes de estabelecer relações sociais e compreender o mundo a sua volta, por meio das suas vivências, constituídas no meio em que está inserida, que tenham acesso à cultura em sua forma mais elaborada, que suas interações sejam significativas e promotoras de um desenvolvimento capaz de fazer com que as crianças sejam parte do seu processo educativo.

O modo de olhar a educação infantil, assim como a educação de surdos, deve ser pautado na possibilidade de promover ações e atitudes que favoreçam as interações entre as crianças, de modo que elas sejam de fato elemento do meio educativo. Neste sentido, o professor é, também, o responsável por promover essas interações de maneira que as crianças possam aprender e construir conhecimento sobre o mundo que as cerca. Pensar a criança a partir de uma perspectiva que assuma, não sua centralidade, mas uma perspectiva que a coloque como um ser ativo de seu processo educativo, que possibilite a apropriação do saber historicamente produzido, na busca de seu desenvolvimento cultural.

Dessa maneira, a educação de surdos dentro de uma dimensão possível de promoção para o desenvolvimento, desde a primeira etapa da educação, depende do investimento político, dos seus reais interesses em organizar e estruturar uma educação que seja capaz de possibilitar participação ativa de todas as crianças no seu processo de aprendizagem.

Teoria Histórico-Cultural  (THC) e a educação da criança surda

Discutir a educação da criança surda sob a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural nos leva a ter outro olhar sobre a educação dessa criança, fugindo da concepção meramente biológica, da visão clínica como se tinha em épocas anteriores. Situar a educação desses sujeitos dentro desse viés, permite compreender a deficiência além de si, ou seja, a partir das relações sociais construídas historicamente.

Vigotski, em sua obra intitulada Fundamentos da Defectologia, escrita em 1997, discorre sobre o desenvolvimento da criança deficiente. Nos estudos em relação à pessoa com deficiência, o autor escreveu, por volta de 1920, apontando o conceito de deficiência como uma construção social. Em relação à surdez, considerou, a priori, a língua oral como necessária ao desenvolvimento dos surdos, porém, em 1930, percebeu a incompatibilidade no uso da língua oral, passando, assim, a defender uma língua que fosse propícia ao seu desenvolvimento, e considerou que a língua gestual pudesse contribuir nesse aspecto (BARROCO, 2012).

Vigotski (1997) aponta que a deficiência em si não é um problema, mas sim as consequências sociais, ou seja, a partir da relação desse indivíduo com o meio é que se estabelecem as barreiras que podem ser obstáculos para o desenvolvimento dessas pessoas. Tomando a abordagem que tece a Teoria Histórico-Cultural, em relação à deficiência e ao desenvolvimento da criança anormal, Vigotski (1997) ressalta que uma criança deficiente não é menos desenvolvida que uma criança normal. No entanto, ela se desenvolve de maneira diferente, por meio de instrumentos criados pela cultura humana.

Sob esta perspectiva, o homem em sua evolução foi criando outra forma de comunicação, que não aconteceu por um processo natural. Mas, que emergiu, a partir de um obstáculo inicial, dado pelo fator biológico de não ouvir e pela necessidade de se comunicar. Pela privação da língua oral, houve a necessidade de buscar meios que pudessem compensar essa ausência, outros modos de linguagem que estabelecessem a comunicação e a interação social. A linguagem, discutida por Vigotski (2000; 2010) é compreendida a partir da relação com outro..

Assim, o desenvolvimento da criança em uma família de ouvintes é decorrente das relações estabelecidas com o outro (s), desde seu nascimento por meio da linguagem, bem como a constituição de sua subjetividade construída, cotidianamente, nas relações estabelecidas no ambiente familiar e em outros meios sociais. Desta forma, para que o desenvolvimento de uma criança surda se dê de forma semelhante ao de uma criança ouvinte, aquela deve ter contato com interlocutores que lhe  insiram em relações sociais significativas por meio da linguagem e, neste caso, por meio de uma língua que lhe seja acessível visualmente: a língua de sinais. Será, então, por meio das interações estabelecidas com e pela criança que ela poderá ampliar suas relações com o mundo, desenvolver suas funções superiores e, enfim, constituir-se sujeito da linguagem (LODI; LUCIANO, 2009, p.34, grifo nosso)

Os autores destacam que, para a criança surda ter uma língua consolidada, ela não precisa estar, necessariamente, somente entre pares surdos, mas com pessoas  surdas ou ouvintes fora do seu convívio, preferencialmente, usuárias da língua de sinais que lhes propiciem desafios à aprendizagem e apropriação de uma língua. Desta forma, se a criança não for colocada em um meio que favoreça e a constitua enquanto sujeito social e não tiver acesso a uma língua de forma consolidada, pode ocasionar prejuízos em seu desenvolvimento.

Para que essa criança alcance o nível de desenvolvimento mais elevado, o professor deve conhecer as peculiaridades dessa criança, propondo e criando um ambiente capaz de promover experiências enriquecedoras. Vigotski (2010) explica que é necessário oportunizar aos sujeitos a relação entre a forma primária e a forma final do desenvolvimento, ou seja, a forma inicial de desenvolvimento da criança deverá aparecer no final desse processo.

Por exemplo, a criança surda que nasce em uma família de ouvintes que não dominam a língua de sinais certamente não terá acesso a essa língua em sua forma inicial, ou seja, da língua em toda sua complexidade, mas se por outro lado estiver inserida em ambiente onde é possível ter contato com a língua de sinais, ela será capaz de se apropriar desta língua.

