http://dx.doi.org/10.5902/1984686X65388
Transtorno do Espectro do Autismo em Minas Gerais: Panorama da Formação Médica1
Autism Spectrum Disorder in Minas Gerais: A Picture of the Medical Training
Trastorno del Espectro Autista en Minas Gerais: Panorama de la Formación Médica
Maria Luísa Magalhães Nogueira
Professora doutora da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: malu.mnogueira@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9024-4671
Cássia Beatriz Batista
Professora doutora Universidade Federal de São João del-Rei, São João del Rei, MG, Brasil
E-mail: cassiabeatrizb@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9393-0340
Marina Santos Moulin
Graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: marinasmoulin@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8885-8356
Jardel Sander da Silva
Professor doutor da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: jardelss@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4785-7047
Recebido em 21 de abril de 2021
Aprovado em 14 de junho de 2022
Publicado em 25 de julho de 2022
RESUMO
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento, cuja etiologia não apresenta fatores bem definidos com evidências de predisposição genética, mas com diagnóstico clínico. Apresenta-se atualmente como questão de saúde pública em virtude da alta prevalência. A intervenção precoce especializada e intensiva é determinante para um bom prognóstico. Daí a importância de que os médicos realizem triagem de indicadores do Transtorno do Espectro Autista para encaminhamento à estimulação e acesso aos direitos. A nota técnica do MEC (2013) orienta os sistemas de ensino sobre o TEA para uma formação em saúde que contemple conhecimentos acerca da deficiência, e as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina também alinham-se a essa orientação. Tendo em vista este cenário, objetivou-se documentar e compreender a presença de conteúdos sobre TEA nos currículos de graduação médica em Minas Gerais. Foram analisados Projetos Pedagógicos, matrizes curriculares e ementários de 29 cursos mineiros. Os conteúdos teórico-metodológicos foram organizados entre psicopatologia/psiquiatria e saúde da criança/pediatria. A análise documental indica a ausência de especificação de tais conteúdos nos currículos de medicina, ou seja, a ênfase para esta questão de saúde pública ainda requer esforços para mudar a educação médica.
Palavras-chave: Educação Médica; Currículo; Transtorno do Espectro do Autismo (TEA); Neurodesenvolvimento.
ABSTRACT
Autism Spectrum Disorder (ASD) is a neurodevelopmental disorder whose etiology does not present well-defined factors, with evidence of genetic predisposition, but with clinical diagnosis. It is currently a public health issue due to its high prevalence. Specialized and intensive early intervention is crucial for a good prognosis. Hence the importance for doctors to screen indicators of Autistic Spectrum Disorder for referral to stimulation and access to rights. The technical note from MEC (2013) guides the teaching systems on TEA for health training that includes knowledge about disability, and the National Curricular Guidelines for the Undergraduate Medical Course are also in line with this orientation. In view of this scenario, the objective was to document and understand the presence of content on ASD in medical undergraduate curricula in Minas Gerais. Pedagogical Projects, curricular matrices and curriculums of 29 courses from Minas Gerais were analyzed. The theoretical-methodological content was organized between psychopathology / psychiatry and child health / pediatrics. The documentary analysis indicates the lack of specification of such content in medical curricula, that is, the emphasis on this public health issue still requires efforts to change medical education.
Keywords: Medical Education; Curriculum; Autism Spectrum Disorder (ASD); Neurodevelopment.
RESUMEN
El Trastorno del Espectro Autista (TEA) es un trastorno del neurodesarrollo cuya etiología no presenta factores bien definidos con evidencia de predisposición genética, pero con diagnóstico clínico. Actualmente es un problema de salud pública debido a su alta prevalencia. La intervención temprana especializada e intensiva es fundamental para un buen pronóstico. De ahí la importancia de que los médicos examinen los indicadores del trastorno del espectro autista para derivarlos a la estimulación y el acceso a los derechos. La nota técnica del MEC (2013) orienta los sistemas de enseñanza acerca del TEA para la formación en salud que incluye conocimientos sobre discapacidad, y los Lineamientos Curriculares Nacionales de la carrera de Medicina de Pregrado también están alineados con esta orientación. Ante este escenario, el objetivo fue documentar y comprender la presencia de contenidos sobre TEA en los planes de estudios de pregrado de medicina en Minas Gerais. Se analizaron proyectos pedagógicos, matrices curriculares y temarios de 29 cursos de Minas Gerais. El contenido teórico-metodológico se organizó entre psicopatología / psiquiatría y salud infantil / pediatría. El análisis documental indica la falta de especificación de dicho contenido en los planes de estudios médicos, es decir, el énfasis en este tema de salud pública aún requiere esfuerzos para cambiar la educación médica.
Palabras clave: Formación Médica; Currículo; Trastorno del Espectro Autista (TEA); Neurodesarrollo.
