http://dx.doi.org/10.5902/1984686X65328

Maio de 68 e o modelo social da deficiência: notas sobre protagonismo e ativismo social

May 68 and the social model of disability: notes on protagonism and social activism

Mayo del 68 y el modelo social de la discapacidad: apuntes sobre el protagonismo y el activismo social

Gustavo Martins Piccolo

Professor doutor da Universidade de Araraquara, Araraquara, SP, Brasil

E-mail: gupiccolo@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6078-9176

Eniceía Gonçalves Mendes

Professora doutora da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil

E-mail: egmendes@ufscar.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3673-0681

Recebido em 18 de abril de 2021

Aprovado em 20 de outubro de 2022

Publicado em 22 de novembro de 2022

RESUMO

O presente estudo teórico demarca a influência que as manifestações de Maio de 1968 exerceram na formação de movimentos sociais, dentre eles, de pessoas com deficiência, ao demarcar a expansão do campo do possível e a crítica radical a processos de institucionalização. Na senda destes lineamentos, analisa a origem e desenvolvimento do modelo social da deficiência, entendendo este como produto da exclusão social, o que engendra implicações políticas desconcertantes no que se refere a formatação de políticas públicas para a deficiência. Por fim, demarca o aparecimento do associativismo de pessoas com deficiência no Brasil como importante impulsionador de transformações nos marcos legais na sociedade mediante processo de luta política. Luta que passa pela modificação das infraestruturas existentes, mas também pela reinvenção da gramática dos costumes erigidos pela modernidade que enquadrou a diferença da deficiência como anormalidade, desvio e incapacidade. Revolucionar estas duas dimensões se compõem como principal esteio dos movimentos das pessoas com deficiência, tendo por objetivo uma crítica radical a qualquer forma de pensar segregacionista e aristocrático, de qualquer falar pelo ou no lugar do outro. É uma nova antropologia consolidada nos conceitos de reconhecimento, redistribuição e representatividade. Nada sobre nós sem nós.

Palavras-chave: Revolução Social; Pessoa com Deficiência; Política Social.

ABSTRACT

The present theoretical study outlines the influence that the demonstrations of May 1968 had on the formation of social movements, among them, people with disabilities, by demarcating the expansion of the field of the possible and the radical criticism of institutionalization processes. Along these lines, it analyzes the origin and development of the social model of disability, understanding it as a product of social exclusion, which engenders disconcerting political implications with regard to the formatting of public policies for disability. Finally, it marks the emergence of associations of people with disabilities in Brazil as an important driver of changes in legal frameworks in society through the process of political struggle. A struggle that involves the modification of existing infrastructures, but also the reinvention of the grammar of customs erected by modernity that framed the difference in disability as abnormality, deviation and impairment. Revolutionizing these two dimensions are the mainstay of the movements of people with disabilities, aiming at a radical criticism of any form of segregationist and aristocratic thinking, of any speaking for or in the place of the other. It is a new anthropology consolidated in the concepts of recognition, redistribution and representativeness. Nothing about us without us.

Keywords: Social Revolution; Disability People; Social Policy.

RESUMEN

El presente estudio teórico destaca la influencia que tuvieron las manifestaciones de Mayo de 1968 en la formación de los movimientos sociales, entre ellos, de las personas con discapacidad, al demarcar la expansión del campo de lo posible y la crítica radical a los procesos de institucionalización. En esta línea, analiza el origen y desarrollo del modelo social de discapacidad, entendiéndolo como producto de la exclusión social, que engendra implicaciones políticas desconcertantes en cuanto al formato de las políticas públicas acerca de la discapacidad. Finalmente, marca el surgimiento de asociaciones de personas con discapacidad en Brasil como un importante motor de cambios en los marcos legales de la sociedad a través del proceso de lucha política. Una lucha que implica la modificación de las infraestructuras existentes, pero también la reinvención de la gramática de las costumbres erigidas por la modernidad que enmarca la diferencia en la discapacidad como anormalidad, desviación e incapacidad. Revolucionar estas dos dimensiones es el pilar fundamental de los movimientos de personas con discapacidad, que apuntan a una crítica radical de cualquier forma de pensamiento segregacionista y aristocrático, de cualquiera uno que hable por o en lugar del otro. Es una nueva antropología consolidada en los conceptos de reconocimiento, redistribución y representatividad. Nada sobre nosotros sin nosotros.

Palabras clave: Revolución social; Persona con discapacidad; Politica social.

Introdução

Para Barton e Oliver (1997), até o início da década de 70 do findado século não havia qualquer estrutura concreta que pudesse se materializar em um corpo de estudos sistemático sobre a deficiência. A academia considerava o tema como biológico em sua essência, sendo tratado, quando muito, de maneira marginal pela sociologia e não coadunado à intersecções em relações a outros grupos minoritários, elementos estes que dificultavam a constituição de um movimento efetivamente político com vistas a transformação social.

Porém, tal disposição se quedou alterada pela insurgência das próprias pessoas com deficiência, as quais se associaram com vistas à criticar os princípios da institucionalização, assim como a discriminação e opressão pela qual eram submetidas mediante um ordenamento social que tratava a diferença da deficiência como desvio. Citada contestação ganhara corpo ao final dos anos de 1960 e alcançou novos patamares quando do estopim fomentado por uma época fervilhante em termos de contestação social, o Maio de 1968, temporalidade ainda pouco explorada nos estudos sobre deficiência e que procuraremos retomar aqui.

O Maio de 1968, ou melhor, os Maios de 68, pois foram vários na extensão da Europa (Paris, Praga, Bruxelas, Roterdã, Viena, Berlim, Madri, Roma) quebraram o curso natural dos acontecimentos, configurando-se como um daqueles meses que fizeram história. Sua duração ultrapassa a temporalidade que o cerca, uma vez que os acontecimentos ali abrolhados exerceriam profunda influência na composição social vindoura. Claro que os anos têm 12 meses, os meses 30 ou 31 dias e os dias 24 horas, mas há meses que valem como décadas e dias que pesam por anos devido à intensidade dos acontecimentos e suas consequências. Este é o Maio de 1968, período no qual a história se acelera e tudo que parecia anteriormente duvidoso, torna-se, de súbito, plausível. Tempos em que, para nos valermos de uma máxima marxiana, o que era sólido se desmancha no ar.

