http://dx.doi.org/10.5902/1984686X66454

Em busca do desenvolvimento e da consolidação de Culturas Inclusivas nos espaços escolares: contribuições de professores e de estudantes com deficiência visual

Searching for the development and the consolidation of inclusive cultures in schools: contributions of visually impaired teachers and students

En busca del desarrollo y consolidación de Culturas Inclusivas en los espacios escolares: los aportes de docentes y alumnos con discapacidad visual

Fábio Garcia Bernardo

Professor doutor do Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

E-mail: fabiobernardo@ibc.gov.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3785-4184

Claudia Coelho de Segadas Vianna

Professora doutora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

E-mail: claudia@im.ufrj.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1967-5537

Recebido em 25 de junho de 2021

Aprovado em 08 de dezembro de 2021

Publicado em 31 de janeiro de 2022

RESUMO

O trabalho tem por finalidade discutir a importância do desenvolvimento e da consolidação de Culturas Inclusivas nos espaços escolares como um conjunto de valores e ações, para que estudantes, com ou sem deficiência, possam ser acolhidos e tratados com equidade em seus processos de escolarização. Foram entrevistados três estudantes com deficiência visual e três professores de matemática de uma rede pública de ensino, em busca de suas percepções e experiências no que se refere ao período de adaptação à sala de aula e aos demais espaços escolares, às condições de trabalho, bem como aos aspectos que envolvem o ensino e a aprendizagem de matemática. Os resultados, discutidos à luz da análise de conteúdo, apontam para uma realidade escolar em que os alunos tiveram problemas de adaptação nos primeiros meses, dificuldades em estabelecer vínculos, e suas participações nas aulas, muitas vezes, se limitaram ao papel de ouvintes. Além disso, observaram-se atividades de ensino acontecendo fora da sala regular e a falta de oportunidades aos professores para que pudessem estar preparados para os desafios da diversidade, o que compromete o desenvolvimento de valores e culturas inclusiva, pilares de sustentação das políticas e das práticas. Tais valores, já previstos nas recomendações legais dos últimos anos, devem ser discutidos e desenvolvidos de forma intencional e coletiva, visando a minimização ou eliminação de barreiras atitudinais, comunicacionais, arquitetônicas e pedagógicas, sob o risco de retornarmos aos princípios da integração, período já superado pela educação brasileira, ao menos na teoria.

Palavras-chave: Culturas Inclusivas; Deficiência Visual; Inclusão Escolar.

ABSTRACT

The work aims to discuss the importance of developing and consolidating Inclusive Cultures in school spaces as a set of values ​​and actions, so that students, with or without disabilities, can be received and treated with equity in their schooling processes. Three visually impaired students and three mathematics teachers from a public school system were interviewed, exploring their perceptions and experiences regarding the adaptation period; to the classroom and other school spaces; working conditions, as well as aspects involving the teaching and learning of mathematics. The results, discussed in the light of Content Analysis, point to a school reality in which students had adaptation problems in the first few months, difficulties in establishing bonds and their participation classes were often limited to the role of listeners. In addition, there were teaching activities taking place outside the regular classroom and the lack of opportunities for teachers to be prepared for the challenges of diversity, which compromises the development of inclusive values ​​and cultures, pillars that support policies and practices. Such values, already provided in legal recommendations of recent years, must be discussed and developed intentionally and collectively, aiming at the minimization or elimination of attitudinal, communicational, architectural and pedagogical barriers, under the risk of returning to the principles of integration, a period already surpassed by Brazilian education, at least in theory.

Keywords: Inclusive Cultures; Visual impairment; School inclusion.

RESUMEN

El trabajo tiene como objetivo discutir la importancia de desarrollar y consolidar Culturas Inclusivas en los espacios escolares como un conjunto de valores y acciones, para que los estudiantes, con o sin discapacidades, pueden ser recibidas y tratadas con equidad en sus procesos de escolarización. Se entrevistó a tres estudiantes con discapacidad visual y tres profesores de matemáticas de un sistema escolar público, en busca de sus percepciones y experiencias sobre el período de adaptación; al aula y otros espacios escolares; condiciones de trabajo, así como aspectos relacionados con la enseñanza y el aprendizaje de las matemáticas. Los resultados, discutidos a la luz del Análisis de Contenidos, apuntan a una realidad escolar en la que los estudiantes tuvieron problemas de adaptación en los primeros meses, dificultades para establecer vínculos y el rol de los oyentes en las clases. Además, hubo actividades docentes que se desarrollaron fuera del aula regular y la falta de oportunidades para que los docentes estén preparados para los desafíos de la diversidad, que compromete el desarrollo de valores y culturas inclusivas, pilares que sustentan políticas y prácticas. Dichos valores, ya previstos en las recomendaciones legales de los últimos años, deben ser discutidos y desarrollados de manera intencional y colectiva, con el objetivo de minimizar o eliminar las barreras actitudinales, comunicacionales, arquitectónicas y pedagógicas, bajo el riesgo de volver a los principios de integración, un período ya superado por la educación brasileña, al menos en teoría.

Palabras clave: Culturas inclusivas; Discapacidad visual; Inclusión escolar.

Introdução

Passados mais de setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e mais de três décadas da promulgação da Constituição Federal (BRASIL, 1988), ainda há muito que se fazer para que a escola avance rumo à construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Se os documentos e recomendações legais não foram suficientes para transformar o País em uma sociedade que objetivamente respeita o direito das pessoas, em especial daquelas com deficiência, e que garante uma escola de qualidade a todos, faz-se necessário trilhar outros caminhos e buscar experiências positivas que possam ampliar as concepções aqui estabelecidas. Experiências estas que possam oferecer subsídios teóricos, metodológicos e práticos para o desenvolvimento de ações mais inclusivas nas escolas e na sociedade.

Avançamos no direito ao acesso, à oferta e à disponibilização de recursos didáticos e de Tecnologia Assistiva (TA) às pessoas com deficiência, mas ainda existem muitas barreiras e entraves, de diferentes naturezas, que impedem que os estudantes com deficiência permaneçam nas escolas, tenham seus direitos de aprendizagem preservados e consigam se desenvolver. Tratando-se de estudantes com deficiência visual (DV) incluídos em escolas regulares comuns, foco desta investigação, pesquisas apontam que muitos destes desempenham papéis de ouvintes nas aulas, demonstram o sentimento de isolamento e são comumente excluídos da participação efetiva de diferentes atividades escolares (VIEIRA, 2008; ROSA, 2017; SILVA; CABRAL; SALES, 2018). Com isso, não se sentem plenamente incluídos.