Introdução
O verbete “culture” da Enciclopédia de Autismo de Fred Volkmar traça com muita precisão o quanto a cultura influencia o diagnóstico, o desenvolvimento de tratamentos e o acesso às intervenções para as pessoas com TEA no mundo, variando até mesmo dentro de cada país, de acordo com o nível de conscientização de pais, educadores e médicos, e de acordo com o acesso aos serviços disponibilizados. O texto afirma: “[...] a maioria dos médicos e psicólogos não estão integrados a uma comunidade de pesquisa e provavelmente se apoiam em treinamento passado e na experiência clínica pessoal" (GRINKER; DALEY; MANDELL, 2013, p. 832, tradução nossa)2. Neste texto, discutiremos um ponto em específico: como a formação em Medicina prepara o profissional médico para o TEA, nos dias de hoje, no Brasil, tendo como amostra o Estado de Minas Gerais.
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento cuja etiologia não apresenta fatores bem definidos, apresentando relações entre fatores genéticos e ambientais. É caracterizado, de acordo com a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014), por déficits sociocomunicativos significativos e persistentes, incluindo comunicação verbal e não verbal, comportamentos e interesses restritos e estereotipados, além de questões relacionadas a processamento sensorial. A forma de descrição e diagnóstico desta condição variou bastante, desde suas primeiras descrições nos anos 1940, pelos médicos Leo Kanner e Hans Asperger, mas o elemento central do diagnóstico segue em sintonia com as impressões iniciais por eles propostas, marcado pelos déficits sociocomunicativos, ainda que movimentos que contam com a presença de pessoas com autismo em diálogo com equipes de pesquisa, como a perspectiva da neurodiversidade, venham tensionando algumas dessas concepções. Não apresentando marcadores biomédicos, o diagnóstico é realizado clinicamente por profissionais como psiquiatra, neurologista e psicólogo por meio da observação da criança e entrevista com os pais, e é profundamente marcado por questões culturais (NOGUEIRA et al., 2015). A obra da historiadora Edith Sheffer (2019) é particularmente interessante no apontamento dos atravessamentos culturais presentes na construção do diagnóstico de autismo desde suas primeiras descrições. Ela afirma:
Múltiplos fatores modelaram nossas atuais abordagens do autismo, como o financiamento de pesquisas, a legislação para deficientes, os serviços públicos, as políticas educacionais, o ativismo dos pais, as campanhas de conscientização, as organizações sem fins lucrativos e a representação na mídia (SHEFFER, 2019, p. 231).
A tese de Amanda Caitité, realizada no Brasil, entende:
No entanto, o que muda de um campo de saber para o outro, de uma época para a outra, não são exclusivamente os significados produzidos sobre o autismo, é a realidade em si mesma, que não é única, mas múltipla (CAITITÉ, 2017, p. 20).
Mesmo sendo um transtorno do neurodesenvolvimento com bases genéticas, é evidente que elementos culturais, como a formação dos profissionais de saúde, transpassam o diagnóstico e as intervenções tanto em termos de acesso a elas, quanto com relação aos objetivos estabelecidos nos modelos de intervenção praticados em cada momento histórico e de acordo com cada país.
O texto do sociólogo inglês Damian Milton, ele mesmo autista e pai de uma criança com autismo, pergunta justamente para que e a quem servem os muitos tratamentos já desenvolvidos para o TEA, ou seja, o que buscam alcançar (e por quê?), com quais cuidados éticos e quais benefícios são considerados. O autor sugere que muitos estudos de intervenção medem níveis de habilidade, ansiedade, estresse, QI, etc., mas se ausentam em verificar os impactos em termos, por exemplo, de terem como resultado se a criança autista ou adulto agora é mais feliz (MILTON, 2014a) .
Se, por um lado, o modelo médico da deficiência vem sendo questionado por estudiosos que trazem como alternativa o modelo social, no qual a deficiência não é tomada como algo do indivíduo, mas construída sociohistoricamente. Por outro lado, é preciso reconhecer as contribuições já realizadas pelo primeiro modelo, bem como questionar se tal alternativa está chegando, e como, na formação dos profissionais de saúde. Na segunda via, busca-se um novo modelo, que nos ajude a "[...] desaprender noções de capacidade, a reconhecer a diferença como uma variação humana natural e a melhor compreender as complexidades subjacentes à implementação da inclusão” (VALLE; CONNOR, 2014, p. 12).
Numa linha de pensamento semelhante, Francisco Ortega entende que
[...] a deficiência não é uma tragédia pessoal; é um problema social e político. Ela não existe para além da cultura e do horizonte social que a descreve como tal e nunca pode ser reduzida ao nível biológico e/ou patológico. (...) só existem atributos ou características do indivíduo considerados problemáticos ou desvantajosos em si por vivermos em um ambiente social que considera esses atributos como desvantajosos (ORTEGA, 2009, p. 68).
A própria compreensão do TEA como um transtorno sociocomunicativo, ou seja, tendo como base relações sociais e comunicativas, traz em si a relação com o outro, que depende não apenas da pessoa com TEA. Ou seja, “[...] essa forma particular de se engajar com o mundo não pode ser reduzida a um problema meramente cognitivo” (RIOS, 2018, p. 168). Como Damian Milton discute em seu trabalho sobre o que chamou de “problema da dupla empatia” (MILTON, 2014b), historicamente os desafios enfrentados pelas pessoas com TEA são atribuídos exclusivamente a elas mesmas, mas suas dificuldades de interação envolvem, necessariamente, também as pessoas com quem os autistas interagem. O autor apresenta diversos estudos em que barreiras são identificadas nas atitudes das pessoas não-autistas (MILTON, 2014b). Atualmente, vemos que na prática científica o foco da intervenção para o autismo não tem a cura como objetivo, mas o tratamento das comorbidades e intervenções que reduzam os atrasos no desenvolvimento, favorecendo a independência e qualidade de vida desses sujeitos na vida adulta. Ainda assim, são frequentes os tratamentos "alternativos" sem base científica, muitos deles perigosos (HALL; RICCIO, 2012), o que sugere que a percepção do TEA como uma condição neurodiversa, e não “patológica”, é ainda um processo em construção.