Dessa maneira, ter contato com um falante fluente na língua de sinais o mais breve possível é possibilitar à criança com surdez o desenvolvimento da língua de sinais. Assim como acontece com os ouvintes, para os surdos essa interação entre a forma primária e a forma final é essencial para a aquisição de uma língua e para garantir a possibilidade de aprendizagem.

Combinemos que essa forma desenvolvida, que deverá aparecer no final do desenvolvimento infantil, será chamada, assim como fazem na pedologia contemporânea, de forma final ou ideal – ideal no sentido de que ela consiste em um modelo daquilo que deve ser obtido ao final do desenvolvimento – ou final – no sentido de que é esta a forma que a criança, ao final de seu desenvolvimento, alcançará. Chamemos a forma da fala da criança de primária, de forma inicial. (VIGOTSKI, 2010, p. 693)

Quando a criança surda possui a vivência com crianças mais velhas ou com adultos que dominam a língua e, por isso, encontram-se na forma final desta função psíquica superior, possibilita-se que aquelas que ainda estão balbuciando tenham uma aquisição mais rápida da língua.

Assim, percebe-se a importância do professor conhecer e conduzir a criança à forma ideal de desenvolver suas capacidades humanas, por meio de atitudes favoráveis à geração de autonomia e autoconfiança, assim como na promoção do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, que são aquelas que o homem desenvolveu ao longo de sua evolução como espécie humana como a memória, o pensamento, o raciocínio e principalmente a linguagem (VIGOTSKI, 2000).

A partir das funções superiores, pode-se destacar a linguagem como um processo de comunicação, que acontece na relação com o outro de maneira externa, primeiro no âmbito social e, somente depois, ela se torna uma função interna, ligada ao pensamento da criança. Foi por meio da linguagem que o homem criou e aperfeiçoou novos instrumentos, a partir dos que já existiam de maneira que pudesse suprir as necessidades que surgiam no decorrer de sua evolução.

Duarte (2013) aponta que a linguagem se constituiu num instrumento fundamental para o desenvolvimento da espécie humana se diferenciar dos outros animais, a objetivação deste signo entre os homens significou o acúmulo de experiência. Gerada a partir da síntese da atividade humana, é a transferência do acúmulo dessa experiência, ou seja, dos instrumentos da cultura humana que o indivíduo precisa se apropriar para o seu desenvolvimento e conhecimento do mundo e de si mesmo.

Sobre o desenvolvimento humano, Vigotski (1996; 1997) deixa claro que uma pessoa com deficiência não é menos desenvolvida que uma pessoa normal, mas expõe que a pessoa com deficiência precisa de meios favoráveis que lhes possibilitem alcançar seu desenvolvimento, e escreveu sobre o processo de compensação, na superação do que ele chama de defeito, que seria a deficiência.

O mecanismo básico da compensação e da supercompensação de um defeito parece ser o seguinte: o defeito torna-se o centro da preocupação do indivíduo e sobre ele constrói uma certa “superestrutura psicológica", que busca compensar a insuficiência natural com persistência, exercício e, sobretudo, com certo uso cultural de sua função defeituosa (caso seja fraca) ou de outras funções substitutivas (caso totalmente ausente). Um defeito natural organiza a mente, dispõe-na de tal modo que é possível o máximo de compensação. E, o que é mais importante, cria uma enorme persistência em exercitar e desenvolver tudo quanto possa compensar o defeito em questão. Como resultado disso, surge um quadro singular inesperado: uma pessoa com visão fraca que não te permite estar em condições de igualdade com os outros, fato que a torna inferior, concentra sua atenção sobre esse defeito e dirige toda sua atividade neuropsicológica para o defeito. Essa visão fraca desenvolve uma capacidade especial de fazer o máximo uso da informação que recebe visualmente de modo a tornar-se uma pessoa cuja visão seja central em seu trabalho um artista, um desenhista e assim por diante. (VIGOTSKI; LURIA, 1996, p.222)

A ideia tecida pelos autores deixa claro que é possível sim uma criança deficiente se desenvolver e compensar seu defeito, neste caso, pode-se mencionar os surdos que, ao longo da história humana, criaram a língua de sinais, como alternativa para seu desenvolvimento. Desta língua, pode-se dizer que possibilita a aquisição de um sistema de signos que pode permitir a aprendizagem de conteúdos científicos ou de qualquer outro. Assim, também, os cegos, ao criarem o sistema Braille, que não é uma língua, mas é, também, um instrumento que pode facilitar a apropriação da cultura humana. Dessa maneira, a lei da compensação, formulada por Vigostski (1996; 1997), não é um processo mecânico, mas uma construção social que se dá nas relações interpessoais, entre os homens, e nas condições reais que cada indivíduo possui para o seu pleno desenvolvimento cultural.

Partindo desses pressupostos relacionados à lei da compensação, destaca-se mais uma vez a surdez, pois não se pode afirmar, por meio de uma visão empírica, que o ato compensatório da “visão apurada” que os surdos desenvolvem aconteça de forma natural e espontânea, se assim fosse, estariam limitados apenas ao fator biológico, o que Vigotski (1997; 2000) não descarta, mas também não considera ser determinante no desenvolvimento humano. Mas, para a criança surda desenvolver essa compensação, o meio social em que esteja inserida deve ser favorável, para que ela crie meios e possibilidades de enfrentar seu defeito que acontece na relação com os outros. Diante dessa compreensão, ao nascer ou adquirir a surdez, a criança imediatamente não desenvolve a habilidade com a visão ou outro meio de compreender e estabelecer relação com o outro, mas precisa, necessariamente, de um meio capaz de lhe fazer se apropriar de novas habilidades e oportunizar o seu desenvolvimento intelectual.

