http://dx.doi.org/10.5902/1984686X65929
Subjetivações surdas: Discursos sobre a (in)existência da Libras no espaço escolar
Deaf subjectivations: Discourses on the (in) existence of Libras in the school space
Subjetivaciones sordas: discursos sobre la (in) existencia de Libras en el espacio escolar
Franciele Fernandes da Silva
Mestra pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, RS, Brasil
E-mail: fran.oly@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0630-4326
Daniela Medeiros
Professora doutora do Instituto Federal Farroupilha, Panambi, RS, Brasil
E-mail: daniela.medeiros@iffarroupilha.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5791-0027
Maria Simone Vione Schwengber
Professora doutora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, RS, Brasil
E-mail: simone@unijui.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3583-1408
Recebido em 24 de maio de 2021
Aprovado em 09 de novembro de 2022
Publicado em 31 de janeiro de 2023
RESUMO
Esse artigo problematiza a educação de surdos e a aquisição da linguagem como um processo de constituição de sujeitos da vida relacional e como indutora das condições de: aprendizagens, desenvolvimento cognitivo e das interações. Como corpus de análise escolhemos um vídeo bilíngue sobre a surdez e a Libras, publicado em 2020, no Youtube e no Instagram para destacar os enfrentamentos de uma criança surda no processo de escolarização e o pedido de comunicação digna. Diante disso, por meio da análise discursiva, o objetivo deste artigo é elucidar quais são os discursos desse vídeo sobre a surdez. Que discursos dele emergem? Destacamos, a partir do movimento de análise: quem é o sujeito do discurso e as posições que este ocupa; o apelo que a menina refere sobre as crianças surdas nas escolas comuns junto as ouvintes, indicando o desejo pela prática de inclusão escolar de um modo distinto daquele que vem sendo vivenciado por ela no momento atual; as discussões sobre o problema central, o (não) acesso à comunicação, já que são necessárias intervenções diversas (comunicação com os pares, com os professores, tradução simultânea, apoio de intérprete, entre outros), que nem sempre tornam acessíveis os conteúdos escolares; e, a reivindicação de uma cultura de comunicação entre surdos e ouvintes em uma tentativa de modificar suas experiências escolares.
Palavras-chave: Comunicação; Libras; Sujeitos Surdos.
ABSTRACT
This article problematizes the education of the deaf and the acquisition of language as a process of constituting subjects of relational life and as an inducer of the conditions of: learning, cognitive development and interactions. As the corpus of analysis we chose a bilingual video on deafness and Libras, published in 2020, on Youtube and Instagram to highlight the confrontations of a deaf child in the schooling process and the request for dignified communication. Therefore, through discursive analysis, the objective of this article is to elucidate what are the speeches of this video on deafness. What speeches emerge from it? We highlight, from the analysis movement: who is the subject of the discourse and the positions it occupies; the appeal that the girl refers to deaf children in ordinary schools with the listeners, indicating the desire for the practice of school inclusion in a different way from what she is currently experiencing; the discussions about the central problem, the (non) access to communication, since different interventions are needed (communication with peers, with teachers, simultaneous translation, interpreter support, among others), which do not always make school content accessible; and, the demand for a culture of communication between deaf and listeners in an attempt to modify their school experiences.
Keywords: Communication; Libras; Deaf Subjects.
RESUMEN
Este artículo problematiza la educación de los sordos y la adquisición del lenguaje como proceso de constitución de sujetos de la vida relacional y como inductor de las condiciones de: aprendizaje, desarrollo cognitivo e interacciones. Como corpus de análisis elegimos un video bilingüe sobre sordera y Libras, publicado en 2020, en Youtube e Instagram para resaltar los enfrentamientos de un niño sordo en el proceso de escolarización y la solicitud de una comunicación digna. Por tanto, a través del análisis discursivo, el objetivo de este artículo es dilucidar cuáles son los discursos de este video sobre la sordera. ¿Qué discursos surgen de ella? Destacamos, desde el movimiento de análisis: quién es el sujeto del discurso y las posiciones que ocupa; el llamamiento de que la niña se refiera a los niños sordos en las escuelas ordinarias con los oyentes, indicando el deseo por la práctica de la inclusión escolar de una manera diferente a la que vive actualmente; las discusiones sobre el problema central, el (no) acceso a la comunicación, ya que se necesitan diferentes intervenciones (comunicación con compañeros, con profesores, traducción simultánea, apoyo de intérpretes, entre otras), que no siempre hacen accesible el contenido escolar; y, la demanda de una cultura de comunicación entre personas sordas y oyentes en un intento por modificar sus experiencias escolares.
Palabras clave: Comunicación; Libras; Sujetos sordos.
Introdução
A educação de surdos nas diferentes partes do mundo é marcada por processos de lutas e de conquistas desde a antiguidade até a contemporaneidade. Os surdos trazem em sua história marcos que retratam momentos de dificuldades e sofrimento na ausência de comunicação. Tal afirmação se sustenta, pois por muito tempo eram vistos como anormais, considerados loucos, diante disso, a surdez era eliminada com a morte ou o abandono desses sujeitos (BAGGIO; NOVA, 2017). Nesse cenário, os surdos sofreram por muito tempo e muito da sua história reflete as dificuldades que tiveram na comunicação entre eles e os ouvintes e que permanecem ainda no século XXI, pois ainda precisam superar os preconceitos da sociedade e mostrar que são sujeitos capazes (GESSER, 2009; BAGGIO; NOVA, 2017).