Existem intervenções eficazes com reconhecida comprovação científica, elas apresentam melhores resultados quanto mais precocemente são aplicadas (ROGERS; DAWSON, 2014). É consenso que intervenções antes dos 3 anos e meio de idade têm um impacto maior do que depois dos 5 anos, e que se iniciadas antes dos 2 anos de idade poderiam ter um impacto ainda maior. Essas intervenções, se precoces, atuam de modo a prevenir a instalação de uma cascata de prejuízos, e apresentam uma mudança de prognóstico para as crianças, além de atuarem reduzindo o estresse parental (LORD et al., 2018). Assim, é essencial que as crianças com suspeita de TEA sejam encaminhadas quanto antes para intervenção precoce especializada, com evidência científica, já que o acesso à estimulação adequada é determinante para um bom prognóstico.
Atualmente, o TEA pode ser caracterizado como uma questão de saúde pública, com alta e crescente prevalência na população. De acordo com o relatório norte-americano do CDC - Center for Disease Control and Prevention, de 2016, a prevalência do Transtorno do Espectro Autista é de 1 para 54 crianças de 8 anos (MAENNER et al., 2020). Os dados sobre a prevalência do transtorno no Brasil ainda são frágeis – apenas um estudo piloto foi realizado na cidade de Atibaia, em São Paulo (PAULA; BELISÁSIO FILHO; TEIXEIRA, 2016). Entretanto, a organização não governamental Autismo e Realidade tem uma estimativa de que a população de pessoas dentro do espectro no país seja de 1,9 milhão.
No contexto brasileiro, considerando o Sistema Único de Saúde (SUS), os profissionais que têm o primeiro contato com as crianças são os médicos que atuam na atenção primária. Assim, é necessário que esses profissionais estejam capacitados para identificar sinais característicos do Transtorno do Espectro do Autismo para que as crianças sejam encaminhadas a especialistas. Nesse sentido, é ainda importante que, para além da suspeita ou do diagnóstico fechado, é preciso que as famílias tenham acesso às intervenções, e que a criança tenha acesso aos seus direitos previstos por lei, uma vez que a lei 12.764/2012 determina que a pessoa com TEA goza dos mesmos direitos da pessoa com deficiência (BRASIL, 2012). No Brasil, a intervenção precoce ainda não é uma realidade, os pais percebem os sintomas por volta dos primeiros 2 anos de vida, mas o tratamento só tem início tardiamente, em torno de 6 anos (RIBEIRO et al., 2017).
Uma vez que o diagnóstico, ou suspeita, é essencial para o acesso a direitos e crucial para que muitas crianças comecem a receber intervenção, é indispensável que os profissionais da saúde estejam capacitados para detectar os sinais de autismo e encaminhar os pacientes para atendimento especializado. Tendo em vista a saúde primária como porta de acesso para intervenção precoce para TEA, este trabalho teve como objetivo documentar e compreender a presença de conteúdos sobre TEA nos currículos de graduação médica de universidades públicas e particulares do estado de Minas Gerais. Assim, pretende-se não só traçar o panorama da formação médica em relação ao TEA, mas evidenciar possíveis lacunas, representando um importante passo em direção ao fomento de políticas públicas que atuem no sentido da inclusão, considerando o acesso à intervenção adequada um direito das pessoas com deficiência, conforme a Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, que hoje integra a Constituição Brasileira.
O estudo de Shah et al. (2001) avaliou o conhecimento sobre TEA (diagnóstico, causa, sintomatologia, tratamento e resultado) de 250 estudantes de medicina na Inglaterra, em diferentes estágios de seu treinamento, verificando que não foram encontradas diferenças significativas entre alunos de 1º e 4º anos de medicina, concluindo, portanto, que é necessário dar mais ênfase ao TEA no ensino de estudantes de medicina.
Um estudo realizado no estado de Minas Gerais (SANDER et al., 2020), indica que a formação generalista em Psicologia não é suficiente para que o profissional desta área conheça adequadamente a detecção e o tratamento para TEA. Outro estudo brasileiro corrobora esse dado: Paula et al. (2016) buscaram avaliar o nível de conhecimento a respeito do TEA em 85 estudantes do 9° e 10° período do curso de psicologia de universidades públicas e particulares de São Paulo. A amostra avaliada apresentou um nível de conhecimento dos sujeitos de regular a baixo, no que tange aos aspectos referentes ao quadro clínico, etiologia e dados epidemiológicos do autismo.