Assim, a educação da criança surda não pode ser pautada em sua deficiência. É preciso reconhecer que, antes de sua deficiência, existe uma criança e a ela não pode ser negada uma educação que possibilite o seu desenvolvimento. Para Vigotski (1997), a educação da criança deficiente não deve ser considerada em segundo plano, mas deveria ter uma atenção com mais respeito, pois tanto a educação da criança deficiente quanto da criança normal, determina o que ela pode aprender ou não. A não aprendizagem pode se tornar um fator prejudicial ao seu desenvolvimento, porque estaria limitando o acesso ao conhecimento.

E ainda sobre o reconhecimento da criança antes de sua deficiência, Klein e Silva (2012, p.23) apontam que

O tema das, assim designadas, deficiências individuais é complexo e delicado, uma vez que, por muito tempo, restou marcado por análises reducionistas e preconceituosas, quer sob a forma de ‘explicações’ de conotação religiosa, que vinculavam a deficiência a uma obscurantista ideia de purgação dos pecados, quer sob o manto de um discurso ‘científico’ de teor biologista-higienista. Por outro lado, na necessária batalha contra o preconceito, não raro o tema é aprisionado na redoma de algumas prescrições ‘politicamente corretas’, ingênuas e imobilistas porque falseiam o núcleo da questão. As contradições implicadas nas relações sociais dos sujeitos com algum tipo de deficiência ficam, assim, sem possibilidades de superação, quando as análises abordam apenas uma das faces do antagonismo: a dimensão ético-moral da ‘diferença’. (Grifos das autoras)

As autoras salientam que, frente aos estereótipos direcionados às pessoas  com alguma deficiência, situam-se, dentro do campo da dimensão ético-moral, fundamentados em uma visão do bem aparente, reconhecer essas pessoas apenas em sua diferença, como se fossem constituídas em um núcleo particular da sociedade. Isso representa de certa maneira um ponto negativo, pois restringe as possibilidades de superar esse antagonismo de rotulações que a sociedade culturalmente construiu em relação  a essas pessoas.

A dimensão apontada pelas  autoras se dá pelas contradições que envolvem a condição das pessoas com deficiência, que não são levadas em consideração. A isso Bueno (1998) considerou questões de classe, de raça e de gênero, como, também, determinantes desse processo. E a teoria históricocultural corrobora apontando que antes da deficiência impedir que a pessoa se desenvolva e tenha acesso aos bens produzidos pela humanidade, a sociedade é quem limita seu espaço e determina de forma desigual as condições de seu acesso.

Metodologia

A pesquisa foi realizada em uma Unidade Municipal de Educação Infantil (doravante UMEI), localizada na área urbana do município de Santarém/Pará. Santarém está localizada na mesorregião do Baixo Amazonas, à margem direita do rio Tapajós, sendo a terceira maior cidade do Estado do Pará e o principal centro socioeconômico do Oeste do Estado, porque oferece melhor infraestrutura econômica e social (como escolas, hospitais, universidades, estradas, portos, aeroportos, comunicação, indústria, comércio e etc.) e, ainda, por possuir um setor de serviços mais desenvolvido. Possui uma área de 22.886,624 km², sendo que 77 km² estão em perímetro urbano (Estimativa/IBGE/2013). Em frente à cidade, o rio Tapajós se encontra com o rio Amazonas, formando o famoso encontro das águas, um dos principais cartões postais da cidade.

No movimento de compreender o objeto de estudo, o fundamento teórico metodológico deste trabalho foi inspirado, a partir da concepção do materialismo histórico dialético, no qual a teoria histórico-cultural está sustentada, tomando como base a realidade concreta em que o objeto se encontra. Além disso, captando, também, o fenômeno em sua complexidade e profundidade, suas partes constituintes, e as mudanças sofridas, observando sempre seu movimento real. A concepção do materialismo histórico dialético, segundo Duarte (2000), fundamenta-se na perspectiva da realidade concreta em sua totalidade, das relações existentes e construídas historicamente, na sociedade.

Os procedimentos adotados para a produção de dados consistiram em entrevistas com roteiro semiestruturado, para os professores ouvintes e o professor surdo. A entrevista com os professores ouvintes foi gravada. Quanto ao professor surdo, a entrevista foi filmada, para que depois fosse transcrita da Libras para o Português. Também foram realizadas observações das atividades desenvolvidas dentro e fora da sala de atividades e anotadas, em diário de campo. As observações se concentraram em uma turma de Pré-escola (Pré I) em período integral, na qual a criança surda estava matriculada, composta por 13 crianças. Esse estudo teve dois momentos de observações, o primeiro em 2018 em que a criança frequentava o Pré I em período integral e o segundo momento em 2019 quando passou para a turma de Pré II em horário parcial.

Em relação ao diário de campo como instrumento de pesquisa, Vieira (2002, p.98) ressalta:

O diário como recurso de pesquisa favorece o registro do fenômeno investigado com toda a variabilidade do objeto em diferentes momentos. Cabe salientar que o diário, dada a sequencialidade do fenômeno descrito, permite obter o resumo e o comentário dos fatos.

Essa técnica de pesquisa, para a construção dos dados, permitiu-nos registrar acontecimentos em diferentes momentos que, por si só, o pesquisador não poderia ser capaz de registrar, mas que, com o auxílio do diário de campo, poderia recorrer aos seus registros de forma mais autêntica. Quanto à observação, optamos por este recurso por nos deixar mais próximo do nosso objeto, sem, contudo, tomar uma visão aparente dos fatos. Sobre o processo de observação, Lüdke e André (2012, p.25) enfatizam que “para que se torne um instrumento válido e fidedigno de investigação cientifica, a observação precisa ser antes de tudo controlada e sistemática. Isso implica a existência de um planejamento cuidadoso do trabalho e uma preparação rigorosa do observador”.