Um marcador histórico que auxilia nos entendimentos sobre tais situações é o Congresso de Milão (1880), o qual foi marcado pelo movimento em que o oralismo era imposto aos surdos e assim não podiam utilizar da sua língua natural, a língua de sinais (CRISTIANO, 2020, s.p.). Apesar da proibição do uso das línguas de sinais, os surdos continuaram a usá-la nos seus espaços de convivência. No entanto, eles as faziam às escondidas a fim de que não fossem pegos e destinados a algum tipo de castigo como já havia acontecido. Embora os registros nos mostram dificuldades enfrentadas pelos surdos, ainda existem alguns defensores do oralismo como método mais adequado à educação e desenvolvimento do sujeito surdo.
Em 1960, o linguista William Stokoe demonstrou do ponto de vista científico o caráter linguístico das línguas de sinais, ao estudar a língua de sinais americana (ASL)1. Nela, ele identificou os princípios estruturais semelhantes àqueles observados nas línguas orais (MARTINS; LISBÃO, 2019). Isso modificou “no âmbito da ciência, o modo de compreender a língua de sinais e sua relação com o aprendiz surdo” (MARTINS; LISBÃO, 2019, p.215). Essa é a “razão de terem ocorrido mudanças discursivas e avanços nas relações de empoderamento linguístico no século XX”. Dessa forma, em vez de “apenas ser representativa de gestos ou mímicas, a língua de sinais passou a valer como sistema linguístico” (MARTINS; LISBÃO, 2019, p.215).
Para Quadros (1997) e Quadros e Karnopp (2004), é importante destacar que em primeiro lugar, as línguas de sinais apresentam-se numa modalidade diferente das línguas orais; são, portanto, línguas espaço-visuais, isto é, a realização dessas línguas não é estabelecida através dos canais oral-auditivos, mas através da visão e da utilização do espaço. Assim, ao encontro do visto por Stokoe (1960) nos seus estudos, a autora destaca que as línguas de sinais se desenvolvem a partir do convívio e dos processos educativos entre os sujeitos surdos no meio em que vivem com seus pares, por exemplo, na comunidade surda2.
A surdez passou, então, a ser considerada uma marca que repercute nas relações sociais, no desenvolvimento subjetivo, afetivo, cognitivo, educativo (BAGGIO; NOVA, 2017). A língua de sinais aparece, então, diretamente ligada a tais relações e ao desenvolvimento do sujeito, sendo elemento central nos seus processos de significação, interação e subjetivação.
Nesse contexto, diante de uma variação entre as línguas de sinais nas suas mais diferentes variações geográficas em todo o mundo, no Brasil os surdos utilizam a Língua de Sinais Brasileira3, tomada aqui neste estudo como Libras,4 para se comunicar nos diferentes espaços que frequentam e não diferente disso, nos espaços escolares. A Libras tem papel fundamental no processo de ensino e aprendizagem dos surdos, é por meio dela que os surdos se comunicam com os seus pares. E mais: por meio dela ocorrem interações entre surdos com outros surdos, surdos e intérpretes, e também surdos e ouvintes que aprenderam a Libras para se comunicar com esses sujeitos.
Apoiando-nos nas contribuições de Quadros (1997) e Quadros e Karnopp (2004), a qual concebem que a língua de sinais é adquirida pelo sujeito surdo em contato com outros sujeitos que usam essa língua, destacamos que a educação dos surdos se dá pelo bilinguismo. A Libras, então, é tida como a primeira língua (L1) e o português, na modalidade escrita, a segunda (L2).
Sobretudo, os surdos também encontram dificuldades em aprender uma nova língua, mesmo que o português seja na modalidade escrita, isso acontece do mesmo modo que quando os ouvintes desafiam-se em aprender a Libras, pois para eles também há um desafio no aprendizado dessa nova língua, independentemente de ser uma na modalidade escrita, como o português, ou para os ouvintes, uma língua visuo-espacial como a Libras. Esse é um desafio para ambos, cuja qual, se superado, pode contribuir muito para o processo de ensino e aprendizado e na interação social e subjetivação desses sujeitos.
A educação bilíngue, cuja a questão de maior discussão se dá em torno do uso da Libras nos espaços escolares, também deve atentar às questões de identidades e culturas surdas. Para Perlin (2014, p. 231), “a educação cultural que se apresenta para assessorar e fortalecer o pulsar das identidades surdas se mostra como opção mais intensificada quando passa a identificar-se com a forma de vida surda (ideias, atitudes, linguagens, práticas)” e, também, “tanto quanto toda a gama de produções e de artefatos culturais (textos, mercadorias)”, isto é, os modos de subjetivação dos surdos (PERLIN, 2014, p. 231).
Em tal perspectiva, a “educação dos surdos tem procurado caminhos que garantam uma aprendizagem mais eficaz e mais eficiente, guardadas as peculiaridades próprias quando se trata da surdez” (BAGGIO; NOVA, 2017, p.50). Isso porque essa educação “tem conseguido inegáveis avanços, tanto nos aspectos pedagógicos quanto em relação às questões de inclusão social” (BAGGIO; NOVA, 2017, p. 50). Deste modo, aos poucos algumas barreiras que limitam essa inclusão tem sido e devem ser superadas; todavia, é um caminho que ainda deve ser percorrido, com conquistas diárias, e ao mesmo tempo, gradativas, para que de fato as barreiras sejam superadas; assim, é desafio constante a todos que se dispõem a isso.