Contestação, resistência, revolução e rebeldia se tornaram palavras de ordem “no ano que jamais acabou”, para nos valer de um termo de Zuenir Ventura (VENTURA, 2013). O denominador comum residiu no brado contra as instituições e as estruturas que circunscreviam as mais distintas subjetividades. “É proibido proibir” se corporifica como a máxima de toda uma época.

A complexidade envolta sobre este período gera fascínio em seu descrever mesmo passados mais de 50 anos de sua erupção. A insurreição movida pelos jovens sem qualquer projeto político central e mobilizador ainda é vista como enigmática por uma gama de intelectuais acostumados a revoluções tencionadas sob diretrizes anteriormente estabelecidas.

Todavia, a inexistência de um programa político prévio não deve ser vista como uma falha, tal qual induzem algumas ortodoxias, mas, sim, como uma bandeira que se contrapunha diametralmente a uma definição imediata dos objetivos e caminhos a serem traçados, os quais poderiam ser paralisantes e afugentar significativa parcela dos que ali se propuseram a estar. Nas palavras de Cohn e Pimenta (2008, p.20-21),

A única chance do movimento é exatamente essa desordem que permite às pessoas falar livremente e que pode desembocar, por fim, em certa forma de auto-organização. Ante a repentina liberdade de palavra em Paris, torna-se necessário em primeiro lugar que as pessoas se expressem. Dizem coisas confusas, vagas, com frequência sem interesse, porque já foram repetidas cem vezes, mas isso lhes permite, depois de ter dito tudo isso, colocar-se a seguinte pergunta “E agora?” Somente depois é que se poderá falar de programa ou de estruturação.

Esse é o brilho que irradia o Maio parisiense de 1968, o qual, no entender de Sartre (1978), renega tudo o que fez da sociedade o que ela é, denotando a expansão do campo do possível e uma crítica radical a toda e qualquer institucionalização, seguramente as maiores conquistas deste período. Abrem-se originais janelas e, por conseguinte, outros devires. Surgem novos atores da história, implodindo a ideia de que a mesma é escrita somente pelos vencedores ou pelos reis e rainhas, assim, se manifestam inéditas contestações às discriminações institucionais e pessoais que se enraízam nos ínfimos recônditos da sociedade capitalista, cujo aparecer representa, de acordo com Sartre (1978, p.87), o “grande legado deixado por aqueles dias fervilhantes. A marca de sua vitória no tempo”. Ora, mas o movimento não foi suprimido e derrotado? Sim e não.

O Maio de 68 materializou uma revolução política derrotada, na medida em que De Gaulle e o regime da V República continuaram em pé, ainda assim, jamais deixará de ser visto como uma revolução, pois, no entender de Arcary (2008, p.204), mesmo derrotado

(...) abriu caminho para reformas, entre elas, mudanças socioculturais progressivas que eram inadiáveis. Os direitos da mulher passaram a ser parte da agenda política: o direito ao divórcio, a legalização do aborto, a criminalização da violência doméstica, entre outros, encontraram reconhecimento legal, mais rápido ou mais lentamente, em inúmeros países. Os direitos da juventude foram também ampliados. Tais reformas não foram obra da contrarrevolução: foram, essencialmente, um subproduto da revolução.

Um destes subprodutos da revolução, de acordo com Garland-Thomsom (2013), consistiu justamente na crítica radical a toda e qualquer forma de institucionalização, bandeira que se tornaria central e sobre a qual os primeiros movimentos de pessoas com deficiência se formariam em todo o globo, dada a proeminência que esta prática assumia na vida deste coletivo em virtude dos efeitos deletérios desempenhados por tal política em termos de representatividade e independência.

Não por acaso, a convocação efetuada por Hunt em 1972 efetuada no jornal londrino The Guardian e dirigida a formação de movimentos ativistas de pessoas com deficiência convoca justamente sujeitos institucionalizados descontentes com a situação que experienciavam. O estopim destes atos esteve justamente vinculado às proibições de práticas que despersonalizavam pessoas e retirava-lhes sua autonomia decisória. A política da institucionalização era aquilo que de mais representativo se assemelhava a este suposto, daí a necessidade de derrubá-la para conferir liberdade aos pensamentos e práticas. E foi sobre esta bandeira que os grandes coletivos ativistas de pessoas com deficiência se formaram inicialmente.

Isto posto, tão logo da dissipação simbólica e cultural deste período absolutamente notável presenciamos a saliência de uma maior politização dos movimentos de pessoas com deficiência em quase todo o mundo, tomando por temas a institucionalização das pessoas com deficiência, mas também a pobreza, a incapacidade de a biologia explicar o fenômeno como um todo, a crítica à falta de acessibilidade e representatividade nas políticas públicas, elementos derivados de um longo e tortuoso processo de exclusão social arquitetado pelo modo de produção capitalista1.

Se o dever que devemos à história é reescrevê-la, as pessoas com deficiência assim o fizeram e reorganizaram a forma como eram interpretadas pelas múltiplas literaturas, para tanto, como primeira tarefa da agenda, reivindicaram o direito de serem atores de sua própria história de uma forma que transcendesse as tão habituais escritas autobiográficas sobre a hercúlea tarefa de superação da deficiência, uma vez que tais grafias reiteravam  a teoria da deficiência como tragédia pessoal. Ora, se a deficiência é vista como uma forma de tragédia pessoal, tal significação tem implicações concretas nos serviços destinados a estes sujeitos e na própria forma como pessoas consideradas sem deficiência se relacionam com elas. Como tragédia, tal qual uma enchente, um terremoto, um tornado, se justificam medidas de corte caritativo e assistencial, tornando a temática mais uma questão de boa vontade que um problema político, rememorando marcas de um pensamento assistencialista que nos acompanha até os dias atuais.