Neste trabalho, vamos discutir a importância do desenvolvimento e da consolidação de Culturas Inclusivas nos espaços escolares como um conjunto de valores e ações que devem ser desempenhados por todos os entes escolares, para que os estudantes com deficiência possam ser acolhidos e tratados com equidade em seus processos de escolarização. Tais valores e ações, já ancorados pelas políticas e recomendações legais dos últimos vinte anos, devem ser discutidos e construídos de forma intencional e coletiva, visando a minimização ou eliminação de barreiras atitudinais, comunicacionais, arquitetônicas e pedagógicas. Ou seja, trata-se de se (re)pensar o ambiente escolar numa perspectiva ampla, tendo em vista o direito à educação como uma questão de Direitos Humanos.

Nesse sentido, é importante destacar que o respeito à diversidade pressupõe empatia e o desenvolvimento de relações de confiança que se articulam com nossas origens, valores, histórias e experiências individuais. Assim, não se trata apenas de se pensar nas pessoas com deficiência, mas em todos aqueles que historicamente são subjugados e reprimidos, em virtude de suas diferenças. Ao desencadear um processo que se caracteriza como um anseio da sociedade, espera-se que mais pessoas estejam engajadas e se sintam parte das iniciativas, promovendo um espaço escolar saudável e propício ao desenvolvimento e aprendizado coletivo.

Para isso, trazemos as contribuições de Booth; Ainscow (2011), que defendem que os processos de inclusão devem se estabelecer e se consolidar por meio do desenvolvimento de três dimensões: (I) Culturas Inclusivas, (II) Políticas Inclusivas e (III) Práticas Inclusivas. O trabalho intitulado “O Index para a inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação nas escolas” foi organizado e publicado na Inglaterra, mas vem sendo utilizado no contexto brasileiro há alguns anos. Booth e Ainscow (2011) defendem que as três dimensões precisam se desenvolver e se consolidar de forma articulada, mas destacam que os movimentos inclusivos devem se basear, primeiramente, em valores inclusivos. Desse modo, caminhar em direção a um projeto de inclusão passa por relacionar ações com valores e isso transcende a ideia de apenas atender às determinações legais. Significa, entre outras coisas, respeitar as diferenças entre crianças, adultos, pessoas com deficiência e fazer uso de suas experiências e histórias de vida como um recurso para a aprendizagem, possibilitando que todos possam aprender uns com os outros.

O relato de investigação aqui apresentado é um recorte de uma pesquisa de doutorado, na qual foram entrevistados três estudantes com DV e três professores de matemática, de três unidades diferentes de uma mesma rede pública de ensino. A pesquisa foi aprovada por comitê de ética da Plataforma Brasil, teve anuência da instituição investigada, bem como a concordância dos estudantes e dos professores em contribuir com a investigação. Foi elaborado um questionário com questões abertas, de caráter exploratório, possibilitando liberdade aos entrevistados de discorrerem sobre o tema sugerido. Boni e Quaresma (2005) denominam esse tipo de entrevista como sendo semiestruturada, uma vez que possibilita que outros questionamentos possam ser feitos ao longo da entrevista e enseja a possibilidade de, em momento oportuno, levantar pontos adicionais às questões inicialmente propostas.

A coleta de dados se deu em 2020 e os dados foram analisados sob os princípios da análise de conteúdo (MORAES, 1999). Serão apresentados e discutidos trechos das contribuições, notadamente no que se refere ao período de adaptação à ambientação à sala de aula; aos espaços escolares; à formação continuada e às condições de trabalho dos professores; e aos aspectos que envolvem o ensino e a aprendizagem de matemática.

As questões a serem problematizadas e discutidas se entrelaçam com as ideias de outros pesquisadores (VIEIRA, 2006; BOOTH; AINSCOW, 2011; PIMENTEL; NASCIMENTO, 2016), sobretudo no que se refere ao desenvolvimento e à consolidação de culturas inclusivas nos espaços escolares, uma vez que, de acordo com eles, são as culturas e os valores cultivados pelas escolas que darão suporte para que políticas e práticas inclusivas possam se estabelecer de modo a criar oportunidades para que os estudantes se desenvolvam.

Como resultados, destaca-se uma realidade escolar em que os recursos materiais estão presentes e disponíveis aos alunos, porém não são utilizados nas aulas regulares. Observa-se a existência de um Atendimento Educacional Especializado (AEE), com papel preponderante nas atividades de ensino, contudo, destinado apenas aos estudantes com deficiência. Além disso, os relatos apontam problemas e dificuldades de adaptação nos primeiros meses na escola, falta de acessibilidade pedagógica, isolamento e o papel de ouvintes nas aulas de matemática pelos estudantes investigados. Quanto aos professores, destaca-se a falta de oportunidades para que pudessem estar melhor preparados para os desafios da sala de aula, desconhecimento de documentos e recomendações legais sobre os deveres da escola frente às políticas de inclusão, bem como a ausência de reuniões pedagógicas e formativas para se discutir as necessidades e singularidades dos alunos. Além disso, observou-se a ausência de profissionais com formação em Educação Especial (EE), o que dificultou ainda mais as atividades de ensino que ocorriam separadamente dos demais estudantes.

O desenvolvimento de culturas inclusivas

Santos et al (2017) afirmam que, no Brasil, o trabalho de Booth e Ainscow (2011), seja com seu desenvolvimento, seja como referencial teórico-prático, tem se tornado referência. De acordo com eles, “trata-se de um documento riquíssimo que possibilita reflexões acerca da construção de culturas, do desenvolvimento de políticas e da orquestração de práticas de inclusão em educação em instituições de ensino” (SANTOS et al, 2007, p. 2). O Index é, portanto, um conjunto de materiais, com a potencialidade de apoiar um processo de autorrevisão das escolas em direção à ampliação da aprendizagem e da participação dos sujeitos nela inseridos.