Algumas dessas barreiras dizem respeito à comunicação limitada que existe entre surdos e ouvintes, dado o pouco conhecimento das pessoas de um modo geral sobre a Libras. Existem muitas situações entre surdos e ouvintes em que os surdos sofrem por não conseguirem se comunicar com as pessoas nos diferentes espaços que frequentam e vivem. Na escola, além da comunicação ficar comprometida, os processos de ensino e aprendizagem também se fragilizam, por sua vez, os processos de interações entre surdos e ouvintes não acontecem ou pouco se efetivam (de modo fragilizado). Nesse sentido, isso contribui para os processos de subjetivação dos sujeitos surdos, entretanto, de um modo diferente já que o sujeito se constitui em um contexto onde suas relações e comunicação são/estão fragilizadas. Para uma compreensão melhor desse contexto, onde as subjetividades surdas vão se “formando”, entendemos subjetivação por Foucault como “a maneira pela qual a relação consigo, por meio de um certo número de técnicas, permite constituir-se como sujeito de sua própria existência” (REVEL, 2005, p. 82).
A inclusão dos sujeitos com deficiência na escola emerge então como um espaço para a promoção do aprendizado e os processos de subjetivação desses sujeitos, que prescinde de diálogo, troca e compartilhamentos. Para Fabris e Lopes (2017, p. 66), “tal processo de subjetivação significa, entre outras coisas, fazer da inclusão uma das condições da sua própria existência”. Nessa perspectiva, a inclusão não seria mais “uma tarefa ‘só’ do Estado ou tomada nos limites do governamento sobre uma população e os indivíduos em particular, mas será a partir de tecnologias educacionais que permitam a ação do sujeito” (ibidem, 2017, p.66), isto é, sua subjetivação e diante desta permita sua comunicação em todos os espaços. Assim, “a ação do sujeito sobre si mesmo, uma das razões de ser sujeito" (FABRIS; LOPES, 2017, p. 66-67).
Nesse sentido, nos sensibilizou um vídeo publicado em 2020, em uma plataforma de mídia social, o Youtube, em que uma criança faz apelo aos modos como a escola se relaciona com os surdos. A escola abriu as portas para as diferenças, em sua mais sublime relação. Mas, parece ainda não assumir as diferenças linguísticas. Por que muitas vezes as aulas são ministradas por professores monolíngues, com estratégias, práticas e métodos que não atendem as especificidades visuais e linguísticas dos estudantes surdos? Por que avalia-se um aluno surdo numa língua que não é sua língua natural e/ou ainda os isolamos restringindo sua comunicação?
Pensando nos sujeitos surdos e na sua relação consigo (subjetivação) e com os outros, considera-se a necessidade da superação de algumas barreiras. Diante disso, emergiu a necessidade de realizar este estudo. Assim, lançamos a seguinte pergunta: Como a língua pode ampliar e qualificar a comunicação e a subjetivação dos surdos? Para tanto, este artigo tem a intencionalidade de apresentar os discursos e as posições dos sujeitos que estão no enunciado de um vídeo bilíngue sobre a surdez publicado em 2020, em uma plataforma de mídia social, o Youtube5, e em uma rede social, o Instagram.
Diante disso, por meio da análise discursiva, o objetivo deste artigo é elucidar quais são os discursos presentes no vídeo analisado. Busca-se, portanto, perceber quais são os discursos que dele emergem com base nas seguintes perguntas norteadoras: Quais os referentes que se identificam? Quem é o sujeito que fala? Quais as posições de sujeitos? Qual associação e correlação com outros discursos? (FISCHER, 2001). Partindo de tais colocações, por meio desta análise buscaremos compreender como a (in)existência da Libras pode interferir no processo de comunicação e em especial, de subjetivação dos sujeitos surdos na escola.
Metodologia
Esta pesquisa tem caráter qualitativo, que apresenta espaço para diferentes compreensões (GERHARDT; SILVEIRA, 2009). O caminho metodológico fundamenta-se na análise de um vídeo bilíngue (Libras e Português) de uma menina surda. O vídeo com duração de 1 min e 24s foi postado pela mãe da menina surda no seu canal de mídia social, o Youtube, e em sua rede social, o Instagram.
No Youtube e Instagram, o título da publicação foi: “Queremos Libras como disciplina obrigatória nas escolas”. Na descrição desta publicação o pedido era que as pessoas que vissem o vídeo e compartilhassem com os demais em suas redes sociais para que pudesse chegar aos órgãos competentes a fim de que tenham conhecimento da realidade das crianças surdas e tomem providências. Ao final, lança-se a hashtag #librasdisciplinaobrigatoria. Diante da emergência discursiva deste vídeo para este estudo utilizaremos alguns prints da tela com as imagens do vídeo para balizar as discussões propostas a seguir.
Para análise e produção de dados, utilizamos análise do discurso na perspectiva de Foucault. “O discurso designa, em geral, para Foucault como um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regra de funcionamento comuns” (REVEL, 2005, p. 37). Dessa perspectiva, compreendemos em Foucault que “essas regras não são somente linguísticas ou formais, mas reproduzem um certo número de cisões historicamente determinadas” (REVEL, 2005, p. 37).