Em segundo lugar, se a deficiência é tida como uma tragédia e mesmo com todas as tentativas de evitá-la ela se faz presente, surge a ideia de que se torna imprescindível a criação de mecanismos e ferramentas para que a mesma seja tratada e curada, objetivando sanar o problema. O papel de protagonista do saber médico e de seu corpo de profissionais salta aos olhos. Se a cura não é possível deve-se remediar tal condição mediante estratégias de reabilitação para que tais pessoas funcionem de forma mais similar possível àquelas definidas como normais. Em síntese, no quadro da deficiência como tragédia pessoal, a mesma é, na melhor das hipóteses, tolerada.

Evidente que não pretendemos sugerir que a prevenção, a reabilitação e o acompanhamento médico são em si elementos maléficos, muito pelo contrário, pois se mostram fundamentais no desenvolvimento de diversas potencialidades destas pessoas, além de mitigar aspectos deletérios como a dor e dificuldades múltiplas, contudo, tal entendimento acerca da deficiência representa uma imagem incompleta, parte e não o todo deste complexo fenômeno. Significativa parcela das experiências negativas experimentadas pelas pessoas com deficiência não são derivadas de sua condição biológica, mas da insensibilidade da própria estrutura social em incluir aquilo que não é tido como uniforme. Em virtude destes elementos, era preciso criar uma literatura sobre outras bases e que viesse a fortalecer os movimentos sociais na luta por direitos civis.

E é justamente sobre este caldo cultural que irão se desenvolver os estudos sociais da deficiência, cujo primeiro ato ocorreu quando da criação em terras londrinas da UPIAS (Union of the Physically Impaired Against Segregation).

O modelo social da deficiência

Em 1966, Paul Hunt publica o compêndio “Estigma: A Experiência da Deficiência”, tornada obra seminal no que diz respeito à crítica ao fenômeno da institucionalização das pessoas com deficiência. Citada crítica demarcava de maneira concomitante a necessidade de compreender a experiência da deficiência a partir das vozes dos deficientes. O conteúdo da publicação desafiou a sabedoria convencional ao se portar contra a concepção de que a vida das pessoas com e sem deficiência representam duas vidas opostas, uma independente outra dependente, uma pública outra privada, uma normal outra anormal, enfatizando desta forma o caráter dialético e relacional desses elementos, os quais devem ser vistos como produtos históricos e não frutos de binarismos extemporâneos.

Na senda das proposições de Hunt (1966), que inicialmente representava um brado contra o processo de institucionalização, percebemos o alvorecer de uma série de associações, agremiações e movimentos sociais de pessoas com deficiência no Reino Unido, os quais foram também estimulados pela representatividade alcançada por outros grupos minoritários alavancados pelo fervilhar ainda presente do Maio parisiense.

Urgia analisar a deficiência a partir da experiência de seus sujeitos e em relação diametralmente oposta às categorias anteriores que despersonalizavam seus atributos e os adjudicavam sob o signo da dependência e passividade. Premente se fazia ruir os bastiões de um modelo que não cabia como explicativo da situação delineada, por isso, tal processo não configurava uma reforma. Era preciso inventar um novo conceito de deficiência.  

Baseado nesta propositura, um grupo de sociólogos que eram pessoas com deficiência (Vic Finkelstein, Paul Abberley, Mike Oliver e Colin Barnes) se reúnem em torno da figura de Paul Hunt e fundam a UPIAS no ano de 1975, associação de deficientes físicos que inicialmente funcionou por meio de circulares comunicativas. Nessas circulares criticava-se frontalmente a ideia de que outras pessoas poderiam falar e escrever sobre a experiência da deficiência sem ouvir aqueles que de fato experimentavam citada condição. Destas circulares se produz o texto nominado “Princípios Fundamentais da Deficiência”, marco em todo ocidente no que diz respeito ao engenho de um conceito de deficiência pincelados sobre outros vernizes. A UPIAS (1976, p.4-5) rejeita incisivamente a ideia de que especialistas e profissionais especializados no campo da medicina possam falar sobre como as pessoas com deficiência devem se comportar a partir de opiniões emitidas que desconsideram a agência da pessoa com deficiência.

Nós, como União, não estamos interessados ​​em descrições de quão terrível é ser desabilitado. O que nos interessa são as formas de mudar nossas condições de vida e, assim, superar as deficiências que são impostas sobre nossos impedimentos físicos pela forma como a sociedade está organizada para nos excluir2.

No entendimento de Hunt (1996), um dos fundadores da UPIAS, as pessoas com deficiência devem aceitar somente os prejuízos reais derivados de limitações funcionais que efetivamente exercem impacto inegável em suas vidas, sendo que os problemas adicionais relacionados a forma discriminatória pela qual as pessoas com deficiência são consideradas em sociedade precisam ser superados.

Surgida historicamente em uma época de intensa luta e debate contra a institucionalização, a UPIAS tem como uma de suas principais bandeiras a afirmação do caráter inumano e antissocial de tais temporalidades espaciais, por conseguinte, recobra sentido o suposto de que a luta para a substituição de tais instalações represente inequivocamente um pequeno passo da própria luta geral pela emancipação que a referida organização social busca empreender.