Em relação ao desenvolvimento de culturas inclusivas, os autores afirmam que essa dimensão diz respeito aos valores e crenças compartilhados e praticados pelos atores do processo de inclusão que orientam as políticas e as práticas. Booth e Ainscow (2011) sugerem um conjunto de ideias que visam incentivar uma profunda reflexão nos aspectos escolares, e na sociedade, com o objetivo de encorajar a todas as pessoas, funcionários, pais/responsáveis e estudantes a contribuírem com um plano de desenvolvimento inclusivo e a colocá-lo em prática. Desenvolver culturas inclusivas perpassa pela ampliação da participação de todos os atores da escola no processo inclusivo, e tem a ver com apoiar a sociedade em se tornar mais responsiva pelo reconhecimento do direito à diversidade. Os valores estão relacionados com “igualdade, direitos, participação, comunidade, respeito pela diversidade, sustentabilidade, não-violência, confiança, compaixão, honestidade, coragem, alegria, amor, esperança/otimismo e beleza” (BOOTH, AINSCOW, 2011, p. 22). Cada valor resume uma área de ação e aspiração à educação e à sociedade mais amplamente e todos são necessários para o desenvolvimento educacional inclusivo.

Nessa linha, Vieira (2006), em pesquisa realizada com oitenta e nove pessoas adultas com deficiências visual, ex-alunos de escolas especializadas e escolas inclusivas, destaca que a escola precisa ser acolhedora em todas as suas instâncias e deve buscar uma rede de apoio com trabalho em equipe e que a aprendizagem deve se dar de forma colaborativa. Esses são valores que precisam ser discutidos e desenvolvidos sempre que se desejar estabelecer uma cultura de inclusão, em qualquer espaço. Em seu trabalho (ibid., p.71), o depoimento de uma das pessoas com DV que entrevistou afirma que “são pouquíssimos os lugares que o cego pode frequentar tranquilamente e encontrar colegas para um bate-papo, isto é, ouvir e ser ouvido, sem sofrer nenhuma discriminação”. Dessa forma, a escola precisa se consolidar como um espaço de promoção da igualdade, no qual se deve discutir e refletir sobre: o que é inclusão, quais são seus princípios, direitos, deveres e papéis que todos devem assumir nesse ambiente.

De acordo com Both e Ainscow (2011), a Edificação da Comunidade é onde todos são bem-vindos, todos cooperam, se respeitam e se ajudam mutuamente; a escola é um modelo de cidadania e democracia, com a participação da comunidade e da família; a segunda que trata do desenvolvimento de valores inclusivos, que devem ser difundidos, praticados e compartilhados por todos. Além disso, as crianças são igualmente valorizadas e todos combatem a discriminação, buscando soluções conjuntas para a solução de possíveis desavenças. A escola deve discutir e refletir, coletiva e continuamente, as questões que permeiam a EE, como forma de sensibilizar os entes escolares em busca do desenvolvimento de uma cultura inclusiva. Desenvolver valores é um processo que se constitui ao longo do tempo, mostra-se abstrato e subjetivo, e exige o compromisso com significados, para que a comunidade escolar encontre caminhos que levem a ações. “À medida em que as pessoas refletem juntas sobre os valores que sustentam suas ações e a dos outros, e os que gostariam de adotar mais constantemente, elas desenvolvem a alfabetização em valores” (BOOTH; AINSCOW, 2011, p.27).

Na prática, a escola deve ser um ambiente acolhedor, com acessibilidade estrutural e pedagógica, de modo que o aluno com deficiência seja visto e tratado como qualquer outro estudante. As atividades e tarefas devem ser pensadas de forma a levar em conta a necessidades dos alunos de realizá-las com a maior autonomia possível. No caso daqueles com DV, espera-se, ao menos, que tenham acesso ao conteúdo por meio do Sistema Braille, quando cego, em formato ampliado quando estudante com baixa visão ou em formato digital acessível, quando de seu desejo.

Espera-se, ainda, que a escola e o professor envolvam os demais alunos nesse processo, demonstrando que incluir perpassa por ações de todos. Nesse sentido, pensando no ensino de matemática, é importante que o aluno tenha acesso a esse conteúdo de modo a atender suas necessidades, o que pode se dar por meio do uso do Sistema Braille, de materiais grafotáteis, Multiplano e outros recursos de TA para isso. Ou o professor necessita de incentivo à capacitação e condições adequadas de trabalho ou deve estar apoiado pela escola e por profissionais com formação em EE, de forma articulada com o AEE, sempre que necessário. São esses princípios, articulados por políticas e práticas inclusivas, que darão sustentação a um projeto de inclusão que tenha como premissa o desenvolvimento de culturas e valores inclusivos.

Percursos Metodológicos

A pesquisa se caracteriza como uma abordagem qualitativa e a coleta de dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas. Foram entrevistados três estudantes com DV e três professores de matemática, de três unidades diferentes de uma mesma rede pública de ensino, realizadas por meio de videoconferências, gravadas em uma plataforma de streaming, em 2020, sendo um professor e um aluno de cada unidade.

As entrevistas tiveram um caráter exploratório com questões abertas, dando liberdade aos entrevistados de discorrerem sobre o tema sugerido dentro de uma conversa informal. Boni e Quaresma (2005) denominam esse tipo de entrevista como semiestruturada, uma vez que possibilita que outros questionamentos possam ser feitos ao longo da conversa e enseja a possibilidade de, em momento oportuno, levantar pontos adicionais. De acordo com os autores, a entrevista pode ser definida como um “processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado” (p. 86). Essas informações podem ser objetivas ou subjetivas e se relacionam com valores, crenças, atitudes e, principalmente, o ponto de vista dos sujeitos entrevistados.

E foi nesse clima de “interação social” que se buscou as experiências dos colaboradores, tendo como finalidade contribuir para que se possa avançar em direção a uma escola mais inclusiva. Foi elaborado um questionário, com cerca de trinta perguntas, distribuídas em quatro unidades de investigação, inspiradas nas ideias de Booth; Ainscow (2011): (I) Contextualizando os atores; (II) Estabelecendo Culturas inclusivas; (III) Práticas pedagógicas inclusivas; (IV) Políticas de inclusão.

Para este trabalho, as contribuições, discussões e reflexões estão focalizadas nas duas primeiras unidades. A primeira unidade se propõe a caracterizar os entrevistados, situando-os no contexto da pesquisa, frente aos objetivos da investigação. A segunda unidade está relacionada com a dimensão cultural apontada por Booth e Ainscow (2011), quando citam que todos são bem-vindos ao espaço escolar, cooperam, respeitam-se e se ajudam mutuamente. A escola deve buscar implementar um modelo de cidadania e democracia, estabelecendo valores inclusivos que são difundidos, praticados e compartilhados por todos.