Veiga-Neto (2011, p.99) destaca que “uma análise de discurso numa perspectiva foucaultiana não deve partir de uma suposta estrutura ou um sujeito-autor, que seriam anteriores aos próprios discursos e que se colocariam acima deles”. Não se trata, também, de “analisar os discursos como indicadores de sentidos profundos ou de determinadas individualidades intelectuais ou psicológicas, materializadas nesse ou naquele autor, inscritos, por sua vez, nessa ou naquela instituição” (VEIGA-NETO, 2011, p. 99). Trata-se, na perspectiva de Foucault, de analisá-los tendo sempre em vista que é por “uma certa economia dos discursos de verdade [que] há possibilidade de exercício de poder” (FOUCAULT, 1992, p. 179).
Desse modo, podemos pensar, ao encontro dos demais questionamentos que emergiram neste estudo, anteriormente expostos por Fischer (2001) e Foucault (1992), quais as economias de discursos que existem em torno dos sujeitos surdos e sua escolarização? Quais as relações de poder que se estabelecem diante desse cenário? Como neste contexto em que ainda há barreiras linguísticas os surdos estão se subjetivando? Diante de tais inquietações, seguiremos a discussão deste texto a fim de nos colocarmos enquanto sujeitos ativos, pesquisadores implicados; que também vão se subjetivando por estarem imersos nesta escrita.
Queremos Libras como disciplina obrigatória nas escolas
Para problematizarmos e tencionarmos as discussões acerca da Libras e suas contribuições na comunicação, interação e produção de subjetividades surdas nos espaços escolares, o vídeo escolhido mostra uma menina surda de nove anos matriculada no 4º ano do ensino fundamental. Para justificarmos tal escolha é importante mencionarmos em que contexto ele foi produzido.
A menina que aparece no vídeo chama-se Manuela, tem uma irmã que também é surda, filha de mãe surda e avós surdos. No Youtube6 e no Instagram, além da publicação intitulada “Queremos Libras como disciplina obrigatória nas escolas” (foco deste estudo), a mãe das meninas posta diariamente vários vídeos na sua página retratando a realidade que suas filhas vivenciam por serem surdas. As figuras abaixo elucidam a intencionalidade do vídeo realizado.
Figuras 1 e 2 – Vídeo Bilíngue
Fonte: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=r8UGoUphGMg. Acesso em: 10 out. 2020 .
Nas imagens expostas acima (1-2), a emergência discursiva deste enunciado é evidenciada logo no início do vídeo. Esta intencionalidade de divulgá-lo se dá em torno de dois motivos. Por um lado, a intenção é que o vídeo alcance e sensibilize o maior número de pessoas que não sabem Libras, por isso o vídeo é bilíngue, já que muitas pessoas não iriam entendê-lo se fosse somente em Libras, e se porventura isso ocorrer, uma das barreiras que os surdos enfrentam nos diferentes espaços que convivem já poderia estar sendo minimizada. Sobretudo, por outro lado, a emergência se dá na busca por maior visibilidade do vídeo que retrata a experiência que a Manuela tem até dado momento em seu processo de inclusão e escolarização. Nesse contexto, trata-se, especificamente, do contexto escolar, já que nestes espaços existe muita dificuldade na comunicação e interação dos surdos, isso porque o tempo de permanência deles nesses ambientes é longo, vai desde a educação básica até o ensino superior e pós-graduação, em alguns casos.
Nesse viés, tal busca decorre de uma luta por mais apoio por parte do poder público e também órgãos competentes, uma vez que o direito ao uso da Libras como L1 (Lei nº 10.436/2002) e a presença de um intérprete de Libras (Lei nº 12.319/2010)7 nas escolas já é previsto em lei. No entanto, mesmo que haja alguns projetos de lei que preveem a Libras como disciplina, ainda não se tem uma definição quanto a isso em todas as partes do Brasil (a prevalência de uma sugestão ainda é majoritária, o que parece não impulsionar tal inclusão).
Aí, o discurso de Manuela diz de um sujeito que fala de si, fala de suas experiências escolares, do ser surdo em uma escola de ouvintes, de relações fragilizadas pelas dificuldades de comunicação. O sujeito surdo que se posiciona em um lugar de visibilidade, dando a ver seus desejos, angústias e posturas diante daquilo que vivencia. O sujeito que se (re)posiciona de um possível lugar de invisibilidade escolar, para aquele de visibilidade virtual por meio das redes sociais, com alcance a um número significativo de outros sujeitos.
O discurso do sujeito surdo pode, agora, ser entendido, ser visto, ser pensado. O discurso de Manuela extrapola a escola. Ele transborda, ele se faz ver pelos braços e falas da menina. A menina surda que provoca o outro a pensar e olhar de modo mais atento àquilo que parece ser visto comumente de maneira tão apressada. A luz da perspectiva foucaultiana “o sujeito de um discurso não é a origem individual e autônoma de um ato que traz a luz os enunciados desse discurso; ele não é dono de uma intenção comunicativa, como se fosse capaz de se posicionar de fora desse discurso para sobre ele falar” (VEIGA-NETO, 2011, p. 91).