Isso requer, também, que o pesquisador, ao tomar esses instrumentos nas pesquisas, deve tomar cuidado ao analisar os fatos ocorridos de forma imediata. Desse modo, é preciso conhecimento e dimensão dos acontecimentos, planejamento do que se vai observar, para não tomar qualquer movimento relacionado ao objeto de estudo como verdade absoluta, sem contextualizar a realidade em que está inserido.

Em 2018, quando as observações iniciaram, a criança surda tinha duas professoras ouvintes e um professor surdo que a acompanhavam três vezes na semana. Em 2019 essa criança passou a ter duas professoras ouvintes, sendo uma da sala regular e a outra que fazia o atendimento especializado. Os professores foram determinados pelas siglas professora P1; professora P2; professora P3; e professor surdo PS. Para a criança adotou-se o nome fictício de Ana.

Resultado dos dados a partir da análise da interação da criança surda e seus professores.

Por meio dos dados produzidos procurou-se observar como acontecia a relação entre a criança surda e seus professores, e como essa interação influência em seu desenvolvimento. Para isso, buscou-se compreender como os professores se comunicavam com a criança surda para que ela participasse do meio educativo. A estrutura das análises será realizada através de episódios e das entrevistas.

A comunicação entre a criança surda e seus professores

Antes de relatarmos como acontecia a comunicação entre criança surda e seus professores foi preciso compreender o conceito de interação, para que assim pudesse caracterizar o modo pelo qual ela acontece, entre os sujeitos envolvidos nesta pesquisa. O conceito de interação parte do princípio da interlocução entre duas partes, ou seja, de acordo com Rego (1995, p. 59), para Vigotski a interação social é fundamental no desenvolvimento do ser humano, que começa desde o nascimento da criança.

Desde o nascimento, o bebê está em constante interação com os adultos, que não só asseguram sua sobrevivência, mas também medeiam a sua relação com o mundo. Os adultos procuram incorporar as crianças à sua cultura, atribuindo significado às condutas e aos objetos culturais que se formaram ao longo da história.

É essa relação com o adulto que vai mediar sua interação com o mundo, além de ocupar lugar central nesse processo, pois a criança começa a interagir socialmente, desde o seu nascimento, em contato com a mãe, de modo que vai inserindo os elementos presentes na cultura humana. Neste sentido, esse conceito de interação é tomado como um movimento que ocorre na relação entre sujeitos de forma recíproca. Partindo desse pressuposto, compreende-se que

A Educação Infantil, como um contexto de desenvolvimento, é um lugar privilegiado para que, através das interações, as crianças aprendam a articular os próprios interesses e pontos de vista em relação aos demais, priorizando a vida em coletividade através, por exemplo, da colaboração, solidariedade, oposição/conflito e respeito. (COSTA, 2011, p. 15)

Essas interações devem acontecer de forma que as influências do meio contribuam para que essa criança possa participar das trocas de experiências nesse ambiente. São pelos processos interativos que a criança consegue se desenvolver e estabelecer relação com o outro. É importante enfatizar que as interações, seja em contato com objetos, seja nas brincadeiras, precisam ser recíprocas e não mecanizadas, ou seja, têm que fazer sentido. Nesse aspecto, destaca-se a importância de oportunizar às crianças situações interativas que favoreçam seu desenvolvimento.

Falar de interação, sem relacionar à linguagem, sendo esta a base de desenvolvimento de todas as funções psíquicas superiores, seria quase que impossível. A linguagem, como fonte das propriedades humanas superiores, em sua essência social, desenvolve-se na relação com o outro. Como já apontado ao longo do texto, é ela que dá significado ao pensamento e externaliza o que se reconstrói no plano interior. Por isso a importância de estabelecer uma comunicação.

Quando uma boa comunicação não faz parte da relação entre as pessoas, tudo pode se tornar um caminho mais difícil e, quando se presencia uma situação que envolve criança, ainda mais uma criança que se comunica e compreende o que estão lhe falando de maneira diferente, é muito mais complexo. Entender que existem outras maneiras de se comunicar, que não seja necessariamente pela língua oral, pode ser um caminho possível de realizações. É importante esclarecer que a comunicação aqui mencionada não é simplesmente aquela que se utiliza para o aprendizado da Língua Portuguesa, mas aquela que possibilite a criança alcançar seu desenvolvimento.

Neste sentido, deixa-se claro que a criança surda aqui apresentada ainda não tinha uma língua constituída. Ana conheceu a Libras, no ano de 2018, quando passou a ter contato com o professor surdo. O interesse em fazer alguns sinais, quando o professor estava lhe ensinando, era momentâneo, pois qualquer situação que estivesse acontecendo, ao seu redor, tirava-lhe a concentração e a vontade em fazê-los novamente. O professor ensinava o alfabeto, números, sinais de animais, frutas, entre outros. Discorrer sobre como acontecia a comunicação da criança surda e seus professores foi o foco construído para entender a forma que eles encontravam para interagir com aquela criança.