Quase uma década após a publicação de “Estigma: a experiência da deficiência”, a UPIAS, mediante seus “Fundamentos Principais da Deficiência”, apresenta a distinção tornada pedra angular dos Disability Studies, qual seja: a diferenciação entre incapacidade-lesão e deficiência. A primeira é vista como a falta de parte ou da totalidade de um membro, órgão ou sentido não funcional, portanto, refere-se às condições biofísicas do indivíduo, em clara alusão ao referencial médico; enquanto a deficiência trata-se de restrições derivadas de um conjunto de opressões sociais em relação à corpos tidos como extranormativos. Singular, nesse sentido, se mostra a definição tornada clássica pela UPIAS (1976-p.3-4), qual seja,

“A nosso ver, é a sociedade que desabilita deficientes físicos3. A deficiência é algo imposto sobre nossos impedimentos pela forma como somos desnecessariamente isolados e excluídos da plena participação em sociedade. Pessoas com deficiência são, portanto, um grupo oprimido na sociedade. Para entender isso, é necessário compreender a distinção entre o impedimento físico e a situação social, chamada de ‘deficiência’. Assim, definimos impedimento como falta de parte ou de todo um membro, ou a existência de um membro defeituoso, órgão ou mecanismo do corpo; e deficiência como desvantagem ou restrição de atividade causada por uma organização social contemporânea que leva pouco ou nada em conta as necessidades das pessoas com deficiências físicas e, portanto, as exclui da participação no mainstream das atividades sociais. A deficiência física é, portanto, uma forma particular de opressão social”. (UPIAS, 1976:3-4)4.

Os objetivos quando da criação da UPIAS transcendem em muito os de uma ‘simples’ organização-movimento social. A questão prática e imediata está colocada como em quaisquer outros movimentos, contudo existe uma dimensão de corte epistemológico flagrante, embora nem sempre perceptível, na medida em que se procura a redefinição ontológica da deficiência e seu estabelecimento sobre uma base analítica sociológica. Busca-se reivindicar direitos, mas também um novo entendimento do fenômeno presente.

Partindo desse esteio teórico, Diniz (2007, p.18-19) ressalta que nos Fundamentos Principais da Deficiência, além do manifesto anseio em se lutar contra a institucionalização das pessoas com deficiência e as múltiplas formas de exclusão advindas de seu não reconhecimento social, existe uma clara intenção em se 

(...) diferenciar natureza de sociedade pelo argumento de que a opressão não era resultado da lesão, mas de ordenamentos sociais excludentes. Buscava-se desessencializar a lesão, denunciando as construções sociológicas que a descreviam como desvantagem natural e assumir a deficiência como uma questão sociológica, retirando-a assim, do controle discursivo dos saberes biomédicos.

Esse historicizar da deficiência produz uma inversão radical nas medidas e mecanismos idealizados para amenizar ou eliminar as consequências por ela produzidas. Se anteriormente cabia apenas as ciências da saúde a incumbência de tal tarefa, desde então a sociedade é vista como carente em transformações para incorporar em seu seio as mais variadas diferenças.

Desloca-se o foco do corpo para a sociedade, do individual para o coletivo, uma vez que a deficiência é interpretada relacionalmente mediante uma interação não harmoniosa entre o ter uma lesão e viver em uma sociedade não pensada para acolher a mesma. Na conjuntura deste interstício, apesar de não se negar a importância da prática médica no que tange ao incremento das potencialidades emancipatórias das pessoas com deficiência, o fio de Ariadne deixa de ser visto como tracejado pelas lentes da medicina, passando a se materializar nas transformações radicais da cultura, economia, política, do ambiente, enfim, da própria sociedade que nos cerca, cujo devir está em ampliar as potencialidades de todos os seres humanos, independentemente de quão distintos sejam. Esta é uma tarefa certamente por realizar.

Tracejar tais ideias em uma época de aceitação quase ipsis litteris do discurso médico no que tangia a explicação deficiência delineia uma posição ousada e inovadora que aponta inúmeras contradições naquilo anteriormente tido como natural ou até benevolente. O novo suposto assevera que a segregação e exclusão enfrentada pela pessoa com deficiência é um produto social derivado de um ardil que envolve múltiplas relações que desativa e desabilita as pessoas com deficiência, e que essas relações não são naturais, mas fabricadas por um modo de produção que entende a deficiência em anteposição ao mantra moderno da eficiência e capacidade.

Influenciado e desestabilizado pelas ideias acima, Oliver (1990) publica a obra mais impactante no que se refere a uma mudança de rota na explicação da deficiência, intitulada “The Politics of Disablement”. Resgatando o clássico de Hunt e as ideias da UPIAS, Oliver afirma que qualquer que seja a natureza ou causa da deficiência, os problemas principais enfrentados residem da desativação do ambiente e das múltiplas barreiras interpostas sobre as pessoas com deficiência, barreiras essas que podem ser atitudinais (discriminação, afastamento, caridade); econômicas (pobreza, discriminação no mercado de trabalho), físicas (falta de transportes, prédios, cinemas, escolas e praças esportivas acessíveis) ou políticas (falta de legislação que garanta direitos, direito de votar e ser votado e ausência de representatividade).

Neste complexo, a opressão por sobre as pessoas com deficiência adquire um caráter objetivo que se estabelece para além das relações dialógicas denegatórias enfrentadas cotidianamente ao se estender a dimensões não restritas ao terreno da linguagem, do misticismo ou biologia. No terreno do capitalismo, obcecado pela exploração da força de trabalho, aqueles que são vistos como potencialmente menos exploráveis pelos detentores dos meios de produção, em razão de seu suposto desajuste à normalidade instituída pela parafernália industrial, ou são alijados ou incorporados nas funções de menor visibilidade de tal estrutura, ou institucionalizados. O asilar das diferenças é uma das principais características da modernidade, por isso não espanta a criação de hospícios, prisões, hospitais e abrigos diversos em uma época que buscou situar longinquamente àqueles que não se amoldavam as vestes da época.

A epopeia das luzes caminhou paralelamente a escuridão e penumbra do apagar das diferenças. Escondida, maltratada, mas jamais ignorada, o capitalismo forjou uma sociedade sedenta pelo conceito de norma, de ordem, de progresso; neste espaço, o que era definido como diferença e desvio não cabia no ordenamento coletivo e deveria ser apartado. Não é de se estranhar que a luta contra a institucionalização fosse, portanto, a primeira grande batalha dos movimentos sociais das pessoas com deficiência e primeira bandeira da UPIAS. Uma luta que ganhou publicidade após os manifestos do Maio de 1968 e o decantado brado de que é proibido proibir.