Especificamente em Belo Horizonte, a pesquisa de Alves et al. (2009) avaliou o uso da Caderneta de Saúde da Criança (CSC), que é o instrumento recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, pelos profissionais de saúde que assistem à criança, em especial o pediatra (presente em mais de 80% dos acompanhamentos). Idealmente, todas as crianças são vistas ao menos pelo pediatra. Na CSC consta um item específico para TEA, dada a importância de seu rastreio precoce. A Sociedade Brasileira de Pediatria e o Ministério da Saúde indicam, a partir da Lei 13.438/2017 - que obriga a aplicação de instrumento de avaliação formal do neurodesenvolvimento em todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida - o uso da Caderneta de Saúde da Criança (CSC) como instrumento de maior alcance para a vigilância do desenvolvimento na puericultura. Os resultados do trabalho (ALVES et al., 2009) apontam para menos de 18% das CSCs com preenchimento de pelo menos três anotações sobre desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM), o que dificulta o rastreamento precoce para TEA e outros transtornos de desenvolvimento.
No estudo de Martínez-Cayuelas (2017), foram ouvidos, por meio de questionário online, 157 pediatras hospitalares em 3 regiões diferentes da Espanha, e concluiu-se haver conhecimento suficiente sobre TEA, nesse nível terciário, sem, no entanto, que esse conhecimento tenha um impacto positivo no manejo desses pacientes e, ainda, com pouca coordenação entre os diferentes especialistas envolvidos em seu tratamento. Já o estudo de Pérez Martínez e Alfonso Montero (2013), com 20 médicos em Cuba, focou na atenção primária. Escolhidos aleatoriamente, os médicos foram convidados a responderem a um questionário anônimo, indicando deficiências e insuficiências de conhecimento e de habilidades profissionais sobre TEA, principalmente no que diz respeito às escalas de detecção precoce, diagnóstico precoce e avaliação psico-evolutiva. Estes autores concluíram que a maioria dos especialistas tinha dificuldades de prestar um atendimento integral, no que se refere ao TEA, permanecendo como um transtorno com diagnóstico tardio e mal abordado pelos profissionais, o que interferia no tratamento das crianças e em sua qualidade de vida.
É em virtude da importância do rastreamento e da intervenção precoces, e de estudos como os citados acima, que vemos o esforço da Sociedade Brasileira de Pediatria para o fortalecimento do uso da CSC, da capacitação do pediatra e de atenção a outros recursos para rastreio precoce para TEA. Por isso, a entidade elaborou dois documentos científicos recentes, a saber: Triagem precoce para TEA (ARAÚJO; LEYSER, 2017); e Manual de orientação para TEA (ARAÚJO et al., 2019). Há outros estudos brasileiros que confirmam esse quadro relativo à necessidade de formação continuada e capacitação no campo da pediatria.
A pesquisa de Rosa Maria Lopez (2016), desenvolvida no campo da Antropologia, no Brasil, indica como em nosso país há profissionais no campo da saúde que usam perspectivas de tratamento e de diagnóstico comprovadamente inadequadas, ou seja, completamente ultrapassadas. Do mesmo modo, os trabalhos do professor Roy Grinker (2010), antropólogo estadunidense, relatam claramente o declínio dessas perspectivas sem embasamento nos Estados Unidos da América, e em outros países, bem como o prejuízo causado a crianças de países que seguem mantendo-se desatualizados. Outros livros e artigos científicos confirmam essa situação (DONVAN; ZUCKER, 2017; SILBERMAN, 2015; GOLDSON, 2016)
Deste modo, e na esteira de estudos sobre graduações de saúde (FEUERWERKER; ALMEIDA, 2003; CECCIM; CARVALHO, 2006; BATISTA, 2013), o estudo aqui apresentado buscou verificar, por meio de análise de documentos, a formação de Medicina para TEA na atualidade brasileira.
Percurso metodológico
Como já colocado acima, buscou-se compreender o panorama de formação de médicos nas universidades de Minas Gerais, por meio de análise documental curricular, compreendendo o currículo como um documento de identidade, espaço de poder que representa as estruturas sociais, posturas na prática educativa e interesses políticos (SILVA, 2005). Para tal, foram coletados e analisados por meio de leitura atenta os Projetos Políticos Pedagógicos, Matrizes Curriculares e Ementários das universidades listadas. Assim, a análise de documento (CELLARD, 2008) orientou metodologicamente a coleta, pre-análise e análise, permitindo conhecer algumas intencionalidades formativas de algumas graduações médicas, apontando com este estudo possibilidades de diálogos com outras análises curriculares, notas técnicas e diretrizes que compõem panoramas da formação em saúde para o TEA.
A partir de pesquisa na internet, como, por exemplo, o site do Ministério da Educação e sites comerciais como Educabras, foram listadas 31 instituições de ensino superior que oferecem regularmente o curso de graduação em medicina3 no estado de Minas Gerais, com as quais entramos em contato para a coleta dos documentos. A listagem foi feita de março a junho de 2018 e, no semestre seguinte, foram buscados e analisados os documentos. Assim, foi possível reunir 29 Matrizes Curriculares (MCs), 13 Projetos Pedagógicos (PPs) e 11 Ementários, sendo que 2 destes Ementários não possuíam bibliografia. Duas instituições privadas, a Pontifícia Universidade Católica e a UNIFENAS, possuem duas unidades em cidades diferentes, cada uma com Matrizes Curriculares distintas, que foram analisadas separadamente.
