http://dx.doi.org/10.5902/1984686X63937

O intérprete de Libras educacional como mediador de subjetividades nas aulas de matemática

The educational Libras interpreter as a mediator of subjectivities in mathematics classes

El intérprete educativo de Libras como mediador de subjetividades en las clases de matemáticas

Rayssa Feitoza Felix dos Santos

Mestra pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

E-mail: rayyssa.felix@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5179-6449

Daniella Rodrigues de Farias

Professora doutora da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

E-mail: daniella.farias@ufpe.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0288-6699

Recebido em 21 de janeiro de 2021

Aprovado em 28 de junho de 2021

Publicado em 27 de julho de 2021

RESUMO

A presente pesquisa estuda o(a) profissional intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), em sua atuação de mediar subjetividades presentes nas aulas de matemática. Assim, o objetivo da investigação consistiu em analisar as subjetividades que perpassam pela atuação do(a) intérprete de Libras nas aulas de matemática. A metodologia adotada para esta investigação foi a observação de aulas de matemática e entrevistas semiestruturadas. Para a análise dos dados, optou-se pela Análise do discurso (AD), que alinhada à abordagem pós-estruturalista, fundamenta os conceitos-chave da pesquisa. Percebe-se que o(a) intérprete assim como os demais atores ou atrizes do processo educacional estão em constante devir, deparando-se em sala de aula com suas próprias subjetividades assim como de estudantes, professores(as) e as trazidas pela matemática, que possui uma linguagem própria. Portanto, o(a) intérprete de Libras encontra-se em meio a diversas subjetividades e, é nesse contexto, que ele ou ela desempenha seu papel de mediar línguas – não apenas –.

Palavras-chave: Subjetividade; Intérprete de Libras; Matemática.

ABSTRACT

The present research studies the professional interpreter of Sign Brazilian Language (Libras) in his or her acting to mediate subjectivities present in mathematics classes.  Thus, the objective of this investigation was to analyze how the subjectivities present in mathematics classes have been mediated by the Libras interpreter. The methodology adopted for this investigation was the observation of mathematics classes and semi-structured interviews.  For data analysis, we opted for Discourse Analysis, which, in line with the post-structuralist approach, underpins the keyconcepts of this research. We have realized that the interpreter as well as other actors or actresses in the educational process have been in a constant becoming, besides facing their own subjectivities in classroom. We have also realized that students and teachers have had their own subjectives and the ones brought by mathematics, which has a language own. Therefore, the Libras interpreter is in the midst of several subjectivities and it is in this context that he or she plays his or her role of mediating languages – not only –.

Keywords: Subjectivity; Libras interpreter; Mathematics.

RESUMEN

La presente búsqueda estudia el profesional intérprete de Lengua brasileña de señas (Libras) en su actuación de mediar subjetividades presentes en las clases de matemáticas. Así, el objetivo de esta investigación consistió en analizar como las subjetividades presentes en las clases de matemáticas han sido mediadas por el(la) intérprete de Libras. La metodología adoptada para ello fue la observación de clases de matemáticas y entrevistas semiestructuradas. Para el análisis de dados, optamos por el Análisis del Discurso, que alineado con el enfoque postestructuralista, fundamenta los conceptos claves de la búsqueda. Percibimos que el o la intérprete, igual que a los o las demás actores o actrices del proceso educacional están en un constante devenir, y que él o ella se depara en aulas con sus propias subjetividades, igual que las de estudiantes, profesores y aquellas traídas por las matemáticas, que poseen un leguaje propia. Por lo tanto, el o la intérprete de Libras se encuentra en medio a las diversas subjetividades y es en ese contexto que él o ella desempeña su papel de mediar lenguas – no solamente –.

Palabras claves: Subjetividad; Intérprete de Libras; Matemáticas.

Introdução

No emaranhado da vasta teia de conquistas e rupturas relacionadas à educação que se pretende inclusiva, encontramos o(a) professor(a) da escola regular frente ao desafio de lecionar numa sala de aula, cuja maior característica é a heterogeneidade. Heterogeneidade esta que, sob o respaldo pós-estruturalista, representa o enfrentamento discursivo às ideias de sujeito universal e homogeneidade, ideais forjados na modernidade.