Com isso, não estamos a hipotetizar que em outras épocas históricas a vida das pessoas que apresentavam impedimentos se constituia em calmaria; até porquê termos como monstros, bufões, leprosos, lazarentos, entre outros, corporificam um vocábulo de significados utilizados no medievo e que denotam uma gramática de tratamento nada ameno a condição anunciada.

Contudo, e é isto que asseveramos aqui, a modernidade insurgiu justamente a partir da ruptura com os laços do medievo, materializada espiritualmente na Célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, manifesto político inaugural da Era Moderna e que asseverava que “todos nascem e são livres e iguais em direitos” e, “que todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”. Desde então, não se justifica a existência de mecanismos que obstaculizem a plena integração social de qualquer pessoa. Se a discriminação era parte integrante das relações do medievo “naturalmente” hierárquicas e verticalizadas, na modernidade uma nova estrutura de relações se consolida e somente a partir de então podemos plasmar para além do espírito a materialização do conceito democrático e plural de igualdade.

A definição da igualdade como fim axiológico destaca como obrigatório pensarmos na transformação social, cultural, política e econômica de forma a comportar as mudanças necessárias para que as múltiplas diferenças não sejam mais referenciadas a partir da perspectiva do eu e outro em relação diametral à ideia do bem e mal; do eficiente e deficiente; do capaz e incapaz; do normal e anormal. Trata-se de implodir o binarismo característico de um pensamento que, embora ainda vigente, não se coadune com a racionalidade moderna e seu postulado de igual dignidade. A modernidade ainda se trata de projeto inconcluso atravancado por interesses estranhos derivados da manutenção de uma relação assimétrica de status que não se justifica sob o prisma da igualdade, inédita bandeira dos revolucionários franceses de 1789.

Enquanto da existência de padrões normativos que subestimem, violem e neguem individualidades tidas como dissonantes é necessário opor resistência, lutar, contestar, revolucionar. Em outros termos, enquanto o diferente for definido como estranho,  como um não eu, ou então como anormal, é fundamental criar uma contra ideologia de protesto, de reivindicação e de emancipação que se consolide no contraponto da dinâmica assimétrica destas relações.

Sob este complexo desafio que as ideias do modelo social da deficiência ganharam corpo e forma, alcançando grande representatividade social e, por conseguinte, principiaram a exercer significativa pressão popular sobre a forma como as instituições e os governos interpretavam os textos legais e as políticas públicas direcionadas as pessoas com deficiência como um todo. Não é de se estranhar que após a popularização deste cabedal teórico visualizemos importantes marcos conceituais como a definição cunhada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1981 do Ano Internacional da Pessoa com Deficiência; da radical alteração feita pela OMS (Organização Mundial da Saúde) da CIDIDH (Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens) em CIF (Classificação Interfuncional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde) no ano de 2001, convergindo para um novo entendimento de deficiência (ainda que não fosse o almejado pelo modelo social), e, no Brasil, da publicação em 2015 da Lei Brasileira da Inclusão (BRASIL, 2015). 

Isso significa que a posição defendida pelos Disability Studies seja a hegemônica na academia no que diz respeito aos estudos sobre deficiência? Não. A perspectiva médica ainda é a mais utilizada, contudo, já contradita pelos nexos e relações destacadas pelo modelo social, cuja existência nominal e efetiva é notória.

A consolidação dos Disability Studies - Estudos da/sobre deficiência ou modelo social da deficiência ocorreu de maneira incrivelmente rápida, prova disso é que em pouco mais de quatro décadas já podemos notar no seio da sociedade britânica a publicação de livros, biografias, a criação de cursos, filmes, programas de pós-graduação e publicação de manifestos ancorados em seus pressupostos. Convém ainda destacar que para Oliver (1990), o modelo social foi o dispositivo que mais ofereceu contributo ao formar de um novo pensar sobre a deficiência. Sua influência e radicalidade são tamanhas que sequer podemos falar em uma prática de ressignificação, é construção de algo novo.

O modelo social se tornou popular, como o próprio Shakespeare (1996) argumentou, contudo, sua popularidade não significou necessariamente um amplo e extenso processo sinonímico de apropriação de seus fundamentos basilares. A psicologia e a medicina ainda ditam as normas postas nas relações cotidianas quando falamos de deficiência (ZOLA, 1989). Entretanto, os avanços em termos de ocupação de espaços públicos e a feitura de leis que ampliem direitos as pessoas com deficiência são notáveis nos últimos estertores do século XX e no século XXI como um todo, progressos esses fincados sob a lógica do modelo social da deficiência, que se opõe ao espectro analítico dominante ao definir a sociedade e não mais o impedimento ou o corpo como palco principal das transformações almejadas pelas pessoas com deficiência. A distinção entre incapacidade e deficiência feita por Morris (1991, p.25) é singular nesse sentido, para quem, em termos sintéticos 

(...) A incapacidade de andar representa uma lesão, enquanto que a incapacidade de entrar em um edifício, pois a entrada apenas pode ser realizada por um lance de degraus é uma deficiência. Uma incapacidade de falar é uma lesão, mas uma incapacidade de se comunicar porque as ajudas técnicas adequadas não estão disponíveis é uma deficiência. Uma incapacidade de se mover um corpo é uma lesão, mas uma incapacidade para sair da cama porque a ajuda física adequada não está disponível é uma deficiência5.