Nessa perspectiva, compreendemos ainda que, neste caso, Manuela não é um sujeito de um discurso de origem individual, mas sim sujeito que representa muitos outros que ainda sofrem com a falta da Libras no se comunicar com as demais pessoas. A posição que ela ocupa é uma posição de um sujeito que tem “voz” ativa na luta por direitos e atenção às necessidades dos sujeitos surdos. Ela é um sujeito que se subjetiva, e que produz outras subjetividades, como uma representante de uma comunidade específica: a comunidade surda. Seu discurso é coletivo e dá a ver as angústias e desejos de muitos outros, pois ela não diz somente de si. Ao falar de sua experiência escolar, Manuela diz da experiência de muitos sujeitos surdos. O sujeito que fala, mas daquilo que se correlaciona com experiências do coletivo.
Ao encontro das colocações feitas por Fischer (2001) e Foucault (1992), seguimos questionando: qual a economia dos discursos de verdade que existem nesta fala “ativa” que Manuela tem representando a comunidade surda? Quais são as relações de poder que existem nesse contexto que ela está inserida? E, ainda, porque a Libras não é vista pelos órgãos competentes como um investimento promissor na superação de barreiras de comunicação entre os surdos e na produção das subjetividades surdas?
Fabris e Lopes (2017) apontam que os discursos sobre a inclusão geram efeitos de verdade distintos nos sujeitos. Segundo as autoras, para analisar a inclusão não basta mapear o presente a partir da coleta de políticas, leis, regulamentos, história de vida, testemunhos, etc. É “condição para entender a sua emergência focar acontecimentos passados”, buscando estabelecer, sempre de forma “arriscada e perigosa, relações entre acontecimentos aparentemente desconexos, mas que são capazes de nos fazer entender aquilo que nos tornamos, aquilo que lutamos, e aquilo que acreditamos no presente” (FABRIS; LOPES, 2017, p. 19). Nesse viés, não são somente as políticas, leis, regulamentos, história de vida, testemunhos, etc., que dizem o que determinado sujeito é, mas sim, também, tudo aquilo que o coloca em movimento de pensar e que acontece ao seu redor. No caso dos surdos, não é só a Libras que os faz constituir-se sujeitos, mas também todas as relações que ele estabelece com as pessoas que estão à sua volta. Diante disso, a linguagem ocupa um papel fundamental nesse processo.
Quem é o sujeito surdo na escola?
Em busca de entender a relação de acontecimentos/situações/fatores que nos fazem constituir-se sujeitos, e em especial, no caso dos sujeitos surdos, entendemos que a linguagem é um desses “acontecimentos” na vida dos sujeitos que os constituem, ou seja, que os subjetivam ao longo da vida. Diante disso, tratamos a escola como espaço de possibilidades capaz de promover a subjetivação desses sujeitos.
Antes de aprendermos a língua falada/sinalizada onde vivemos, “desde muito pequenos naturalmente desenvolvemos uma forma de linguagem, nem que seja para expressar fome, sono ou dor, mais tarde por meio dela vamos exprimir ideias e sentimentos” (SANTIAGO, 2014, p.115). Nesse viés, “ela se modifica de acordo com o contexto social e histórico, a cultura, faixa etária, com a regionalidade, entre outros, que são elementos indissociáveis e determinantes no uso da língua”, ou seja, “não é algo que aprendemos sistematicamente na escola: a língua é internalizada em nós, aprendemos na vida e com a vida em todos os espaços e lugares que estamos inseridos” (SANTIAGO, 2014, p.115). Ante ao exposto, compreende-se que esses elementos são constitutivos e constituintes dos contextos que permeiam a comunicação humana, que só pode existir a partir das enunciações concretas dos sujeitos do discurso (SANTIAGO, 2014).
Figura 3 e 4 – Vídeo Bilíngue
Fonte: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=r8UGoUphGMg. Acesso em: 10 out. 2020 .
Conforme o exposto no decorrer do vídeo (figura 3-4), Manuela não tem outros colegas surdos, o que faz com que ela sinta-se sozinha e isolada no espaço escolar. Isso se dá pelo fato de que seus colegas ouvintes não sabem Libras e por isso não se comunicam e/ou interagem durante as aulas e em tempos de intervalos e atividades de passeio e recreação. Ela destaca: “eles não sabem lidar bem com minha surdez” (Figura 3-4). Entretanto, nesse contexto, o que muitas vezes ocorre é que a comunicação fica limitada pela presença ou ausência da Libras e não decorre da própria linguagem. Nesse viés, qual é o papel da escola? E como os sujeitos surdos estão se subjetivando nesses espaços escolares?
Consoante a essas indagações, podemos pensar: Como a escola pode cumprir o seu papel na escolarização dos surdos? Para Moura (2011, p. 155), isso pode ocorrer “de tantas formas diferentes, mas sempre se baseando numa premissa básica: ser capaz de se comunicar com seus alunos”. A referência feita pelo autor (2011) de “se comunicar com seus alunos” nos permite destacar que esta comunicação pode ocorrer de diferentes modos: por meio da linguagem, do movimento de acolhida dos sujeitos, mas em especial, no caso dos surdos, através da sua língua natural, a Libras. Ressalta-se, contudo, outro ponto importante: “de que forma a escola seria capaz de socializar, promover o desenvolvimento cognitivo, ampliar habilidades linguísticas orais ou escritas se não houver uma língua a ser partilhada?” (MOURA, 2011, p. 155).