Para descrever, discutir e interpretar os dados foram utilizados os pilares da análise de conteúdo (MORAES, 1999), para quem esse processo se dá em cinco etapas, assim definidas: (1) preparação das informações, (2) transformação do conteúdo em unidades, (3) categorização, (4) descrição e (5) interpretação. De acordo com o autor, a interpretação se constitui um passo imprescindível em todos os momentos da análise de conteúdo e apresenta duas vertentes: a primeira que se relaciona com uma fundamentação teórica, definida a priori, e a segunda é constituída com base nos próprios dados coletados e categorias de análise definidas.

Neste trabalho, acredita-se que há um pouco de cada vertente, uma vez que as unidades de investigação surgiram a partir de uma fundamentação teórica, escolhida a priori (BOOTH; AINSCOW, 2011), mas as categorias emergiram a partir da interpretação dos dados coletados, da revisão de literatura e dos documentos e preceitos oficiais que norteiam a educação inclusiva. Portanto, as análises e discussões foram construídas com base nas entrevistas, apoiados nas ideias de Moraes (1999), mas sem a preocupação de seguir, à risca, todas as etapas apontadas pelo autor, visto que se buscou investigar as situações naturais do dia a dia, com o propósito de descrevê-las e problematizá-las sem a pretensão de produzir modelos teóricos.

Dentre as dez categorias de análise que emergiram das falas dos estudantes e das quatro que emergiram das falas dos professores, destacamos os seguintes pontos para discutir e analisar neste trabalho: I. O período de adaptação dos estudantes; II. A sala de aula e os espaços escolares; III. A formação continuada e as condições de trabalho dos professores; IV. Os aspectos que envolvem o ensino e a aprendizagem de matemática. O quadro 1, a seguir, resume o percurso metodológico.

Quadro 1 – Panorama do percurso metodológico

Unidade de contexto

Unidades de análise

Categorias de análise

(I)     Entrevistas com os alunos

(II)    Entrevistas com os professores

(I)        Contextualizando os atores;

(II)       Estabelecendo uma cultura inclusiva;

(III)      Práticas pedagógicas inclusivas;

(IV)     Políticas de inclusão.

I.       O período de adaptação dos estudantes;

II.     A sala de aula e os espaços escolares;

III.    A formação continuada e as condições de trabalho dos professores;

IV.    Os aspectos que envolvem o ensino e aprendizaem de matemática.

Fonte: Os autores (2021).

Os estudantes foram denominados por A1, A2 e A3 e os professores por P1, P2 e P3, e optamos por discorrer sobre essas quatro categorias em um texto corrido, apontando convergências e divergências nas falas, sem apresentar distinções entre as temáticas abordadas em cada uma delas. Além disso, foram apresentados os diálogos na íntegra, trazendo trechos inteiros das narrativas de nossos colaboradores, sobretudo para que o leitor tenha uma visão mais holística do cenário escolar, sob o ponto de vista desses atores.

Resultados e Discussões

A1 cursou todo o EM na mesma rede de ensino, tinha 20 anos de idade; à época da entrevista estava no primeiro ano de graduação, é albino e possui baixa visão. O albinismo é uma condição genética caracterizada pela ausência de melanina na pele e na retina e, por conta disso, o sujeito albino tem fotofobia, o que faz com que a luminosidade seja um fator que agrava seu quadro de baixa visão. Além disso, A1 tem astigmatismo e miopia, e sua condição visual foi resumida por ele: tudo isso me atrapalha muito.

A2 tinha dezoito anos e cursava o terceiro ano do EM, à época da entrevista. Ele perdeu a visão nos primeiros anos de vida devido ao excesso de luz que recebeu na incubadora, quando nasceu. No Jardim de Infância tentaram usar a tinta comigo, mas eu só enxergava vultos. Ele é o único cego de sua família e estuda na mesma escola desde o início do EM.

A3 tinha dezoito anos e cursava o terceiro ano do EM, à época da entrevista. Ele ficou cego devido a um retinoblastoma. Nasci com um câncer na retina. Nasci cego de um olho e perdi a visão do outro com seis anos. Ele é o único cego da família e também estuda na mesma rede de ensino de A1 e A2, desde o início do EM. De acordo com ele, desde pequeno procura realizar suas atividades escolares sozinho: meus pais dizem que quando eu era pequeno eu gostava de fazer tudo sozinho. Raramente precisava ou pedia ajuda. Só quando tinha que fazer colagem ou coisas mais visuais mesmo.

Em relação aos professores, P1 é licenciado em Matemática, possui Mestrado na área de Ensino e atua como professor do Ensino Básico desde 1998, tendo passado pelo Ensino Fundamental II, Educação de Jovens e Adultos e, à época da entrevista, atuava apenas no Ensino Médio. De acordo com ele, vivenciou a experiência de ter um aluno com DV uma única vez em sua trajetória.

P2 é licenciado em Matemática e cursou o Mestrado Profissional pelo ProfMat. Ele tinha 39 anos de experiência no magistério e há 17 atuava com alunos com DV. P3 também é licenciado e mestre em Matemática e, à época da entrevista, possuía oito anos de experiência no magistério e já em seu primeiro ano como professor teve a experiência de atuar com alunos com DV, experiência esta que se repetiu quando concordou em conceder a entrevista.

Embora A1, A2 e A3 sejam caracterizados como estudantes com DV, ficam evidentes as diferenças apontadas por A1, que se diferencia dos demais por ser um estudante com baixa visão, enquanto os outros dois são cegos congênitos. Assim, os primeiros meses na escola regular comum e as dificuldades enfrentadas pelos dois cegos se mostraram diferentes daquelas vivenciadas por A1.

A2 e A3 estudaram todo o Ensino Fundamental (EF) em uma escola especializada, enquanto A1 estudou em escolas regulares comuns até o sexto ano e na mesma instituição dos demais nos últimos anos do EF. Segundo ele, acreditava que o fato de já ter passado por outras escolas inclusivas pode ter sido um ponto favorável à sua adaptação no EM, pois, foi um pouco mais tranquila do que as experiências vivenciadas por seus amigos cegos com quem conviveu no EM.