Ao transmutar o entendimento da deficiência como um problema trágico de ocorrência isolada de alguns indivíduos menos afortunados para os quais resta exclusivamente o tratamento médico em direção ao entendimento da mesma como uma situação de discriminação institucional coletiva para o qual a única resposta apropriada é a ação política, o modelo social inverte radicalmente os vetores que perfilhava o entendimento da deficiência na sociedade. Comentando sobre este processo, Diniz (2007, p.8) destaca que    

A retirada da deficiência do campo da natureza e sua transferência para a sociedade foi uma guinada teórica revolucionária, tal como a provocada pelo feminismo: não era mais possível justificar a opressão dos deficientes por uma ditadura da natureza, mas por uma injustiça social na divisão de bem-estar, uma afirmação com implicações políticas desconcertantes.

Se é a sociedade que incapacita as pessoas com deficiência, a única forma destas alterarem tal situação é mediante intensas lutas para transformar o estado atual de forças e assumirem controle sobre suas próprias vidas. O novo universo gestado pelo modelo social opõe ao discurso colonizador expresso pelo saber normativo, médico, clínico e reabilitador uma práxis crítica, sociológica, política, inclusiva e contextualizada. Sob o auspício de uma nova ontologia estabelecida entre deficiência e sociedade, o modelo social descoloniza o estudo da deficiência das áreas médicas, favorecendo a explosão de reivindicações sociais que intuíam ampliar direitos das pessoas com deficiência, gestando consequências profundas na formatação de novas políticas públicas as quais tiveram como primeira consequência notável a profusão no que diz respeito a criação de movimentos sociais de pessoas com deficiência.

Tais movimentos surgiram como parte de um projeto emancipatório amplo, em que as lutas contra as injustiças e o capacitismo se vincavam também à lutas contra o racismo, o imperialismo, o machismo, a homofobia e a dominação de classes; lutas que exigiam uma revolução nas estruturais morais e no modo de produção da sociedade capitalista. Criou-se assim um espectro alargado de ação social ao comutar o tropos da luta política como estando relacionado a superação das desigualdades econômicas, mas também as hierarquias de status e assimetrias de poder político. Nesse sentido, podemos destacar a deficiência como um fenômeno social total, tal qual dedilhou a antropologia de Mauss, na medida em que incorporava as dimensões biológicas, culturais, econômicas, psicológicas e políticas.

A luta social e coletiva se sobrepôs a reivindicações individuais no campo dos tratamentos médicos, ainda que as mesmas se mostrem importantes. Neste diapasão, o brado consistia em demarcar que a anatomia não era mais o destino, implodindo o mito de Procusto. Era preciso versar sobre a desigualdade distributiva e sobre a falta de reconhecimento e representatividade política das pessoas com deficiência. Sem substituir o essencialismo biológico pelo essencialismo social era preciso brotar tal ativismo como força cultural e exigir as mudanças que se fizerem necessárias na sociedade, auspicioso objetivo dos movimentos sociais fortalecidos após o Maio de 68. Dito isto, fundamental se faz analisar o surgimento dos movimentos sociais de pessoas com deficiência no Brasil e intuir como os mesmos auxiliaram na transformação da sociedade brasileira.

O aparecimento do associativismo de pessoas com deficiência no Brasil e as alterações nos marcos legais

A ebulição presenciada no outro lado do Atlântico no que diz respeito ao aparecimento de movimentos sociais os mais diversos também foi presenciada no Brasil, ainda que o contexto nacional guardava distinções devido o regime de exceção.

O início da década de 70 do século XX foi palco da criação de inúmeras organizações de pessoas com deficiência no Brasil, dentre as quais destacam-se: Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi; Federação Brasileira de Excepcionais, a Associação Nacional de Desportos para Deficientes, Federação Brasileira de Entidades de Cegos; Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos; Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos; Movimento de Reintegração dos Hansenianos; e Conselho Brasileiro de Entidades de Pessoas Deficientes (em substituição à Coalizão Nacional, criada em 1980). Tais associações se juntavam a outras existentes como a Federação Nacional das APAEs e pressionavam o Estado a realizar diversas transformações a fim de materializar uma sociedade mais acessível em todas as suas dimensões (LANNA JÚNIOR, 2010).

A efervescência destas reivindicações sociais, que congregavam manifestações de movimentos negros, feministas, indígenas, sem-terra, sem-teto, de pessoas com deficiência, dentre outras, compuseram o caldo formativo da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), base sobre a qual se arquiteta a Constituição Federal do Brasil (CF), nominada constituição cidadã, devido justamente a intensa participação popular das minorias.

De maneira organizada, o movimento de pessoas com deficiência sugeriu diversas proposituras à Assembleia Nacional Constituinte. Aliás, é digno de nota que o cidadão não parlamentar que mais pronunciamentos realizou durante as audiências públicas da ANC fosse Paulo Roberto Guimarães, deficiente físico e militante desde o final da década de 1970. Em seu discurso na última audiência da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, Paulo discursou após Leonel Brizola, destacando a importância crucial que a nova Carta Magna teria em garantir direitos aos excluídos. Em suas palavras:

É com muita alegria e admiração rara que vejo que Vossa Excelência também se preocupa com os não indivíduos, os exilados, os velhos. Sua Excelência também se preocupa com os não-indivíduos, os exilados internos, os apátridas. Vossa Excelência não é mais um exilado, mas muitos ainda o são. Os negros e os velhos são exilados neste país. Nós mesmos somos exilados dos banheiros, das escolas, das instituições, dos palácios, da nossa própria casa. Somos exilados internos deste país, e o Sr. Governador percebeu isso. Aliás, ele é positivamente esperto por que percebe a realidade, justamente porque viveu a lógica dos que perderam a cidadania. Somos os sem sujeito, histórica, política e culturalmente deserdados, e vamos, com certeza, herdar cultura. (...) Senhor Governador, estou encantado com as suas palavras. E acho que as autoridades brasileiras precisam parar de falar que os nossos problemas são de saúde, de educação e, quando muito, de transporte. Na verdade, o nosso grande problema é de direito, de cidadania, de existência (GUIMARÃES, apud LANNA JÚNIOR, 2010, p.64).