Entendemos serem importantes os movimentos sociais que atendam às necessidades dos sujeitos com deficiência e, em especial, no contexto desta pesquisa, àqueles que contemplam ações em prol da comunidade surda e permitam a esses sujeitos se constituírem e ocupar os lugares e posições de visibilidade e protagonismo nas lutas pelos seus direitos e respeito às suas especificidades. Nessa direção, marcamos a Libras também como uma “ferramenta” que, para além de atuar na amplitude da linguagem, permite e promove a comunicação e movimentos de socialização, desenvolvimento, ampliação das habilidades linguísticas dos surdos. O movimento de busca por uma escola bilíngue “vem caminhando em uma direção na qual as diferenças linguísticas e culturais têm sido a principal bandeira de luta” (BREGONCI, 2018, p. 108-109). Para tanto, apresenta-se a comunidade surda como “um grupo minoritário e cuja peculiaridade demanda um contexto diferenciado de aprendizagem” (BREGONCI, 2018, p. 108-109).
Nessa perspectiva, o discurso de Manuela nos provoca a pensar nas posições deste sujeito na escola. O discurso que diz de um lugar de isolamento. Suas posições se fazem nas interações fragilizadas, e o sujeito aprende (ou precisa aprender) em contexto de pouca comunicação. Arroyo (2019) clama por uma outra pedagogia em que os sujeitos precarizados com seus rostos e suas condições nos interpelam moralmente. Manuela com seu olhar nos interpela. Como esquecer esse apelo da menina surda? É uma criança pedindo para qualificar sua comunicação. Para Arroyo (2019, p. 166), “quem cala consente a morte, quem cala morre comigo, e quem grita vive comigo”. Rostos, linguagens, vocalizações sem palavras, sinalizações com palavras.
Nos espaços escolares (entre outros), onde as subjetividades surdas vão se “formando”, concebemos a subjetivação, conforme destacado anteriormente por Revel (2005), como a maneira pela qual a relação consigo, e esta maneira se dá por meio de um certo número de técnicas, cujas quais se permite o sujeito constituir-se como sujeito de sua própria existência. Ao encontro do proposto nesse estudo, “o ‘SER’ (...), ser sujeito da própria existência, é então, o ser surdo, que busca por reconhecimento através da língua de sinais, e por meio dela, também é subjetivado e é SER….” Ser o que for, o que quiser ser (MATTOS; VIEIRA-MACHADO, 2018, p. 34).
Tal subjetividade, de acordo com Woodward (2014, p. 55), “envolve os pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes que constituem nossas compreensões sobre “quem nós somos”. A partir dessa concepção, entendemos que a subjetividade abarca “nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais” (WOODWARD, 2014, p. 56), que se constituem a partir daquilo que somos em relação ao outro, com as práticas sociais (como as escolares) que nos constituem. Esta constituição se dá no individual, mas é produzida pelas práticas sociais no coletivo, de acordo com o contexto social no qual estamos inseridos; no caso dos surdos, em escolas bilíngues e/ou escolas comuns inclusivas.
Dito isso, destacamos a linguagem que, para além de ser uma ferramenta de comunicação, proporciona as formações simbólicas estruturadas pelo inconsciente e consciente. Nessa direção, como destaca Maingueneau (2013), é através da linguagem que o sujeito se constitui, se reconhece e se define enquanto ser, ou ainda se subjetiva. Desse modo, o sujeito mergulhado no campo da linguagem, se torna consequência dos discursos. O processo de aquisição da linguagem e da comunicação para os sujeitos surdos durante seu processo de formação e escolarização é imprescindível para o exercício da afirmação de sua alteridade, é a condição que marca suas existências. As experiências de linguagem contribuíram para a constituição das subjetividades operar também na memória, na inteligência, na sensibilidade, nos afetos.
Qual o lugar da linguagem nesse contexto escolar? Além de produzir subjetividades, a linguagem atua na “quebra” dessas barreiras de comunicação, na construção e ampliação do conhecimento. Isto porque, é por meio dela que ocorrem as interações entre surdos e ouvintes.
Desses pressupostos, a linguagem, por sua vez, “em essência, social, desenvolve-se nas relações que estabelecemos com o outro (s), nos diferentes contextos sociais nos quais somos inseridos” (LODI, 2014, p.167). Assim, “para desenvolvê-la, devemos estar em relação com outros que utilizem uma língua que nos seja acessível – nos casos das crianças surdas, a língua de sinais” (LODI, 2014, p.168). Compreende-se disto que “todo o desenvolvimento da criança depende da presença do outro, daquele que possui domínio da linguagem para, dialeticamente, constituir-se como sujeito na e pela linguagem” (LODI, 2014, p.168).
Segundo Lodi (2014), o desenvolvimento da linguagem em Libras pelas crianças surdas ocorre da mesma maneira que ocorre com as crianças ouvintes, embora tenham uma função comunicativa, não carregam em si a intenção de dizer algo. Segundo a autora, “serão as interpretações do outro, colocando essa criança no lugar de interlocutor, que alterarão e transformarão as produções da criança em linguagem propriamente dita” (LODI, 2014, p. 169). Nesse viés, são as subjetividades surdas que promoveram essa transformação decorrente desse processo de aprendizado por meios da linguagem.
Dessa perspectiva, destacamos a Libras como pressuposto das subjetividades surdas, tendo em vista que é por meio dela, como principal meio de comunicação desses sujeitos, que eles buscam perceber o mundo e constituir seu jeito de estar no mundo mediante suas culturas e identidades próprias, do mesmo modo que outras formas de se expressar pela linguagem fizeram/fazem parte deste processo.