A1: Não tive problemas de preconceito, discriminação. Acho que não. Mas eu era muito fechado. Nunca fui muito assim de ficar de conversa. Mas para os cegos eu sei que é mais difícil. O cara sai de uma realidade onde todos são iguais e vai para outra onde ele é o diferente, com 30/40 alunos, é complicado.

No entanto, A2 e A3, trazem relatos diferentes.

A2: No primeiro ano foi muito difícil pra tudo. Eu estava me adequando aquele universo. A minha turma, nas primeiras semanas, eles não falavam com a gente. Os deficientes ficavam todos juntos, unidos, para não deixar ninguém sozinho e tentando conquistar confiança, criar uma amizade. No início o coordenador só colocou a gente na sala, disse que nós íamos aprender com eles e eles iam aprender com a gente. Não fez mais nada.

A3: No início do primeiro ano eu fiquei muito nervoso. Eu não tive amigos nos primeiros meses, só com os demais cegos da escola. O professor é que às vezes pedia a alguém para se sentar comigo ou às vezes alguém se oferecia para me ajudar.

Embora o isolamento seja uma característica também observada em outros adolescentes, com ou sem deficiência, os três mencionaram dificuldades em estabelecer vínculos, uma vez que não houve uma ação institucional voltada para o acolhimento dos alunos com DV. Os três relataram a formação de pequenos grupos, porém constituídos apenas por outros alunos com DV. De acordo com eles, foi uma tentativa de afirmação e ocupação de um espaço que também lhes pertencia.

A1: Nas horas livres eu ficava mais na minha mesmo. Tinha os outros deficientes que a gente conversava mais. Fiz amizades sim, mas só depois de um tempo. Depois da conversa que a pedagoga teve com os alunos, disse que não tinha nada demais, que a gente era normal né... Aí melhorou.

A3: No primeiro ano eu ficava mais com os outros deficientes mesmo. Depois fiz mais amizades.

A2: Nas horas livres eu fico sentado na sala, igual a muitos alunos cegos fazem. Pra sair, tem que subir e descer escada. Vou me arriscar para que entendeu? Só depois de um tempo que fiz algumas amizades e as coisas melhoraram.

Booth e Ainscow (2011) destacam a importância de se estabelecer um ambiente escolar propício e acolhedor a todos e isso pode ser implementado por meio de ações pedagógicas coletivas, grupos de estudos, palestras e seminários que devem acontecer de forma recorrente na escola, com a presença dos alunos. Com isso, é possível disseminar valores inclusivos, tais como a empatia, a colaboração, a solidariedade e o respeito que devem se estabelecer já na recepção de novos alunos, sejam eles estudantes com deficiência ou não. A escola deve pensar a diversidade como algo inerente aos seres humanos e não como uma característica individualizada, de modo que ninguém se sinta excluído.

Os fatos narrados por A1, A2 e A3 vão em direção à necessidade de ações conjuntas e articuladas pela escola, alunos, professores, funcionários e família, no entanto, cabe à gestão escolar esse papel. Em documento publicado pela Conferência Internacional de Educação, em Genebra, a UNESCO (2008) recomenda que os gestores sejam responsáveis por estabelecer um ambiente cooperativo que permita que os professores e demais funcionários coordenem os seus esforços para alcançar um ambiente favorável à inclusão. Assumir essa responsabilidade é importante para que as ações inclusivas não sejam pontuais e, exclusivamente destacadas ao professor, pois é essa a realidade posta em muitas escolas brasileiras. Sem uma ação coletiva e intencional, os estudantes dependem de atitudes individuais e eventuais.

A2: Quase não fica inspetor de aluno no pátio e nem nos corredores. Mas lá tinha um inspetor que ajudava a gente. Ele nos ensinou a andar pela escola. Às vezes ele estava atrás de mim e eu nem percebia. Para ver se eu estava indo pelo caminho certo e para garantir também né... porque lá os alunos gostam muito de implicar, vamos dizer assim.

Implicar como, de que forma?

A2: É o famoso preconceito né... Uma vez eu estava com uma amiga e a gente ia descer uma escadinha, poucos degraus, mas tinha um aluno sentado na escada. Então eu bati a bengala e perguntei: Será que você poderia se levantar pra gente passar? Aí ele disse, passa por aqui ué... Aí eu pedi de novo e ele insistiu: passa por aqui ó... Aí eu disse, por aqui onde? Sou cego.Nisso o moço da limpeza viu e disse: se levanta daí. Levanta, elas precisam passar. Só assim ele se levantou e deixou a gente passar.

O relato de A2 pode ter sido um fato isolado. No entanto, ao acontecer com um aluno com deficiência deixa marcas que dificilmente serão apagadas de sua memória. Há inúmeros exemplos e casos divulgados na mídia, de questões similares às relatadas por A2, que reforçam o desrespeito da sociedade com as pessoas e com outros grupos sociais, por diferenças étnicas, ideológicas ou de gênero. As palavras de A2 trazem como contribuição a necessidade de se estabelecer, em todos os espaços escolares, diálogos, oficinas, reuniões, projetos e ações efetivas que discutam o respeito às diferenças, às necessidades dos alunos com deficiência, assim como outros temas contemporâneos e de urgência social, que contribuem fortemente para o desenvolvimento de culturas inclusivas (BOOTH; AINSCOW, 2011).

É importante salientar que se observa um avanço no que se refere ao acesso e aos recursos disponíveis nos espaços escolares e isso foi confirmado por nossos entrevistados, contudo, os estudantes são colocados nas escolas com os demais alunos sem que haja mudanças nesse ambiente. Muitos professores, por exemplo, sequer tomam conhecimento, com antecedência, que receberão alunos com deficiência em suas aulas e não há oportunidades para que os professores possam estar melhor preparados para os desafios da inclusão, conforme relatam nossos colaboradores.

P1: Tomei conhecimento que teria um aluno cego fazendo o horário, porque participei da elaboração. A gente termina o horário em cima, bem perto de começar as aulas.

P2: Foi de repente que apareceram os cegos na minha turma. Eu estava dando aula e o menino falou: Professor, eu sou cego. E aí eu fiquei sem saber o que fazer. Eu comecei a dar uma atenção pra ele na sala de aula, mas era muito difícil. Eu não tinha experiência nenhuma, com nada.

P3: Tomei conhecimento no começo do letivo. Na semana de planejamento a equipe do AEE entrou em contato com os professores da turma comunicando as limitações dos alunos.