Durante as observações percebeu-se vários acontecimentos, entretanto aqui destacam-se os mais relevantes, aqueles que mais marcaram por suas características determinantes com que ocorreram. No episódio a seguir, poderia ser uma oportunidade de vivenciar novas experiências, tanto para a criança surda, assim como para o adulto, no caso, o professor. Porém, na cena presenciada, que envolveu a P1, a possibilidade de estabelecer alguma comunicação que favorecesse a troca de experiências não aconteceu:

P1 arrumou as cadeiras e as mesas e pediu que as crianças sentassem para desenvolver a atividade do dia, exercícios que envolviam os numerais. Professora falava e falava, e Ana apenas olhava para seu rosto como tentando entender o que a professora gesticulava. Como forma de fazer com que as crianças, “compreendessem” a atividade direcionada, a professora se direcionou para o quadro branco, e de costas mostrava os numerais pedindo que elas dissessem o nome dos números. Ana olhava para seus colegas e, sem compreender, apenas observava a professora. (NOTAS DE CAMPO, 14/08/2018)

Nesta situação, parece não haver respeito por parte da docente, uma vez que ela sabia da condição de Ana em compreender o que está sendo passado naquele momento. Agindo daquela maneira, demonstrou não ter dimensão das consequências e negação em não envolver aquela criança na atividade proposta. Diante dessa cena, salienta-se que o papel do professor não é transmitir o que ele considera ser importante, mas sim entender que, na turma, tinha uma criança que necessitava de um pouco mais de sua atenção. Todavia, em nenhum momento houve essa preocupação, ou talvez a professora não soubesse como se comunicar com aquela criança.

Em outro acontecimento, agora com a P2, a situação se invertia.

Todos os dias a professora (P2) fazia uma roda de conversa para saber o que as crianças tinham realizado de atividades com a professora da manhã, Ana apenas olhava para a professora concordando com os relatos de seus colegas. A professora então chegava até Ana e, olhando em seus olhos, perguntava-lhe, você fez suas atividades? Ana respondia sempre sorrindo. (NOTAS DE CAMPO, 20/08/2018)

A ação dessa professora se configurou como uma postura positiva, pois demonstrou uma certa preocupação em relação ao que as crianças tinham realizado com a professora da manhã. E sempre que se direcionava à Ana olhava em seus olhos e procurava estar na mesma altura que essa criança. Isso significa que tinha o cuidado ao se comunicar com ela. Percebe-se que as duas professoras participavam do mesmo contexto escolar, mas a diferença entre ambas refletia em suas atitudes.

Estabelecer uma comunicação que seja compreensível é fundamental em qualquer processo de formação humana. É neste sentido que a linguagem para Vigotski (2000) ocupa lugar central nas relações sociais e no comportamento cultural da personalidade. A linguagem é assim tomada como um dos instrumentos semióticos essenciais da criação humana. Para esse autor, a linguagem é, primeiramente, um meio de comunicação entre as pessoas, ou seja, no seu início, tem apenas a função de interlocução, porém, é gradativamente, que a linguagem se torna interna e um meio de pensamento que está diretamente ligado à história do desenvolvimento cultural. Sobre a linguagem e seu papel na interação entre os sujeitos, o episódio descrito retrata uma dada situação.

A P1 pediu para todas as crianças sentassem nas cadeirinhas e começou a falar sobre os acontecimentos do dia anterior, chamando a atenção de algumas “crianças que tinha se comportado mal”. Em seguida, diz que todos estavam proibidos de pegar os brinquedos, porque no dia anterior não haviam guardado. Ana ficou sem entender o que a professora estava falando, e olhava para seus colegas ao seu lado, buscando alguma maneira de compreendê-la. (NOTAS DE CAMPO, 25/10/2018)

Neste episódio, fica evidente mais uma vez que a atitude da professora em relação à criança pouco importava, o importante era repassar às crianças a sua repreensão por conta do comportamento delas que, segundo a professora, não foi exemplar. Diante da situação exposta, algumas crianças saíram da sala correndo e uma criança acabou se machucando. A falta de sensibilidade, por parte dessa professora, reflete uma postura que cotidianamente ocorria, observada, praticamente, durante o tempo em que estive presente.

Se a comunicação surgiu da necessidade do homem modificar a natureza e agir sobre ela por meio dos instrumentos que ali estavam presentes, isso aconteceu não por forças biológicas, mas a partir da relação social construída com outros homens interagindo entre si, ou seja, toda comunicação é impulsionada por elementos externos à criança. Neste sentido, percebe-se que a professora não procurou fazer com que Ana participasse daquele momento. O que se pode considerar, ao analisar essa situação, é que a deficiência de Ana, no caso a surdez, ganhava destaque, em vez da criança. Desse modo, a atenção se voltava ao que ela não tinha em vez de possibilitá-la a superar aquele defeito.

Em relação a forma de comunicação que os professores estabeleciam com a criança surda, tinha de certa maneira uma concepção que adotavam sobre a educação de surdos. Em entrevista, eles deixavam claro a respeito.

A gente vai interagindo com ela, buscando mais conhecimentos e aprendendo também, tenho uma concepção de que não é fácil trabalhar com crianças assim, mas a gente tenta. (P1, 2018, p.1)

Uma concepção voltada a atender as necessidades dessa criança, para ela participar como as outras crianças. (P2, 2018, p.1)

Percebe-se, nas falas das professoras acima, que elas tinham a compreensão da dimensão que envolvia o trabalho com a criança surda. Precisavam, portanto, trabalhar de maneira a não deixar aquela criança fora do contexto do qual participava, no caso da escola. No entanto, os discursos acima não eram condizentes, muitas vezes, com a prática que elas utilizavam com essa criança. No que concerne ao trabalho da P1, essa questão era mais evidente, pois sua fala mostrava-se contrária ao que ela exercia em sua prática, isso pôde ser verificado por meio das observações feitas. Sua falta de sensibilidade era um fator recorrente diante de seu comportamento para/com a criança surda. A P2 se mostrava um pouco mais sensível, tinha certo cuidado ao se dirigir e envolver Ana nas atividades.