A emergência da Libras nos currículos escolares
Em um último movimento identificado no vídeo de Manuela, percebe-se o discurso da menina surda associado/correlacionado com outros discursos. E aquilo que Manuela diz e dá a ver não se faz de modo isolado ou não representativo. Seus discursos visualizados nas imagens 5, 6 e 7 são objetivos, pontuais e diretamente ligados com documentos legais que tratam da educação de surdos no Brasil.
Figuras 5, 6 e 7 – Vídeo Bilíngue
Fonte: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=r8UGoUphGMg. Acesso em: 10 out. 2020
A menina que fala é o sujeito que cria espaços, por meio do vídeo (das mídias sociais) de visibilidade na intenção de dar a ver seus desejos e angústias. Há o desejo claro por mudanças, o pedido pela disseminação e reconhecimento da língua de sinais (no sentido de ser conhecida e utilizada pela população de modo mais abrangente). Um desejo de iniciar “uma caminhada” que não seja tão solitária, pois o que se pede já significaria “um grande passo”.
O vídeo apela, pede, solicita. O vídeo escancara ao público em geral aquilo que Manuela vive e sente nas suas experiências escolares. E por meio de pistas visuais (a troca de cores de canetinha, vermelha e azul, ou mesmo a escrita com letras maiores, sublinhadas) a tentativa de destaque não vem ao acaso. Torna-se válido atentar para quais palavras aparecem em vermelho, ou mesmo para aquelas que além do vermelho aparecem em letra diferente, que não é cursiva (uma possível indicação de algo que não flui? Algo truncado? Textos que fluem e outros não? A comunicação que se dá de modo natural e fluido para ouvintes, mas de modo truncado para aqueles que usam a Língua de Sinais como L1?). Há sim a tentativa de “fazer ver” o discurso do sujeito surdo sobre seus processos de escolarização em uma escola comum inclusiva.
As expressões faciais de Manuela também surgem como elementos significativos, pois são próprias da língua de sinais, mas, especialmente, são da ordem das sensações. E a expressão facial e corporal da última imagem (7) é da ordem da esperança, da alegria, da confiança que se deposita na repercussão do vídeo, que deste modo se encerra. Uma expressão que vai tomando forma e surgindo no decorrer das cenas e na transição dos cartazes. O discurso que transita pelas sensações de inquietação, tristeza, isolamento, indignação e, finalmente, deposita-se no verbo esperançar, daquele que mantém a esperança como base do discurso.
É evidente que o discurso de Manuela não é um discurso isolado. Ele é emergente entre tantos outros no movimento de inclusão dos surdos na escola e nos demais lugares que convive. Diante disso, alguns parlamentares que reconhecem a necessidade de melhoras na educação de surdos e a Libras como algo indispensável nesse processo propuseram projetos na Câmara de Deputados em Brasília8 para tornar a Libras como disciplina obrigatória (como uma das ações para inclusão desses sujeitos). Esse é um processo em construção que demanda um trabalho em rede, entre Estado, Escola e a Comunidade Surda. Faz-se necessário reconhecer essa especificidade linguística dos surdos, mas também, entre outras ações, haver maiores investimentos em formação de profissionais para atuar no ensino de Libras nas escolas.
Essa é uma luta constante dos sujeitos surdos por mais inclusão, pela aceitação e reconhecimento da Libras como língua natural e que melhor atende a sua educação potencializando o seu processo de escolarização e desenvolvimento. Será somente Manuela que clama por isso? Com certeza, não! Esse é um discurso que toma a muitos sujeitos, sobretudo Manuela (e sua mãe) que continua(m) se manifestando e procurando mobilizar ainda mais pessoas a esta causa através do uso de seus canais de comunicação, Youtube e Instagram.
Considerações finais
Na análise deste vídeo percebemos que os discursos que emergem dele se dão na ordem de diferentes campos (escola, comunidade surda, redes sociais) - fato que colabora na análise do discurso na qual nos propomos neste estudo. Podemos perceber ainda, ao encontro da nossa pergunta de pesquisa, que língua pode ampliar e qualificar a comunicação e a subjetivação dos surdos tendo em vista que ela perpassa e está entre os discursos que emergem do vídeo. É por meio dela junto da linguagem, que eles vão se subjetivando ao longo da sua vida, bem como nos espaços escolares. Desse modo, foi possível, a partir das contribuições de Foucault (entre outros autores, que colaboraram nas discussões propostas), ver um “deslocamento” da Manuela por diferentes momentos a partir dos relatos presentes no vídeo.
Em síntese, mencionamos aqui três destes momentos (deslocamentos) analisados ao longo do vídeo. O primeiro, mostra quem é o sujeito que fala: é Manuela, uma criança surda, matriculada em uma escola comum, que vive (ainda em 2020) em um contexto de precariedade no que tange ao reconhecimento linguístico dos surdos e sua inclusão escolar. O segundo, retrata qual a posição desse sujeito: sujeito surdo, que fica/se sente isolado por não haverem mais pessoas que dominem a Libras, sendo sua principal forma de comunicação e interação com outros sujeitos. O terceiro: evidencia o apelo que Manuela faz e a correlação de seu discurso com tantos outros da comunidade surda, por mais investimentos por parte do poder público em promover discussões sobre a inclusão de sujeitos surdos e, principalmente, a inclusão da Libras como disciplina obrigatória nas escolas.