Sem formação e sem o apoio de outros profissionais especializados, não há orientações metodológicas e pedagógicas para o atendimento, ficando a cargo do professor o desafio e a tarefa de reger uma sala com 30/40 alunos e mais aqueles com deficiência. Os relatos de A1, A2 e A3 deixam transparecer a ideia de que os alunos é que devem se adaptar à realidade escolar, que se encontra posta e estabelecida à espera dos alunos.

A2: Então... é assim, você é minoria e tem que dançar de acordo com a música. Os primeiros meses foram difíceis e bem complicados, porque a gente pega professores que não estavam acostumados com os deficientes visuais. Então para muitos professores fomos os primeiros.

A3: O primeiro ano foi mais difícil. Na sala de aula eu tinha combinado com uns professores que eu ia gravar as aulas. Porém, a sala era muito grande, tinha muito barulho e ele ficava meio longe do meu celular. Mas também como eu ia transcrever tudo depois? muitas vezes eu nem conseguia entender. Então não deu certo.

De acordo com Pimentel e Nascimento (2016) a escola, enquanto instituição social, possui uma cultura própria que se manifesta por meio de suas práticas, discursos, modos de organização e estruturação do currículo e, desde a sua criação, assumiu valores e ritos que tem se perpetuado até os dias atuais. Um deles é a ideia de que os estudantes devem se adaptar e possuir padrões de comportamento desejáveis, demonstrando que ainda preza por um indivíduo idealizado e não com um sujeito real e contextualmente inserido no ambiente escolar. Com isso, desconsidera a diversidade da sala de aula e acaba por disseminar uma cultura excludente, ainda que de forma não intencional.

Dentro desses aspectos, muitas escolas se mostram inertes às transformações da sociedade e às constantes mudanças dos perfis dos sujeitos que recebem, notadamente, quando consideramos a presença de estudantes com deficiência nas sala de aula. Na realidade que investigamos, P1, P2 e P3 mencionaram, por exemplo, turmas com cerca de 30/35 alunos e, em alguns casos, vários alunos com deficiência em uma mesma turma. Além disso, mencionaram a falta de oportunidades para que pudessem realizar cursos de formação continuada para melhor atender aos alunos.

P3: As turmas têm em média 30 alunos. Mas teve um ano que tive seis alunos com DV na mesma turma. Então a direção diminuiu o número de alunos. Tinha uns 20 no total. Mas curso de formação continuada relacionado à DV nunca fiz. Só Libras na graduação.

P1: Curso de capacitação específico não fiz. Tipo... está vindo um aluno para cá, tem alguma coisa, a gente vai fazer alguma coisa... Não tem nada disso. A gente trabalha com 35/40 alunos, às vezes.

P2: Não. Nunca fiz nenhum curso. Já fiz alguns, mas por conta própria [não relacionados à DV], na escola nunca tive essa oportunidade.

A falta de conhecimentos acerca das especificidades dos alunos com DV e as dificuldades em ensinar matemática, por parte dos professores, foram confirmadas pelos estudantes que mencionaram ter um papel passivo nas aulas, não participando das atividades de ensino.

A2: Nas aulas de matemática a gente não faz nada. A gente não faz as tarefas junto com os demais. A gente não pega livro. A gente é excluído de muita coisa. Os professores usam o quadro e falam assim: Esse número aqui multiplica por aquele dali. Quanto dá o resultado? Daí você fica... qual o número daqui, qual o número dali? A linguagem, a gente não entende né.

A3: Nas aulas a gente fica mais ouvindo mesmo, mas quando eu tinha dúvida eu perguntava. Nunca deixei de perguntar. Embora algumas vezes eu não estivesse entendendo nada.

Os estudantes citaram que, eventualmente, recebiam listas com conteúdo e atividades por e-mail, embora raramente chegassem a tempo de discuti-los nas aulas da turma regular. Assim, esses materiais eram trabalhados no AEE, que na realidade investigada, configurou-se como um espaço físico destinado ao atendimento no contraturno das aulas. Lá eram disponibilizados recursos, tais como o Multiplano, notebooks, Soroban, sólidos geométricos e alguns materiais táteis confeccionados pelos próprios professores. No entanto, raramente eram utilizados.

P1: Foi a minha primeira experiência com um aluno cego. Ele não copiava nada. Mas quando ia para o AEE é que a professora fazia um trabalho mais direcionado mesmo. Eu usei Multiplano em algumas aulas.

P2: Eles não copiam nada nas aulas de matemática. Alguns usam computador e registram algumas coisas. Os com baixa visão, às vezes, tiram fotos do quadro. Mas sou eu que os atendo no AEE, então eu falo assim para eles: alguma coisa que vocês não entenderem na sala a gente vai ver no atendimento.

P3: O alunos cegos usam um computador da escola. Não sei se conseguem digitar tudo. Os alunos com baixa visão eles já têm o costume de tirar foto do quadro para poder ampliar depois. Fórmula matemática, desenhos, isso é um desafio. Na sala de aula é muito. Dar assistência a eles é bem difícil.

Um ponto interessante a se destacar é o fato de que nas unidades de P2 e P3 são os mesmos professores das turmas regulares que atendem os alunos no AEE. Sobre o AEE, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) destaca que as atividades desenvolvidas nesse atendimento se diferenciam daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. De acordo com o documento, esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos. O AEE deve disponibilizar programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e recursos de TA. Além disso, destaca ainda a importância desse atendimento se desenvolver de modo articulado com a proposta pedagógica do ensino comum, com a presença de professores com formação em EE.

A ausência de profissionais com formação em EE foi comentada por todos e isso fez com que o atendimento no AEE se desse, do ponto de vista dos estudantes, de forma precarizada, tendo o professor sem conhecimentos mais específicos, do que buscar meios para utilizar recursos e metodologias mais adequadas às necessidades dos estudantes.

A3: Nas aulas de matemática era muito difícil. Às vezes eu ia para o Napne sem saber nada. Daí o professor tinha que pesquisar porque na maioria das vezes ele nem sabia como explicar. EU escrevia por extenso as fórmulas.

A2: Ah... o professor se vira mesmo. Ele abre programas e vai procurando o símbolo que ele quer usar. Ele não sabe nada de simbologia matemática em braille, porque tudo que ele sabe foi a gente que ensinou. Então, praticamente não aprendi nada.