Nesse denso contexto, em que a diferença se insurge contra a monotonia do anseio pelo normal e à sua imposição como um fator ordenador hierarquizante, está o(a) professor(a) numa sala de aula denominada como “regular”, com diversos discentes, inclusive discentes com deficiência e, dentre estas pessoas, o(a) estudante surdo(a) para quem a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é a primeira língua – em geral, desconhecida pelo(a) professor(a) e pela maioria dos(as) colegas –.

Portanto, entra em cena o(a) tradutor(a) e intérprete de Libras como mediador(a) entre usuários(as) de línguas, culturas e universos distintos. Quadros (1997) define o(a) intérprete de língua de sinais como profissional bilíngue que domina a língua de sinais e a língua falada do país e que, assim, possui qualificação para desempenhar a função de intérprete de língua de sinais. Vale destacar aqui que a compreensão a partir da definição mencionada, ao resgatar a ideia de domínio parece apontar para uma transparência da língua, ideia desconstruída pelo pós-estruturalismo e pela Análise do Discurso (AD), para quem a língua é necessariamente caracterizada por uma opacidade.

Adotamos a concepção pós-estruturalista porque aborda e problematiza historicamente conceitos que consideramos relevantes a esta investigação como a diferença e as relações de poder, dentre outros. Em consonância com a concepção adotada, nos propusemos a utilizar a análise de discurso para subsidiar as análises dos dados, uma vez que esta permite considerar as subjetividades, que envolvem o contexto das relações estabelecidas entre os/as profissionais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem do discente surdo, pois percebe o discurso como prática, como movimento que admite os devires em jogo, as territorializações, as desterritorializações e reterritorializações que permeiam essas relações.

Sobre o(a) intérprete educacional, Quadros (1997, p. 60) afirma que “[...] deverá ter um perfil para intermediar as relações entre os professores e os alunos, bem como, entre os colegas surdos e os colegas ouvintes.” Ao lermos definições como estas, não é raro, a princípio, formarmos a ideia de que a atuação de intérprete é um trabalho neutro, assentado sobre uma racional objetividade de quem recebe uma informação em determinada língua e a transmite para outra como se o(a) intérprete fosse uma máquina decodificadora de sinais.

Esta percepção forjou a ideia de que a tradução de uma língua para outra seria feita de maneira inequívoca, sem que o(a) intérprete viesse a inserir neste processo, que é interpretativo-compreensivo, o seu próprio entendimento acerca de devires e fatos envolvidos em vasta rede, assim como elementos de sua própria subjetividade.

Este entendimento desconsidera que, como sugere Orlandi (2015), uma das características da língua – e aqui se inclui a Libras – é a sua opacidade, ou seja, por ser composta por signos e por trazer necessariamente sentidos inconscientes e ideológicos, há diferentes possibilidades de interpretação e de ocorrência de equívocos, terreno fértil para as rupturas com as ideias consensuais.

Com efeito, cremos perceber no decorrer desta investigação que, sendo a língua – a exemplo do conceito de cultura designado pelo antropólogo Clifford Geertz (1988 apud MASSI, 1992) – uma vasta rede de signos que constituímos e que simultaneamente nos constituem e que a própria subjetividade, como afirma a psicanálise, depende deste referencial simbólico, o(a) intérprete tem aí reforçado o seu papel simultaneamente cultural, afetivo e político nos processos de subjetivação em sala de aula.

Na realidade, além de mediador(a) de devires nos processos de subjetivação, o(a) intérprete tem implicada e em devir a sua própria subjetividade, o que Geertz (1988), segundo Massi (1992) denominaria como uma relação de intersubjetividade. O(a) intérprete é um(a) mediador(a) para essas subjetividades no contexto de sala de aula, e essa condição demanda para ele ou ela um olhar para a própria subjetividade, assim como um olhar atento e uma profunda sensibilidade para a diferença e subjetividades das outras pessoas envolvidas, práticas que deverão estar necessariamente ligadas a sua atuação.