Das 31 instituições, 10 são de natureza pública e 21 de natureza privada. A coleta foi realizada via e-mail, ligações telefônicas, sites institucionais e redes sociais, sendo necessário pontuar a dificuldade de acesso a esses documentos que foram muitas vezes negados por algumas instituições privadas, limitando a amostragem.
Quadro 1 – Listagem de cursos de graduação em medicina
INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO SUPERIOR |
NATUREZA |
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG |
Pública |
Universidade Federal de Viçosa – UFV |
Pública |
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF |
Pública |
Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ |
Pública |
Universidade Federal de Uberlândia – UFU |
Pública |
Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM |
Pública |
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM |
Pública |
Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP |
Pública |
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES |
Pública |
Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL |
Pública |
UniBH |
Privada |
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas - Poços de Caldas |
Privada |
Pontifícia Uniersidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas – Betim |
Privada |
Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG |
Privada |
Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos - IMEPAC Araguari |
Privada |
Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM |
Privada |
Faculdade de Minas – FAMINAS |
Privada |
Universidade de Uberaba – UNIUBE |
Privada |
Universidade José do Rorásio Vellano - UNIFENAS - Sede Belo Horizonte |
Privada |
Universidade José do Rorásio Vellano - UNIFENAS - Sede Alfenas |
Privada |
Universidade do Vale do Sapucaí – UNIVAS |
Privada |
Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC - Juiz de Fora |
Privada |
Universidade de Itaúna |
Privada |
Instituto Metropolitano de Ensino Superior – UNIVAÇO |
Privada |
Faculdade Governador Ozanam Coelho – FAGOC |
Privada |
Faculdade de Medicina de Barbacena – FAME |
Privada |
Faculdade de Medicina de Itajubá – FMIT |
Privada |
Faculdades Integradas Pitágoras – FIPMoc |
Privada |
Centro Universitário de Caratinga – UNEC |
Privada |
Faculdade da Saúde e Ecologia Humana – FASEH |
Privada |
Faculdade Atenas |
Privada |
UNIFACIG Centro Universitário |
Privada |
Instituto de Ciências da Saúde |
Privada |
Fonte: Elaboração dos autores (2019).
Quadro 2 – Número de documentos coletados em relação à natureza da instituição
|
NATUREZA DA INSTITUIÇÃO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR |
||
DOCUMENTO |
Pública |
Privada |
Total |
Matriz Curricular |
10 |
19 |
29 |
Projetos Pedagógicos |
8 |
5 |
13 |
Ementários |
7 |
4 |
11 |
Fonte: Elaboração dos autores (2019).
A análise dos documentos foi realizada em três momentos. Inicialmente, a fim de investigar as disciplinas que poderiam abordar conteúdos do campo do Transtorno do Espectro do Autismo, as 29 Matrizes Curriculares foram lidas e seus dados foram sistematizados por meio de uma tabela contendo: nome da instituição de ensino superior, natureza (pública ou privada), nome da disciplina com potencial para a abordagem da temática do TEA, o tipo da disciplina e internato, e o período. Foram selecionadas e categorizadas disciplinas e internatos que poderiam abordar conteúdos teórico-metodológicos no campo do TEA em dois grupos: psicopatologia/psiquiatria e saúde da criança/pediatria. As disciplinas alvo foram as que faziam menção pelo nome ou na ementa a temas como: criança, pediatria, desenvolvimento, psiquiatria, psicologia, psicopatologia, saúde mental e neurologia.
Em um segundo momento, foram analisados os Projetos Pedagógicos, que foram categorizados em dois grupos, a saber, os que continham ou não referência às palavras-chave “autismo”, “transtorno autista”, “transtorno do espectro autista”, “transtorno autístico” e “TEA”. Uma vez que esses documentos se fundamentam em normas técnicas, leis e diretrizes, e refletem concepções político-ideológicas, a menção ou não desses termos bem como das leis e normas que tratam no TEA, dizem sobre como essas instituições se articulam sobre o tema.
Por fim, foi realizada a análise das ementas e bibliografias das disciplinas categorizadas. Nas bibliografias procuramos por autores referência em Transtorno do Espectro do Autismo na Psicologia nas áreas de desenvolvimento humano, psicopatologia e análise comportamental, usando como referência outra pesquisa em Minas Gerais (SANDER et al., 2020). Procedeu-se, portanto, a partir das duas grandes áreas identificadas (psicopatologia/psiquiatria e saúde da criança/pediatria), na busca de conteúdos relacionados ao TEA. Para tanto, foram elencados autores-pistas referências, atuais ou históricas, no campo TEA. Tendo como diretriz esses indicadores (43 autores-pista), todo o material foi novamente analisado. Os indicadores foram extraídos da pesquisa de Sander e colaboradores (2020), tendo sido selecionados pela produção na área, com pelo menos 2 publicações sobre TEA, nacionais ou internacionais.
Apresentação e análise de dados
Tendo em vista nossa compreensão de currículo – como projeto construído socialmente, o que o torna documento de identidade, espaço de poder, que baliza posturas na prática educativa e interesses políticos –, compreendemos que a formação dos sujeitos deve acompanhar a realidade social (SILVA, 2005). Assim, a formação deve estar de acordo com os desafios presentes no campo da saúde, atualizada de acordo com as demandas sociais.