A fala de Paulo dá o tom daquelas que seriam as principais reivindicações dos movimentos organizados por pessoas com deficiência, a citar, a luta pela ampliação de direitos. Os embates resultantes da ANC e a necessária elaboração pelas pessoas com deficiência das propostas que deveriam ser incorporadas a Constituição Federal se mostraram determinantes na realização da 3ª Reunião de Conselhos e Coordenadorias Estaduais e Municipais de Apoio à Pessoa Deficiente, plenária que catalogou e aprovou as deliberações a serem apresentadas a ANC. Entretanto, as mesmas não foram incorporadas da forma esperada ao texto constitucional.

Como contraponto, o movimento preparou um Projeto de Emenda Popular (n° PE00086-5), recolhendo as mais de 30.000 assinaturas necessárias e, sob a responsabilidade da Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, do Movimento de Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência e da Associação Nacional dos Ostomizados, reapresentaram a ANC suas proposições, sintetizadas em 14 indicações, que versavam sobre igualdade; promoção à saúde; direito à habilitação e reabilitação; direito à educação; provisão de recursos mínimos para a educação das pessoas com deficiência; isonomia salarial e de tratamento; dedução em imposto de renda e isenção tributária na compra de equipamentos; regulamentação do trabalho das oficinas que empregam deficientes; transformação da aposentadoria por invalidez em seguro reabilitação; garantia da aposentadoria por tempo de serviço após as pessoas com deficiência completarem vinte anos de exercício; acessibilidade; campanhas educativas e a isenção de impostos em relação as atividades que envolvam pesquisa, produção e importação de equipamentos para pessoas com deficiências.

Tais pontos foram apreciados pela Assembleia Nacional Constituinte e incorporados no texto final. Tanto é que Rosângela Berman Bieler e Romeu Kazumi Sassaki, que participaram ativamente deste processo, destacaram que o movimento das pessoas com deficiência conseguiu distribuir o tema da deficiência em todos os principais artigos constitucionais, e que o anteprojeto da Constituição se tornou muito diferente da CF promulgada em 1988, ao abandonar uma antiga e inadequada visão da deficiência sob um espectro paterno-assistencialista (LANNA, JÚNIOR, 2010).

Como bem retratou Arretche (2018), nossa constituição representou um processo bem-sucedido de transição democrática no qual uma sociedade altamente desigual produziu uma promessa de inclusão social ao introduzir nas políticas sociais a perspectiva de direitos à minorias antes ignoradas e silenciadas. Tal movimento impulsionou novas demandas e pugnas sociais através de uma espiral dialética ascendente de movimento contínuo.

Desde a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) diversas foram as Leis que versaram especificamente sobre a temática da deficiência, dentre as principais podemos citar:

Lei nº 7.853, de 1989 - Dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência e sua integração social. Institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas; disciplina a atuação do Ministério Público; define crimes; e dá outras providências (BRASIL, 1989).

Lei nº 8.213, de 1991 – Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Define também sobre o percentual obrigatório de contratação de PcD pelo regime geral de previdência social (BRASIL, 1991).

Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000 – Trata sobre a prioridade de atendimento às PcD nas repartições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos (BRASIL, 2000a).

Lei nº 10.098, de 2000 – Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida (BRASIL, 2000b).

Lei nº 10.436, de 2002 – Reconhece como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras – e a conceitua como: “a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil” (BRASIL, 2002).

Lei nº 11.126, de 27 de junho de 2005 – Estabelece o direito da pessoa com deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhada de cão-guia (BRASIL, 2005).

Lei n° 13.146, de 2015 – Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania (BRASIL, 2015).

Tais Leis, mais do que refletir o espírito de uma época, representam a materialidade pela qual os discursos e ações de pessoas com deficiência representadas por movimentos sociais foram apropriadas no imaginário político, ou seja, não ocorreram por dádiva ou obséquio. A gramática geradora destes discursos e ações foi estruturada a partir da insurreição de pessoas com deficiência no que diz respeito às múltiplas experiências de injustiça que identificavam na sociedade e a urgência em modificar tais relações que os impediam de participar como parceiros nas relações sociais. A negação deste reconhecimento acrescidos à materialização de experiências diversas de desrespeito fermentaram lutas empunhadas pelo movimento social de pessoas com deficiência as quais tinham por objetivo autonomia, autorrespeito e vida independente, cuja consecução efetivamente transformou e ampliou as políticas públicas no sentido de incorporar as demandas apresentadas.

Evidente que muito ainda há de ser feito, seja no terreno da ampliação de direitos ou na consubstanciação dos mesmos em materialidade efetiva na vida cotidiana, contudo, imperioso destacar que muito se avançou no sentido de idealizarmos contextos locais, regionais e nacionais mais acessíveis e que estas transformações representam produtos de lutas históricas derivadas da mobilização social. Transformações que mudam e melhoram a vida efetivamente das pessoas com deficiência, até porque a consolidação de um direito traz como corolário a ideia da obrigação e do cumprimento do mesmo, não podendo ser diminuído sob qualquer pretexto. As conquistas neste terreno são históricas e produzem efeitos duradouros, as quais, no caso das pessoas com deficiência, tiveram como um de seus estopins o Maio de 1968, daí a necessária consideração dos impactos produzidos por este movimento.

Considerações finais

Encerramos o texto destacando as profícuas relações aventadas após o Maio de 68 na multiplicação de movimentos ativistas de minorias em busca da ampliação de direitos sociais. No caso da questão da deficiência coube aos seus próprios sujeitos inventar um novo conceito de deficiência, materializado pela crítica ao saber médico e assunção do modelo social, que teve papel angular ao interpretar a opressão vivenciada pelas pessoas com deficiência como fruto da exclusão e injustiça social. Tal inversão produz interferências políticas desconcertantes e impulsiona a criação de bandeiras transformadoras, além de fomentar o ativismo.