O(a) intérprete não deverá ser, portanto, acessório nem uma personagem secundária neste jogo que possibilita o deslocamento de sentidos e lugares, nem aquele(a) que deve filtrar os ruídos; todavia, aquele(a) capaz de percebê-los e decodificá-los na medida do possível, em relação aos aspectos cognitivos e emocionais ali investidos. Tendo-se em vista essa perspectiva, o que confere ainda mais complexidade a esse contexto é o devir do(a) intérprete que a priori compõe uma complexa tríade de devires em jogo: intérprete de Libras, professor(a) de matemática e discente surdo(a).

Tem-se, portanto, a contação de uma triangulação de devires e subjetividades a ser manejada pelo(a) intérprete: intérprete - docente - discente, triangulação intersubjetiva ou de subjetividades que necessariamente se retroalimentam e interferem em profundidade umas às outras. É nesse contexto no qual buscamos como objetivo da investigação analisar as subjetividades que perpassam pela atuação do(a) intérprete de Libras nas aulas de matemática.

O presente artigo traz uma análise possível a partir dos dados obtidos na construção da dissertação da autora principal. Dessa forma, passou pela análise, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, com vistas a assegurar a realização e preservação dos aspectos éticos na investigação. Considerando os aspectos éticos, a presente investigação não utiliza os nomes dos participantes da pesquisa. Os intérpretes na pesquisa foram identificados de I2, I3, I6 e I7, representando, o número ao lado da letra “I”, o número de anos de experiência como intérpretes.

A provisoriedade de pessoas e contextos

Em contraste com outras profissões, o reconhecimento do profissional-intérprete de Libras é relativamente recente. Com vistas a facilitar a compreensão, optamos apenas pela utilização da nomenclatura “intérprete” ou, “intérprete de Libras”. Fizemos isso primando pela simplificação, tendo em vista que há formas diversas, inclusive siglas usadas por autores para se referir a esse profissional. Quadros (1997), por exemplo, fala do IE (intérprete educacional); Silva e Pinto (2017), por sua vez, usa ILS (intérprete de língua de sinais); em Rosa (2016), o referido profissional é chamado de TILS (tradutor e intérprete de língua de sinais) etc.

Apesar de escolhermos o termo intérprete ou intérprete de Libras, estaremos nos referindo ao intérprete educacional, tendo em vista que o profissional central nesta pesquisa é o intérprete envolvido nos processos de ensino e aprendizagem de matemática para estudantes surdos. Este é o profissional que, como visto anteriormente, faz a mediação da comunicação no contexto escolar.

Interpretar em salas de aula é mais do que ter competência em língua de sinais. Além de interpretar rápida e corretamente, o IE precisa facilitar que os alunos surdos possam alcançar os objetivos educacionais propostos pelo professor para todos os alunos da classe inclusiva (ANTONIO; MOTA; KELMA, 2015, p. 1048).

Apesar de registros apontarem a atuação de intérpretes de Libras desde os anos 1980, que acontecia de forma voluntária, geralmente em ambientes religiosos, o reconhecimento e regulamentação da profissão aconteceu apenas em 2010 com a Lei federal n. 12.319, de 1º de setembro de 2010 (BRASIL, 2010). Esta regulamentação foi possível porque já existiam outros dispositivos legais para ancorar a atuação deste profissional, como é o caso da Lei n. 10.436 de 24 de abril de 2002, que reconhece a Libras “como meio legal de comunicação e expressão” (BRASIL, 2002). A aprovação da referida Lei, que ficou conhecida como a Lei da Libras, teve um grande impacto positivo para a comunidade surda. Foi a partir dela que ações como a atuação do intérprete pôde ser vista como direito do surdo.