Em 2018, quando foi iniciado o período de observações, como mencionado anteriormente, Ana foi acompanhada por um professor surdo (doravante PS), que três vezes na semana fazia o atendimento que alternava entre manhã e tarde. Esse atendimento tinha duração de duas horas, e ocorria na sala de atividades junto com as demais crianças. Ressalta-se que a Umei não tinha sala de AEE, lugar onde deveria acontecer esse atendimento, em contraturno ao horário da sala regular.

O trabalho que o PS realizava, com a criança surda, era pautado em uma concepção de que para a educação de surdos acontecer era preciso ter nas escolas o acesso à Libras, como afirmou em entrevista:

É bom estar se comunicando com os ouvintes. A educação de surdos é boa, mas falta a Libras nas escolas, porque não tem. Então é bom ter criança surda na educação infantil e a Libras se ensinada desde a educação infantil, porque a gente aqui quase não vê crianças surdas na educação infantil, ainda é muito carente, tem mais no ensino fundamental.  (PS, 2018, p.1) (GRIFOS MEUS)

A visão do PS, em relação à educação de surdos, demonstra que ele vê a Libras como uma necessidade nas escolas, o que implica que deveria ser inserida desde a educação infantil. A concepção desse professor refletia, também, no modo como ele desenvolvia o seu trabalho com a criança surda, ao mostrar preocupação em fazer com que ela aprendesse a Libras e compreendesse o que acontecia à sua volta. O professor, também, algumas vezes, ensinava às crianças ouvintes alguns sinais de saudações (como bom dia, boa tarde, boa noite, tudo bem, eu te amo) - sinais básicos para que as crianças pudessem falar como ele e com Ana. As crianças gostavam e aprendiam rapidamente.

A questão de ensinar alguns sinais para crianças ouvintes partia realmente da necessidade de estabelecer uma comunicação entre estas crianças e Ana. Na entrevista realizada com o PS, uma das questões levantadas foi como ele avaliava a inclusão da criança surda na educação infantil. Sua resposta foi a seguinte:

Ter um ouvinte que não sabe Libras e uma criança surda a comunicação é difícil, mas quando estou perto sempre ajudo a criança surda. Mas, é bom quando os coleguinhas tentam ajudar apontando com dedo e também ensino alguns sinais. Ainda precisa melhorar a inclusão desde a educação da criança surda. Porque fica difícil trabalhar na mesma sala e os professores não sabem Libras, então fica difícil a comunicação. (PS, 2018, p.1)

Percebe-se, no trecho da entrevista, que mais uma vez o professor ressalta ser a comunicação um fator que precisa de atenção quando se tem uma criança que se comunica e compreende de forma diferente, destacando que, para isso, as políticas de inclusão precisam melhorar, desde o âmbito da educação infantil. Como já mostrado anteriormente, a inclusão não termina com a matrícula de uma criança deficiente na escola regular, ela precisa criar e reestruturar meios e possibilidades de forma que essas crianças permaneçam na escola, tendo acesso ao conhecimento e que possam se desenvolver.

Como já descrito, no início desta categoria, o contato de Ana com a Libras aconteceu em 2018, quando o professor surdo passou a trabalhar com ela. Ainda estava em processo de aprendizagem desta língua, demonstrando ter interesse, mas se algo estivesse acontecendo ao seu redor, perdia o foco. Lacerda et al (2009; 2013), uma estudiosa da educação de surdo, diz que a criança surda deve entrar em contato desde cedo com língua de sinais, mas como muitas dessas crianças são filhas de pais ouvintes, o processo se torna mais difícil de apropriação desta língua, de forma que a evolução da comunicação ou não é favorecida, ou é bastante dificultada, para o desenvolvimento da linguagem da criança.

Em 2019, quando retornei à Umei para mais um período de observações, Ana tinha apenas duas professoras ouvintes, a P2 e a P3 do AEE com quem foi realizado a entrevista nesse ano. A P3 afirmava ter a seguinte concepção: “minha concepção é de uma educação voltada à aprendizagem da criança surda de forma natural. E eu fui orientada a trabalhar a linguagem oral e não a Libras com ela” (P3, 2019, p.1).

Diante dessa acepção, pode-se inferir que ter uma concepção que coloque a criança como sujeito que está apenas para receber as informações sem participar do processo não significa contribuir para seu desenvolvimento e deixa uma centralidade apenas, na deficiência da criança. A concepção da professora recai sobre o fato de que a aprendizagem da criança surda acontecia de maneira natural, ou seja, que não precisava do outro para se desenvolver, como se ela fosse apenas resultado do meio em que estava. Essa visão naturalista implica na descaracterização das relações sociais entre os indivíduos como meio de interação e constituição dos sujeitos.

Dessa maneira é que a comunicação entre a P3 e a criança surda se estabelecia, por meio de um processo de estímulo-resposta. Uma concepção criticada por Vigotski (2000), em que seu objetivo se condicionava em resultados pré-determinados, e que de fato não possibilitava à criança desenvolver suas funções psíquicas. Isso era o que acontecia com aquela criança, ao oralizar palavras soltas, sem compreender o sentido e sem internalizar de maneira significativa o exercício daquela prática. O que não significava que oralizar palavras soltas fazia com que a criança construísse frases no plano da abstração. Em resumo, tal prática representava uma forma de comunicação que centrava no ajuste da deficiência da criança, e não de que forma aquela prática podia resultar no seu desenvolvimento. O objetivo final era conduzir o máximo que fosse de palavras soletradas pela criança. Essa mudança de trabalho com a criança foi um processo sentido não apenas pela criança, mas também pela P2 do ensino regular, que, por várias vezes, chegava comigo e relatava que o trabalho que a P3 desenvolvia com Ana não ajudava em seu processo de aprendizagem, e a saída do professor surdo tinha deixado uma lacuna, porque estava mais difícil se comunicar com ela. Além disso, a P3 não contribuía para que essa realidade comunicacional melhorasse. O trabalho dessa professora estava pautado no processo de aquisição da oralização, isso ficou evidente em sua entrevista.