As situações relatadas pelos estudantes demonstram que são os alunos que devem se adaptar à realidade da escola, que parece não ter se modificado para recebê-los. É um modelo presente na realidade brasileira, que acaba por excluir determinados alunos devido às suas singularidades. Nesse modelo, Pimentel e Nascimento (2016) salientam que aqueles que se distanciam do padrão definido pela cultura escolar são rotulados, estigmatizados e segregados, de forma explícita ou encoberta, dentro da própria instituição escolar. Em geral, isso acontece com as escolas que disponibilizam o AEE para ser o local onde as atividades de ensino efetivamente acontecem. O grande problema é que, “estes sujeitos rotulados acabam sendo responsabilizados pelo próprio fracasso, como aqueles que não conseguiram ‘acompanhar’ as atividades propostas pela escola” (PIMENTEL; NASCIMENTO, 2016, p. 107). Desse modo, a instituição escolar não se modifica para atender as diferenças e peculiaridades de sujeitos reais; ela exige que estes sujeitos sejam formatados para alcançar o padrão idealizado. Quem não alcança o padrão acaba sendo excluído do processo e isso é o que Faustino et al (2018) definem como microexclusões no espaço escolar. De acordo com os autores, as políticas de macroinclusão possibilitaram acesso às escolas, a disponibilização de recursos e reconhecem a necessidade de mudanças estruturais e culturais no espaço escolar. No entanto, os processos de macroinclusão precisam estar acompanhados do desenvolvimento de culturas, políticas e práticas bem estruturadas e adequadas às necessidades dos alunos, sob o risco de levarem os estudantes a processos de microexclusões dentro da escola.

As microexclusões podem ocorrer a partir de formas implícitas, veladas, sutis, através de processos de interação que tendem a excluir o estudante. Tais posturas podem ser tomadas de forma consciente ou não, em tais ambientes (aparentemente) inclusivos. Além disso, microexclusões geralmente são exercidas em nível local (sala de aula) ou institucional (escola), por meio de práticas que levam o estudante a se ver isolado em situações tais como: isolado em um ambiente novo e/ou diferente; isolado durante as aulas por não ter os recursos para acompanhar as atividades; isolado por não “enxergar” o que os outros estudantes estão fazendo [...] (FAUSTINO et al, 2018, p. 904).

A1: Eu acho que as matérias deveriam ter mais preocupação com os deficientes. Mas não é uma preocupação para que você diferencie, mas para você equilibrar. Por exemplo, educação física, eu sempre gostei, mas os alunos cegos são dispensados. Ótica, por exemplo, em física, os alunos são dispensados. Por quê? Eu acho muito errado isso. Desenho geométrico também não podia participar. Tinha uma professora que dizia que a gente devia “brigar” para participar, que era nosso direito. Mas o professor (de desenho) dizia que a gente não podia participar.

É importante lembrar que a escola é uma instituição da sociedade e que, portanto, recebe influências desse contexto externo a ela. Práticas excludentes e segregativas são práticas comuns em outros espaços e, como podemos notar nas experiências relatadas, também são reproduzidas nas escolas. O processo de inclusão escolar não pode se resumir ao acesso, à disponibilização do AEE e de alguns recursos que, muitas vezes, sequer são utilizados pelo fato de não haver profissionais com conhecimento para tal.

Questionamos, então, se não havia reuniões pedagógicas, atividades formativas que debatessem os processos inclusivos e as necessidades dos estudantes.

P1: Eu, a professora do AEE e o coordenador de matemática nos reunimos. Falamos sobre o desempenho deles, os recursos que a gente tem. Mas as atividades de ensino são mais com ela mesmo.

P2: Não existe essa coisa de um momento reservado. As equipes têm um dia fixo e fazem reunião. A gente sempre acaba tocando em alguma coisa do AEE. Mas não existe como ponto de pauta.

P3: Tem um horário semanal de reunião. A gente fala sobre elaboração de material, sobre a forma de atender a esses alunos, geralmente no AEE. Lá é que eles fazem o atendimento.

Esse é um ponto de grande relevância, uma vez que os encontros pedagógicos e formativos, que devem ser coordenados pela gestão escolar, são fundamentais para o desenvolvimento de culturas inclusivas e para que as ações não aconteçam de forma individualizada. No entanto, as experiências relatadas demonstram que não há uma linha de ação institucional, ficando as atividades de ensino sob a responsabilidade do AEE. Ao que parece, as aulas regulares cumprem seu papel de colocar os alunos com DV junto aos demais, mas não com equidade para que possam aprender junto a estes. Sobre a presença de profissionais com formação em EE, todos citaram desconhecer a presença desses profissionais, o que vai de encontro às recomendações oficiais e legais. Além de transferir a responsabilidade das atividades de ensino ao AEE, compromete o aprendizado dos alunos, como foi relatado tanto pelos professores quanto pelos estudantes, quando mencionaram o papel de passividade nas aulas regulares.

P1: Tem pedagogos, mas não destacados para esses alunos. Mediadores nas aulas não tem.

P2: Tem Orientador Educacional. Mas não direcionados aos estudantes com deficiência. Tem mediador para a menina com paralisia cerebral. Mas para cego não tem não.

P3: Eu já observei isso nos casos mais severos, mas com alunos com deficiência visual não. Tem orientador educacional que se precisar ajuda. Isso eu acho essencial. Tinha um profissional cego no AEE que me ajudou muito.

O Ensino de Matemática para esse público sugere a utilização de recursos didáticos e de TA, tais como o Sistema Braille, o Código Matemático Unificado para a Língua Portuguesa (BRASIL, 2006) e os materiais táteis, que possibilitam acessibilidade a conteúdos com apelo visual, tais como gráficos, tabelas e figuras. Contudo, há a necessidade de os professores estarem apoiados pelo AEE e por profissionais com formação em EE, uma vez que necessitam de conhecimentos específicos para melhor atender a esse público. Tal apoio não foi observado nas experiências aqui compartilhadas, o que demonstra o papel substitutivo do AEE e a condição de ouvintes desempenhada pelos estudantes nas aulas de matemática.

Assim, observa-se que há um longo caminho a ser percorrido, embora A1 tenha conseguido terminar os seus estudos e A2 e A3 se encontravam no terceiro ano do EM. Um traço marcante das experiências relatadas foi a vontade de seguir em frente e a certeza de que para terem seus direitos preservados precisam lutar, persistir e, acima de tudo, não desistir.