As diretrizes de formação do ensino superior em saúde apresentadas em documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), tratam sobre a exigência de um projeto que orienta a formação no sentido de considerar as dimensões da diversidade humana e as diferentes perspectivas necessárias para sua compreensão. No que diz respeito aos currículos de graduação em medicina, a Resolução CNE/CES nº 3 (BRASIL, 2014b) apresenta diretrizes que visam formar um profissional apto a oferecer cuidado adequado e eficiente às pessoas com deficiência, promovendo equidade na atenção às necessidades individuais e coletivas de saúde.
Além disso, a Nota Técnica Nº 24 do SECADI e DPEE (BRASIL, 2013) orienta a implementação da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei n° 12.764/2012, BRASIL, 2012; Decreto n. 8.368, Brasil, 2014) nos sistemas de ensino em geral. As diretrizes tratam do cumprimento do direito à educação especial para as pessoas no espectro, da educação infantil à superior, salientando o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que só pode ser oferecido mediante a apresentação de um laudo médico pela família, que também se faz necessário para se ter acesso a um profissional de apoio à inclusão (mediador). Ademais, em 2017 foi sancionada a Lei nº 13.438/2017 (BRASIL, 2017), que obriga a adoção de protocolos para avaliação de riscos ao desenvolvimento psíquico de crianças de até 18 meses de idade, no Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse sentido, é necessário compreender as possíveis lacunas em relação à abordagem do autismo nos currículos dos cursos de medicina.
Dentro dos 13 projetos pedagógicos, 6 apresentaram referência a pelo menos um dos termos “autismo”, “transtorno autista”, “transtorno do espectro autista”, “transtorno autístico” e “TEA”, sendo 4 provenientes de instituições públicas e 2 de instituições privadas. Destas menções, quatro (UFMG, UFSJ, UFTM e IMEPAC) eram a respeito da Lei Nº 12.764 de 27 de dezembro de 2012, pontuando que os requisitos legais dos PPs estavam organizados nos termos dessa legislação (BRASIL, 2012). Os outros PPs (UFVJM e UniBH) fazem referência aos núcleos das universidades, responsáveis pela orientação e inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais, e citam especificamente o Transtorno do Espectro do Autismo. Assim, embora a temática do TEA esteja presente na discussão político-ideológica desses projetos pedagógicos, ela está presente como referência à Lei de Proteção aos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo, e não como uma forma de direcionamento da formação profissional.
Dentro das 29 matrizes curriculares, não foram encontradas disciplinas que abordassem diretamente o tema do TEA. Entretanto, foram encontradas disciplinas que abordavam em seu nome diretamente os temas: psicologia do desenvolvimento humano e psicopatologia, nascimento, crescimento e desenvolvimento, problemas mentais e do comportamento, psicologia do desenvolvimento e síndromes neuropediátricas. Essas disciplinas têm a nomenclatura mais específica em relação aos temas que circundam o TEA. Entretanto, não foi possível analisar o conteúdo de todas elas, uma vez que em sua maioria foram encontradas em Matrizes Curriculares (MCs) de universidades das quais não conseguimos as ementas. Apesar de não tratarem explicitamente sobre o TEA, o fato de os estudantes terem disciplinas específicas sobre o desenvolvimento infantil, pode contribuir para a capacitação, no sentido de formar os profissionais preparados para atenderem casos de transtornos ou atrasos do desenvolvimento, sobretudo nos aspectos psíquico, físico-motor4 e afetivo-social. Essa formação pode contribuir para a identificação de atrasos no desenvolvimento e consequente encaminhamento para um especialista, a fim de pensar um diagnóstico e elaboração de um projeto terarêutico singular.
Quadro 3 – Disciplinas e temas constantes nos ementários
GRUPO |
DISCIPLINAS (¹) |
TEMAS PREDOMINANTES |
Psicopatologia/ Psiquiatria |
Interconsulta psiquiátrica – Pediatria |
Noções de emergência psiquiátrica. Situações mais frequentemente encontradas em crianças e adolescentes internados e suas famílias. |
Bases humanísticas e introdução à psicologia médica |
Compreensão biopsicossocial do ser humano. |
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Psicologia médica |
A relação entre médico e paciente. |
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Psiquiatria |
As grandes síndromes psiquiátricas. |
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Psicologia do desenvolvimento humano e psicopatologia |
O ciclo da vida familiar. As funções psíquicas elementares. |
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Psicologia do desenvolvimento |
Desenvolvimento psicossexual e cognitivo em Freud e Piaget. |
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Saúde da Criança/ Pediatria |
Estágio em clínica pediátrica |
Acompanhamento perinatal. Assistência ao recém nascido. |
Medicina da criança / Pediatria |
Acometimentos clínicos comuns como infecções, desnutrição, etc. |
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Saúde Materno Infantil |
Obstetrícia. |
(1) Os nomes aqui arrolados representam conjuntos de disciplinas similares em título e conteúdo.
Fonte: Elaboração dos autores (2022).