Nesse contexto, embora a Libras seja reconhecida (a partir da Lei nº 10.436/02, e regulamentada pelo Decreto 5.626/05), ela ainda não é a língua majoritária de comunicação dos surdos nos espaços que frequenta, principalmente na escola. Mesmo havendo documentos como bases legais para garantir a Libras, conforme citados anteriormente, destacamos que uma das precariedades de sua oferta nas escolas como disciplina obrigatória se dá por que sua oferta ocorre apenas em cursos de fonoaudiologia e em cursos de formação de professores. Dessa maneira, faltam profissionais para realizar esse trabalho. Outro fator é que esses documentos não trazem a Libras como oferta obrigatória em todos demais cursos, ficando como disciplina optativa, nesses casos. Para tanto, se não houver interesse pelos órgãos responsáveis, por exemplo, o Ministério da Educação, em ampliar esta oferta nos diferentes cursos de formação, isso não irá mudar.
Podemos perceber que não é somente Manuela que vivencia/vive com uma comunicação fragilizada e ainda fica/se sente isolada nos espaços escolares. Isso ainda acontece porque as bases legais vigentes até o momento são insuficientes para mudar essa realidade. Cabe ressaltar que, infelizmente, na maior parte das ações que tratam dos processos de inclusão, é somente através de leis que as mesmas se efetivam (é o que se espera, porém nem sempre acontece).
Entendemos que é necessário, para que essa entre tantas outras realidades de crianças surdas seja diferente, um maior empenho por parte dos órgãos competentes em investir na educação dos surdos. Esperamos que isso mude, com os esforços dos surdos e de toda comunidade simpatizante dessa causa, através da luta por mais acesso e comunicação para todos os sujeitos surdos a fim de que todos possam ser acolhidos e tenham seus direitos respeitados e considerados em todos os espaços que frequentam, especialmente na escola.
Assim, fica o desejo pela visibilidade do vídeo e dos desejos que compõem seus discursos. O desejo pelo debate sobre o assunto, sobre olhares mais atentos às reivindicações da comunidade surda, sobre a desnaturalização de processos de escolarização que se dão de modo fragilizado e socialmente aceitáveis. O desejo que a esperança de Manuela, visível nas últimas imagens do vídeo, se repliquem e frutifiquem em práticas escolares mais inclusivas e interativas, em relações menos fragilizadas, mais potentes e capazes de produzir aproximação e aprendizagem.
Referências
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Notas
1 Em inglês, significa American Sign Language - ASL.
2 O termo comunidade surda é aqui trazido a partir de Lopes (2011), segundo a qual dá-se ênfase a ideia “de invenção da comunidade surda, a partir de uma série de elos observáveis que passam por comunicação, territorialidade, uso do tempo, do espaço e das regras sociais [...]” (p.75). Assim, “como uma invenção, ao mesmo tempo de cada indivíduo e de um grupo, a comunidade é também um conceito criado no particular e alimentado no coletivo. No caso dos surdos, não há um lugar específico da comunidade [...], mas existem elos subjetivos capazes de marcar e fortalecer identidades e de fazer com que os indivíduos se reconheçam” (p.75).
3 Para as autoras Quadros (1997), Quadros e Karnopp (2004) a terminologia adequada para descrever a língua de sinais usada aqui no Brasil é Língua de Sinais Brasileira, uma vez que não uma língua brasileira que é desenvolvida por meio de sinais, e sim a língua de sinais dos surdos própria aqui do Brasil. Salienta-se, no entanto, que as autoras não usam uma sigla para referenciar tal língua, deste modo, tomamos aqui neste estudo a Libras para esta representação.
4 Lei 10.436 de 24 de Abril de 2002 - Reconhece a Libras como a primeira língua (L1) dos surdos.
5 Acesso do vídeo no Youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=r8 UGo UphG Mg.
6 No Youtube o vídeo obteve 95 visualizações. Até o momento desta escrita (2021) o canal conta com 394 inscritos. Já no Instagram, não é possível ver quantas visualizações o vídeo obteve. Sobretudo, usando na busca as hashtags #librascomodisciplia, #librascomodisciplinaobrigatória e #librascomodisciplinacurricular e #librascomodisciplinasnasescolas foi possível identificar que ele foi compartilhado em outras 9 contas do instagram, alcançando outras pessoas de diferentes contextos.
7 Lei nº 12.319, de Setembro de 2010 - regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS.
8 Duas propostas em tramitação no Senado incluem a Libras nos currículos escolares. Um dos projetos, o PL 6.284/2019, determina que o idioma seja a primeira língua de comunicação na escola para estudantes surdos. A outra proposta (PL 5.961/2019) quer incluir conteúdos relativos à Libras para todos os alunos indistintamente, surdos ou não (AGÊNCIA SENADO, 2020). Notícia na íntegra em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/01/22/dois-projetos-incluem-a-libras-nos-curriculos-escolares. Além deles, o Projeto de Lei 3986/20 inclui o ensino da Libras como disciplina obrigatória no currículo do ensino fundamental. Mais inoformações em: https://www.camara.leg.br/noticias/715913-projeto-inclui-ensino-de-libras-como-disciplina-obrigatoria-do-curriculo-do-ensino-fundamental/ (AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS, 2020).
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