Percebe-se claramente que houve um impacto bastante significativo no processo de ensino aprendizado da criança surda. Houve uma mudança de prática, uma mudança de concepção anteriormente construída, e que logo em seguida foi descartada. Essa criança, que estava em processo de conhecimento de uma língua, passava agora por outras práticas que determinavam ser a mais adequada para o seu desenvolvimento. Novamente, percebe-se, aqui, uma preocupação com a deficiência da criança e não exatamente com a forma com que poderá se desenvolver e se apropriar de uma língua.

Sendo assim, a ênfase que o professor surdo dava ao ensinamento da Libras para a criança surda estava contida em uma concepção voltada à prática de uma língua que fosse acessível e compreensível, mas que, também, esbarrava na formação do professor do ensino regular. Tal constatação ficou clara, na entrevista, quando as duas professoras ouvintes relataram não ter formação para trabalhar com a criança surda.

De forma particular não tenho nenhuma formação. E a Secretária Municipal de Educação (Semed) também não ofereceu nenhuma formação para nós, e a Semed também só vai mandando essas crianças sem oferecer nenhum tipo de formação, aí temos que nos virar como pode. (P1, 2018, p.1)

Ainda não tenho, mas tenho interesse em fazer. Como esse ano tive o privilégio de ter uma criança surda na minha sala, foi bem diferente, interessante despertou a necessidade de inserir na minha vida profissional fazer uma formação, é uma necessidade. Recebemos essa criança e trabalhamos dentro de nossas possibilidades, a Semed não nos deu nenhuma formação e se queremos ter alguma formação é da nossa parte, de forma particular. Na minha graduação, tivemos apenas algumas palestras e minicursos voltados para essa área, mas não tivemos disciplinas específicas. (P2, 2018, p.1)

A questão levantada foi se as professoras tinham alguma formação para trabalhar com a criança surda e quem tinha oferecido essa formação. Como perceptível nos trechos acima, as professoras frisaram que não tinham nenhuma formação para trabalhar com a criança surda, o que poderia estar repercutindo em suas práticas. Além disso, as professoras foram bem enfáticas ao afirmarem que a Semed, também, não tinha oferecido nenhuma formação, e a P2, ainda, ressaltou que se fosse fazer teria que ser de forma particular. Sobre a formação, Padilha (2009, p.133) destaca que

A abordagem dessa questão supõe uma análise de dois grandes desafios que os professores das séries iniciais têm enfrentado: um deles refere-se à própria identidade – “ser professor”-, ou seja, sua profissão exige conhecimentos e práticas que os cursos de formação inicial e nem sempre têm atingido abordar e que a chamada “formação continuada” não tem atingido na profundidade necessária. Outro desafio diz respeito às “propostas de inclusão”. O medo, as dúvidas e principalmente os mitos têm acompanhado os professores, causando confusões teóricas, práticas pedagógicas inadequadas e frustrações.

Essa queixa sobre a formação de professores tem causas para além da sala de aula, pois envolve de fato a implementação de políticas públicas, e os desafios que a autora destaca não estão isolados dessas políticas e fazem parte de uma realidade desafiadora. Os professores, muitas vezes sem ter como “bancar” uma formação específica, são também vítimas de um sistema que monopoliza e fragmenta o trabalho docente de forma desigual. Quem sofre as consequências dessa fragmentação são as crianças e, em se tratando de crianças deficientes, sofrem muito mais, pois desde a educação infantil já enfrentam dificuldades e negação de uma educação que lhes possibilite desenvolver-se para além de suas deficiências.

Em relação à formação dos professores do AEE, tanto o PS quanto a P3 afirmaram possuir, e ainda frisaram que a Semed também ofereceu formação para eles, como demonstra os trechos das entrevistas: “sim tenho Libras, fiz curso para me aprimorar. Mas, também, a Semed ofereceu formação na educação especial” (PS, 2018, p.1); “Eu tenho uma especialização em educação especial, fiz um curso de Libras, mas como não vim trabalhar a Libras com ela, utilizo a linguagem oral. Mas, também, teve formação oferecida para os professores da educação especial e quem fez foi a Semed” (P3, 2019, p.1).

Nota-se que houve uma discrepância entre os professores do ensino regular e do AEE, no que tange ao acesso à formação. Houve somente a preocupação no desenvolvimento do trabalho do professor do atendimento educacional especializado, enquanto para os demais professores não se teve a mesma atenção. Neste sentido, fica claro que, enquanto não for trabalhado de maneira a envolver todos os professores nesse processo, no que tange à inclusão, ficará sempre um responsável pela educação desses sujeitos. Por conseguinte, a responsabilidade recai ao professor do AEE, demonstrando que a educação dessa criança estava centralizada em sua deficiência, e não em suas possibilidades de se desenvolver enquanto sujeito cultural.