Dentre os 11 ementários coletados, foram selecionadas as disciplinas, internatos e estágios que, por se relacionarem com o campo da pediatria, saúde mental, psiquiatria, desenvolvimento infantil ou psicologia, poderiam abordar o estudo do TEA. Foram categorizadas disciplinas e internatos em dois grupos: psicopatologia/psiquiatria e saúde da criança/pediatria, tendo sido incluídas por tratarem em seu nome de temas como: criança, pediatria, desenvolvimento, psiquiatria, psicologia, psicopatologia, saúde mental e neurologia.
As disciplinas que se relacionam à psiquiatria, saúde mental e psicopatologia contemplam, por exemplo, a identificação e diagnóstico dos problemas de saúde mental de maior prevalência dentre os usuários de sistemas de saúde. As ementas apontam para a abordagem de múltiplos quadros como, por exemplo, quadros depressivos, ansiosos, bipolares e uso de substâncias, sem propor diretamente o estudo do TEA ou transtornos do neurodesenvolvimento. Mesmo nas disciplinas em que a ementa indica como objetivo o estudo dos quadros de saúde mental prevalentes na infância, não há a especificação para estudo do TEA e, além disso, tal objetivo corresponde a uma pequena fração da ementa em meio ao extenso conteúdo restante. Por exemplo, dentre o denso conteúdo proposto na disciplina de Psiquiatria da UFJF, que é obrigatória e tem a carga horária de 60h, há a abordagem do paciente com transtorno mental da infância ou da adolescência na Atenção Básica à Saúde (ABS) e a abordagem do paciente com déficit do desenvolvimento psicológico na ABS, tópicos que poderiam incluir a abordagem sobre TEA, mesmo que não seja mencionado diretamente nos documentos. Pela análise das ementas, não é possível afirmar que há formação nesse sentido e, mesmo que o estudo do desenvolvimento infantil seja proposto, o investimento dedicado ao desenvolvimento do tema seria limitado, considerando o extenso conteúdo relativo aos outros temas propostos.
No que diz respeito às disciplinas de saúde da criança e pediatria, verificamos que estas se relacionam predominantemente com as condições clínicas mais comuns que acometem pacientes nessa faixa etária.
Verificamos que as disciplinas que tratam da “Psicologia Médica” focalizam, por exemplo, na visão geral dos aspectos emocionais, afetivos e cognitivos do desenvolvimento humano, peculiaridades do tratamento com pacientes hospitalizados e ensino de uma conduta sensível para o exercício médico. Também são abordados temas como luto, transtornos psicossomáticos e a simbologia da doença. Há também menção à psicologia do desenvolvimento infantil e do adolescente, que aparecem em ementas extensas, implicando em divisão do tempo com outros objetivos.
É importante ressaltar a heterogeneidade dos currículos de medicina e como muitas MCs apresentam disciplinas ao longo do curso com o mesmo nome sendo diferenciadas somente pelo período em que ocorrem, especialmente nas universidades das quais somente conseguimos as matrizes curriculares, sem ter acesso às ementas. Assim, devido à incompletude dos documentos, não foi possível analisar a ementa de cada uma dessas disciplinas.
A análise dos 11 ementários coletados não apontou conteúdo específico no que diz respeito ao TEA, sendo que somente parte das disciplinas de pediatria tratavam sobre a capacidade de o médico avaliar atrasos no desenvolvimento, como, por exemplo, na ementa de uma disciplina de saúde da criança e do adolescente que menciona a formação do profissional sobre distúrbios neurológicos e psicoemocionais e doenças prevalentes. Além disso, algumas ementas tanto do grupo de pediatria, quanto do grupo de psicopatologia tratavam sobre alguns transtornos específicos a serem estudados (depressão, transtorno afetivo bipolar, etc.), ou se referiam a nomenclaturas abrangentes como “síndromes genéticas” ou “síndromes mais frequentes em crianças na atenção primária à saúde”, mas não faziam menção ao TEA. Em alguns ementários havia ainda abertura para flexibilidade no conteúdo, apontando, como bibliografia possível, textos avulsos indicados pelos professores.
Ao analisar as bibliografias, não foram encontradas menções aos autores referência inicialmente elencados, tendo sido encontradas referências ao DSM-5 e ao CID-10 nas disciplinas do grupo de psicopatologia/psiquiatria, o que não diz sobre a formação em TEA, uma vez que as ementas, apesar de contarem com esses manuais na bibliografia, não tratam sobre o TEA em seus objetivos. É importante ressaltar que dos 11 ementários, o que é uma amostragem reduzida, 9 contavam com bibliografia, limitando a busca pelos autores pista. A CIF (Classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde) não foi citada.
Em relação à área de psicopatologia/psiquiatria, por meio da análise das ementas é possível detectar que no conjunto das disciplinas de psicopatologia, 6 fazem menção à formação em psicopatologia da infância, sendo que não fazem menção ao TEA. Em relação à área de pediatria, apesar da maior parte dos ementários apontar para uma formação que incluía a competência em identificar desvios de desenvolvimento, houve aqueles que nem sequer abordaram o tema. Ademais, mesmo os ementários que objetivavam desenvolver conhecimentos a respeito do desenvolvimento neuropsicomotor da criança, esse tema se encontra em meio a outros conteúdos de saúde básica que concernem à saúde da criança, sendo as ementas extremamente densas. Nota-se que mesmo quando o tema é abordado, a relação carga horária e conteúdo das disciplinas parece incompatível para uma formação médica generalista, limitando aprofundamentos, principalmente em temas como TEA, em que existem conhecimentos básicos sobre o desenvolvimento infantil que devem ser abordados anteriormente ao autismo.