A2: Eu acho que tem muita coisa para fazer. Se você não lutar muito, não consegue, acaba desistindo e saindo da escola como aconteceu com muitos lá. Se eu não tivesse me virado sozinho, não teria conseguido. Tem que ter muita força de vontade mesmo.

Considerações Finais

As questões abordadas por nossos entrevistados devem ser encaradas não só como problemas e fragilidades, mas também como verdadeiros desafios para a escola e para a sociedade, uma vez que ratificam a ideia de que avançamos no direito ao acesso, mas ainda há muito o que se fazer para que os alunos possam aprender de forma mais equânime e em consonância com o que se preconiza nas leis, nas orientações e recomendações legais. Por meio das vivências e concepções compartilhadas, espera-se que as experiências aqui relatadas possam promover reflexões e avanços sobre os diferentes aspectos que permeiam os processos de ensino e aprendizagem, essencialmente no desenvolvimento e na consolidação de culturas inclusivas nos espaços escolares.

Grupos de estudos e reuniões pedagógicas/formativas devem ser organizados para que se discutam direitos e deveres. Além disso, a escola deve procurar implementar ações coordenadas com todos os entes escolares, sempre privilegiando os processos inclusivos. Diante de um cenário ainda em construção, acreditamos que as escolas necessitam estar abertas às mudanças, às transformações e às diferenças para que possam (re)discutir o modo de pensar, de fazer educação, de planejar, de avaliar, de forma a refletir com seus entes os desafios da diversidade.

O desenvolvimento e a consolidação de culturas inclusivas está previsto nos diversos documentos e recomendações oficiais, desde a proclamação da DUDH (ONU, 1948), quando esta dispões sobre a educação como uma questão de Direitos Humanos. No entanto, há ainda muito que se avançar e se impõe a certeza de que, sozinho, o professor não dará conta dos desafios da diversidade na escola e na sala de aula. Um dos professores entrevistados mencionou, por exemplo, que procura produzir materiais para usar no AEE, que decidiu aprender a utilizar alguns softwares de transcrição de textos e, sempre que possível, envia materiais e atividades por e-mail, de modo que o estudantes com DV tenham acesso aos mesmos materiais disponibilizados aos demais estudantes. Essa é uma ação muito importante, mas, segundo ele, é de iniciativa própria. É uma ação que necessita ser institucional e com apoio de profissionais especializados para que se configure como uma prática comum e não uma exceção no cenário escolar.

O desenvolvimento de valores inclusivos deve estar amparado por políticas e articulados com práticas inclusivas, que podem e devem ser instituídos e dinamizados pela gestão escolar. Muitas vezes, faz-se necessária a revisão do Projeto Político Pedagógico, tendo em vista a construção de um projeto curricular acessível em todas as suas dimensões. O envolvimento e engajamento de todos é uma ação premente que deve ser desencadeada pelos gestores. Sem esse envolvimento, a escola não se transforma e a própria presença dos alunos com DV, motivada pelas políticas de macroinclusão, provocam microexclusões e colocam a escola numa dimensão integrativa, dimensão esta já superada em nossa realidade, ao menos na teoria.

O desenvolvimento de valores e culturas inclusivas se articulam com uma luta por sensibilização, que precisa se estabelecer e se consolidar para que os estudantes com deficiência não sejam vistos e tratados como “os alunos do AEE”, pois sabemos que a presença deles têm provocado mudanças positivas e significativas nos demais estudantes e em alguns professores, que se mostram engajados e comprometidos com seus aprendizados.

Por fim, destaca-se que as questões levantadas aqui não são específicas a um determinado professor, aluno ou instituição, que por vezes se veem isolados na busca de soluções. Assim, espera-se o engajamento de todos os entes escolares, sustentados por políticas comprometidas com a escola, para que possamos construir uma sociedade mais justa e inclusiva.

Referências

BONI, Valdete; QUARESMA, Silvia Jurema. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFC, v. 2, nº 1, p. 68-80, Ceará, 2005. DOI: https://doi.org/10.5007/%25x

BOOTH, Tony; AINSCOW, Mel. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução: Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. LaPEADE, Rio de Janeiro, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Imprensa Oficial, 1988.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de educação especial. Código matemático unificado para a língua portuguesa. Brasília, 2006.

FAUSTINO, Ana Carolina. et al. Macroinclusão e microexclusão no contexto educacional, Revista Eletrônica de Educação, v. 12, n. 3, p. 898-911, set./dez. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.14244/198271992212

MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999.

ONU. Declaração universal dos direitos humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas, Paris, 1948. Disponível em: http://www.dudh.org.br/wpcontent/uploads/2014/12/dudh.pdf. Acesso em: jun. 2021.

PIMENTEL, Suzana Couto.; NASCIMENTO, Lucinéia Jesus. A Construção da Cultura Inclusiva na Escola Regular: uma ação articulada pela equipe gestora. EccoS – Revista Científica, São Paulo, n. 39, p. 101-114, jan./abr. 2016.

ROSA, Fernanda Malinoski. C. Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva. 2017. 259 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp, Rio Claro/SP, 2017.

SANTOS, Monica Pereira. Formação de Professores: Exercitando propostas de inclusão, Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à participação e à diversidade em educação. FE-UFRJ, 2004. Disponível em: http://www.lapeade.com.br/artigos.html. Acesso: set 2015.

SANTOS, Monica Pereira. et al. Desenvolvendo o Index para Inclusão no contexto brasileiro: experiências de reflexão/ação sobre processos de inclusão e exclusão em Educação, Percurso Acadêmico, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 332-350, jul./dez. 2017.

SILVA, Ana Mara Coelho; CABRAL, Clara Alice Ferreira; SALES, Elielson Ribeiro. Percepções de Alunos Cegos sobre sua Formação: contribuições no ensino e aprendizagem de matemática em classes inclusivas, Perspectivas da Educação Matemática, Mato Grosso do Sul, V. 11, n° 27, 2018.

UNESCO. Inclusive Education: the way of the Future. International Conference on Education, Genebra, 2008.

VIEIRA, Carmelino. Souza. Alunos cegos egressos do Instituto Benjamin Constant (IBC) no período de 1985 a 1990 e sua inserção comunitária. 2006. 364 f. Tese (Doutorado em Saúde da Criança e da Mulher) – Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de janeiro, 2006.

 

 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)