Claro está que este fenômeno não deve ser visto sob o prisma da substituição de um essencialismo (médico-biológico) por outro essencialismo (social), fato que gerou diversas críticas aos teóricos primevos do modelo social. É inegável a existência de impactos que algumas lesões causam, tais como dor, doenças crônicas ou fadigas derivadas de impedimentos que não podem ser simplesmente solucionados com recursos de acessibilidade. A complexidade de alguns impedimentos traz dificuldades evidentes a pessoa e família que convive com a deficiência. Nesse sentido, ignorar a importância do ato e prática médica beira o absurdo. Até porque em diversas situações o tratamento médico, as práticas de reabilitação e a existência de órteses e próteses efetivamente melhoram a vida das pessoas com deficiência ao reduzir fenômenos adversos e incrementar novas possiblidades de práticas sociais.

Dito isto, asseveramos que a defesa do modelo social não pode se corporificar pela recusa da prática médica e de seu saber, muito pelo contrário, pois consiste justamente em valorizar tais atos como fundamentais à melhoria da vida das pessoas. Contudo, para além da esfera da reabilitação existe a necessária e urgente luta pela transformação da sociedade para que a mesma incorpore as mais distintas diferenças.

Luta que passa pela modificação das infraestruturas existentes, mas também pela reinvenção da gramática dos costumes erigidos pela modernidade que enquadrou a diferença da deficiência como anormalidade, desvio e incapacidade. Revolucionar estas duas dimensões se compõem como principal esteio trópico dos movimentos das pessoas com deficiência, cuja materialização somente ocorrerá mediante processo de contestação política que critique radicalmente o modo de produção fincado na ideia de eficiência e que desnude a falsa antinomia eu e outro como simétrica a oposição da díade bem e mal.

Trata-se de luta política que alavanque uma crítica radical a qualquer forma de pensar segregacionista e aristocrática, de qualquer falar pelo ou no lugar do outro. É preciso recuperar a ideia hegeliana de que as pessoas só podem ser livres na medida em que possamos viver em uma sociedade em que todos percebam que a liberdade dos demais é ato fundante da corporificação de nossa própria liberdade. Quando alguém é excluído de direitos a liberdade queda obstaculizada e não se efetiva na integralidade, fundando experiências de desrespeito que carecem em ser contestadas por uma crítica radical que cumpra os papéis de imanência e transcendência ao mostrar-se ancorada na realidade, mas capaz de destacar novos horizontes sociais possíveis através da resolução de suas contradições, o que implica um novo pensar. Quando isso ocorre já não somos os mesmos.  

Trata-se de uma nova antropologia consolidada nos conceitos de reconhecimento, redistribuição e representatividade. Nada sobre nós sem nós. Esta é a utopia inaudita presente no modelo social e que se coaduna, no caso das pessoas com deficiência, com a ocupação dos espaços públicos por todos, bandeira comungada pelos movimentos sociais ao demonstrar inconformismo e revolta perante uma situação de injustiça atinentes a fatores como exploração econômica, privação de bens, as desiguais formas de representação, o não reconhecimento e o desrespeito. Tais contestações jamais saíram do imaginário político desde então, por isso, mais uma vez asseveramos, o Maio de 68 representou um movimento vencido, mas que permaneceu vivo através das lutas por justiça e participação social. É proibido proibir.

Referências

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 Notas

1 Importante citar que, entre as décadas de 60 e 70, uma literatura mais crítica sobre as pessoas com deficiência também começa a aparecer em cena, cabendo ressaltar a obra de Hunt (1966), intitulada “Estigma”; o emblemático livro de Robert Scott, publicado no ano de 1969 nos EUA, denominado “A fabricação dos homens cegos”; em que o autor descreve como a organização das fábricas norte-americanas transforma cegos em pessoas que não podem ver ou nada sentir; temos também a coleção editada por Gary Albrecht em 1976, intitulada “A sociologia da deficiência física e reabilitação”. Datam ainda dessa época as obras “O significado da deficiência” de Mildred Blaxter em 1976 e “A pobreza no Reino Unido” de Peter Towsend em 1979. Como contribuição em comum destas obras podemos citar a crítica ao discurso biomédico como marco explicativo sobre a deficiência, além de materializarem a consolidação de outra alternativa teórica para a explicação da mesma, agora advinda das ciências sociológicas.  Este corpo de conhecimentos legais e literários será fundamental no processo de constituição e crítica a sociedade manifesta pelos estudos sociais da deficiência (PRIESTLEY, 1999).

2 “We as a Union are not interested in descriptions of how awful it is to be disabled. What we are interested in is the ways of changing our conditions of life, and thus overcoming the disabilities which are imposed on top of our physical impairments by the way this society is organized to exclude us' (UPIAS, 1976, pp. 4-5)”.

3 Destacada ideia é logo substituída pelo vocábulo pessoa deficiente de forma a abrigar toda e qualquer pessoa com deficiência.

4 “In our view, it is society which disabled physically impaired people. Disability is something imposed on top of our impairments by the way we are unnecessarily isolated and excluded from full participation in society. Disabled people are therefore an oppressed group in society. To understand this, it is necessary to grasp the distinction between the physical impairment and the social situation, called ‘disability’, of people with such impairment. Thus we define impairment as lacking part of or all of a limb, or having a defective limb, organ or mechanism of the body; and disability as the disadvantage or restriction of activity caused by a contemporary social organisation which takes no or little account of people who have physical impairments and thus excludes them from participation in the mainstream of social activities. Physical disability is therefore a particular form of social oppression” (UPIAS, 1976:3-4).

5 “an inability to walk is an impairment, whereas an inability to enter a building because the entrance is up a flight of steps is a disability. An inability to speak is an impairment but an inability to communicate because appropriate technical aids are not made available is a disability. An inability to move one’s body is an impairment but an inability to get out of bed because appropriate physical help is not available is a disability” (MORRIS, 1991, p.25).

 

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