Diante dos apontamentos realizados, percebeu-se que os professores se comunicavam muitas vezes sem levar em consideração a especificidade da criança surda, isso se referia aos professores ouvintes. Os dados descritos revelaram que, mesmo os professores tendo conhecimento da forma de comunicação da criança surda, a falta de sensibilidade era recorrente e o não compromisso em assumir suas responsabilidades, enquanto possibilitador de conhecimentos, era secundarizado. Essa falta de compromisso era refletida em suas condutas e em suas práticas pedagógicas que, em vez de possibilitar que ela fosse um sujeito presente do meio educativo, colocava-a fora desse contexto. A comunicação aqui compreendida estava para além de um simples artefato de relação entre os sujeitos, mas antes como um instrumento de apropriação da linguagem de forma que a criança pudesse organizar seus pensamentos e internalizar os conhecimentos adquiridos.

A partir das análises tomadas e da proposta que a teoria histórico cultural baseada no materialismo histórico dialético defende, não se pode deixar de analisar o todo que compõe e fazem parte do objeto, imerso em contradições que constitui  um processo em que a desigualdade social é vista como algo naturalizado, em que estão submetidos não somente os deficientes, mas todos que estão a margem de um sistema nefasto e excludente.

Considerações finais

Ao discutir a educação da criança surda, a partir de sua interação, na educação infantil, foi possível enxergar a dimensão que existe, nesse processo, e as lacunas que precisam ser preenchidas, para que, de fato, o desenvolvimento cultural da criança surda na constituição de sua subjetividade possa acontecer.

Entende-se, neste sentido, que as interações não acontecem somente no meio escolar. Portanto, elas podem acontecer, sim, em outros meios sociais. Ao buscar problematizar sobre essa questão, partiu-se do pressuposto de que é no meio educacional que os conhecimentos devem ser organizados.

No que tange à primeira categoria analisada, procurou-se problematizar como se estabelecia a comunicação entre os sujeitos da pesquisa. Em diversos momentos, observou-se uma postura grosseira e insipiente por parte da P1. Pode-se concluir que a sua conduta não proporcionava a possibilidade de interação que pudesse favorecer a participação da criança surda.

Vigotski (2000) e Duarte (2013) afirmam que a comunicação entre os homens surgiu da necessidade de intervir na natureza para que dela pudesse se apropriar e se objetivar, o que aconteceu em contato com outros homens, ou seja, por meio de suas relações sociais. Logo, percebe-se que a comunicação como um instrumento de signo da linguagem se dá primeiro no meio exterior, para que depois se torne interna, sendo um processo que acontece na interação com os outros.

Por meio das atitudes inconsistentes da P1, percebia-se uma certa recusa, ou falta de interesse mesmo, em olhar para aquela criança e perceber que existia ali um ser humano que precisava de sua atenção que, enquanto professora, caberia a ela o papel de organizar o ambiente escolar para que aquela criança pudesse participar ativamente de seu processo educativo.

Assim, deixar aquela criança fora desse contexto, imprimia uma concepção de aceitação da mesma, por forças das políticas inclusivas. E isso ficou evidente, quando em entrevista questionou-se como se estabelecia sua relação com a criança surda, P1 respondeu dizendo que acontecia naturalmente e que a atenção que lhe dava era igualmente entre todas as crianças. Destaca-se essa questão pelo fato de a professora não ter dimensão do quanto a sua atitude gerava uma visão advinda muito do senso comum. Considerar que eram iguais pelo simples fato de serem crianças. Poderia dizer que isso é um erro comum entre os professores, mas a questão aqui sugere que generalizar que todas as crianças são iguais não significa que todas se desenvolvam da mesma maneira e compreendam o mundo pelas mesmas circunstâncias. E isso implicava como a professora se comportava diante dessa criança.

Por outro lado, a P2 demonstrava ter uma compreensão mais sensata em comparação a sua colega. Sua postura se configurava em perceber que existia uma criança com uma condição singular e para manter uma relação que a coloca dentro das situações, sempre se direcionava a ela olhando nos olhos, sempre na mesma altura, e não demonstrava ter uma postura autoritária com as crianças. A atitude dessa professora, ao se dirigir à criança surda, repetia-se todas às vezes com a mesma característica.

Em relação à professora P3 que realizava o atendimento especializado com a criança surda, a questão observada estava ligada à prática exercida para que ela compreendesse o que a professora lhe falava. Sobre isso, era realizada uma espécie de oralização, em que a criança tinha que repetir as palavras que a professora proferia. Diante dessa situação, tira-se a seguinte conclusão: a professora não estava ali para realmente fazer com que aquela criança se desenvolvesse de forma integral, mas para que desenvolvesse o máximo possível de palavras oralizadas.

Quanto ao professor surdo, a comunicação era centrada em ensinar a criança para que ela aprendesse os sinais que utilizava para interagir com ela. Ele calmamente a ensinava, sempre olhando fixo em seus olhos, buscando compreende-la para que não se sentisse insegura e realizasse com cuidado os sinais ensinados.

Diante dos apontamentos realizados e sistematizados a partir da Teoria Histórico-Cultural compreende-se a importância que essa teoria tem no desenvolvimento humano, e especialmente os estudos voltados à pessoa com deficiência, quando aponta que o defeito biológico não é mais grave do que as barreiras impostas pela sociedade, que toda criança para se desenvolver precisa de um meio social favorável. Neste sentido, os dados apontados por este trabalho revelam que, independente do professor, sua prática pedagógica deve sempre ser pautar numa teoria e ser coerente com aquilo que está fazendo.

É esse olhar sobre o desenvolvimento infantil, seja da criança deficiente ou não, que precisa ser difundido e compreendido pela sociedade e não mais que a criança seja um ser em oposição ao adulto e que a criança deficiente não precisa está isolada de outras crianças, mas que sejam olhadas e respeitadas, pois todas são diferentes umas das outras e têm sua maneira própria de aprender.

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