Apesar de não constar explicitamente nos documentos, é possível que o TEA seja abordado em algum momento na formação desses profissionais. Entretanto, a falta de especificação da abordagem ao tema nos currículos aponta que não há uma formação claramente assumida sobre o tema, e indica pouca preocupação institucional em tratar o TEA, apesar da sua importância enquanto questão de saúde pública, com grande demanda e impacto social crescente.
Considerações finais
O TEA é uma condição que abarca, ao mesmo tempo, a dimensão da diferença, sendo um quadro neurodivergente; e a deficiência, o que traz desafios importantes aos autistas e suas famílias. Neste sentido, há uma dimensão de aprendizagem humanitária e ética para nossa sociedade, na medida em que avançamos em nossa compreensão anticapacitista do TEA, que caminha simultaneamente rumo à redução de barreiras, sendo o desconhecimento um elemento importante dos desafios cotidianos que enfrentam autistas e suas famílias. Este desconhecimento está presente no dia a dia dessas pessoas e suas famílias, até mesmo no âmbito da saúde integral, desde o acesso ao diagnóstico até o acompanhamento médico ao longo da vida. O acesso ao diagnóstico precoce e, necessariamente, a intervenção precoce, especializada e intensiva, têm impactos positivos no prognóstico das pessoas com TEA e, nesta medida, na qualidade de vida de suas famílias. A ausência do conhecimento sobre TEA por parte dos médicos têm efeitos profundos na vida de autistas e suas famílias (SHAH, 2001), impactando até mesmo financeiramente essas famílias, mas também Estado e instituições (BUESCHER et al., 2014).
É importante refletirmos sobre quais são os conteúdos priorizados na formação médica, e em que perspectiva. Pela análise da amostragem de documentos coletados, o TEA não faz parte do projeto educativo da formação médica das instituições em questão. Contrariando Diretrizes nacionais curriculares, bem como orientações, tais como a Nota Técnica Nº 24 do SECADI e DPEE (BRASIL, 2013), e com impacto negativo para a atuação do médico frente a obrigações estabelecidas por lei (13.438/2017), a ausência da temática do TEA nos currículos de medicina precisa ser revista.
A falta de conhecimento mais aprofundado por parte dos médicos da atenção primária, principalmente aqueles vinculados ao Sistema Único de Saúde, é um fator que compromete o direito ao acesso à intervenção adequada, um direito garantido pela Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência. A ausência da temática do TEA na formação médica generalista encontra-se na base do diagnóstico tardio no Brasil.
São necessários ajustes curriculares, no campo da saúde da criança/pediatria, que integrem conhecimento sobre sinais de atrasos no desenvolvimento, sinais de alerta para TEA e o conhecimento aprofundado quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor. No que se refere ao campo psicopatologia/psiquiatria, é necessário o estabelecimento da compreensão na classificação nosológica sobre TEA, conforme DSM-5, reconhecendo sobretudo que o TEA não está no campo das psicoses. Nos dois campos, é preciso que os cursos de graduação em medicina apresentem os caminhos de intervenção, baseados em evidência científica, de forma que possam orientar as famílias sobre o que é seguro, eficaz e adequado no campo das terapêuticas para o TEA. Neste sentido, é preciso que os médicos conheçam os desafios enfrentados pelos autistas, dadas as características do TEA, considerando as limitações sociocomunicativas, bem como a importância de acomodações sensoriais, promovendo assim um atendimento adequado nas consultas médicas frequentadas pelos autistas ao longo da vida. Neste sentido, é necessário que na formação médica haja acesso também tanto a estratégias facilitadoras para comunicação e manejo comportamental, já bem estabelecidas na literatura, quanto para a preparação de um ambiente sensorialmente gentil nos consultórios e procedimentos de saúde.
Uma limitação central da pesquisa foi o comprometimento da acessibilidade a documentos de caráter público, como os projetos político pedagógicos, bem como o fato de muitos deles estarem incompletos, dificultando assim uma análise ainda mais precisa e representativa sobre o panorama real da formação sobre o autismo.
Sugerem-se novos estudos focados em outros cenários de aprendizagem universitária, como projetos de pesquisa e extensão, eventos, grupos de estudo e pós-graduações, bem como análise dos conteúdos priorizados em congressos nacionais e regionais de Pediatria e de Psiquiatria. Reafirma-se que em vista da dimensão social que concerne ao autismo, é indispensável que os médicos tenham, em sua formação generalista, conteúdo obrigatório a respeito do TEA.
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Notas
1 Finaciamento: Edital Probic/FAPEMIG - 05/2017.
2 No original: “[…] most physicians and psychologists are not integrated into a research community and are likely to rely on past training and personal clincal experience” (GRINKER; DALEY e MANDELL, 2013, p. 832.
3 No estado de Minas Gerais, 33 cursos de medicina credenciados na Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM, site 28 de dezembro de 2020, Disponível em: https://website.abem-educmed.org.br/associados/escolas-medicas-associadas/).
4 O desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM) envolve os aspectos físico, cognitivo, da linguagem, social, emocional e do temperamento.
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