Contamos também com o Decreto n. 5.626 de 22 de dezembro de 2005 que regulamenta a Lei de Libras e detalha como devem ocorrer ações relacionadas à formação do intérprete de Libras, à inclusão da disciplina de Libras nas licenciaturas e outras graduações, do uso e difusão da Libras, entre outros temas (BRASIL, 2005). Toda essa legislação contribuiu para a consolidação e reconhecimento do intérprete de Libras como profissional e, são de suma importância para o desenvolvimento de ações e luta pelos direitos das pessoas surdas.

Sobre sua atuação, além de exercer uma profissão ainda considerada recente, por ter aproximadamente uma década de reconhecimento, o intérprete, como todo sujeito, também não está dado, como afirma Mansano (2009), sobre o pensamento de Deleuze (2001):

O sujeito não está dado, mas se constitui nos dados da experiência, no contato com os acontecimentos. Questionamos: como isso acontece? Nos diferentes encontros vividos com o outro, exercitamos nossa potência para diferenciarmos de nós mesmos e daqueles que nos cercam. Existem diferentes maneiras de viver tais encontros. Alguns deles podem passar despercebidos. Já outros são fortes, marcantes e até mesmo violentos. (MANSANO, 2009, p. 115).

Assim, o intérprete, como os demais atores desse cenário, se constrói a cada encontro vivido, a cada situação compartilhada; o devir do intérprete é ininterrupto e se molda continuamente mediante outros devires. Não obstante a esta percepção-leitura, vale também ponderar que, por estar em construção, é possível que algumas vezes o papel do intérprete esteja confuso para si e para outrem. Há quem faça referência a algumas causas pelas quais o(a) intérprete possa, às vezes, não compreender sua função com clareza, declarando que

As situações no contexto escolar muitas vezes provocam sentimentos conflituosos no profissional intérprete, no sentido de saber e compreender a sua real função, porém, por emoção, afetividade, comprometimento com o aluno surdo e até mesmo diante do desconhecimento do professor regente, com relação ao mesmo, remete ao profissional intérprete realizar atividades não condizentes com sua atuação. (SCHEFER, 2018, p. 45).

Na mesma direção, tratando-se do não-acabado intérprete e de seu papel, muitas vezes confuso para os que o cercam, senão para ele próprio também, Quadros (2004) versa sobre limitações na compreensão deste profissional, ao afirmar que “[...] as competências e responsabilidades desses profissionais não são tão fáceis de ser determinadas. Há vários problemas de ordem ética que acabam surgindo em função do tipo de intermediação que acaba acontecendo em sala de aula.” (p. 60).

Essas afirmações nos fazem refletir sobre a interpretação enquanto profissão que parece ainda estar sendo consolidada e que, como a autora explana, apresenta controvérsias de ordem ética, como veremos a seguir. Antes, porém, precisam ser esclarecidas diferenças entre os papéis de intérprete de Libras e de professor. Como visto anteriormente, o papel do intérprete é intermediar a comunicação entre surdos e ouvintes e, na sala de aula entre alunos surdos e seus professores. Enquanto, ““o papel do professor é único e consiste em organizar situações de aprendizagem para desafiar o aluno a elaborar um novo conhecimento” (ROSA, 2006, 86). Enfatizamos, portanto que para desempenhar papéis distintos, os professionais passam por formações também bastante diferenciadas.  Um profissional – intérprete – é responsável pela comunicação e por possibilitar o aluno surdo acessar o conhecimento fazendo uso da sua língua materna; enquanto o professor é responsável pela esfera pedagógica.

As subjetividades – entre o código de ética e a interpretação

Apesar de a profissão dos intérpretes de Libras ter sido regulamentada a pouco mais de uma década, há o registro de um código de ética para os intérpretes desta língua, com data bem anterior. O código de ética dos intérpretes de Libras foi aprovado no II Encontro Nacional de Intérpretes que aconteceu em 1992, no Rio de Janeiro. É parte integrante do regimento interno do Departamento Nacional de Intérpretes da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), legitimado pelo Ministério da Educação por meio do documento “O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa” (QUADROS, 2004). Analisaremos, então, alguns dos princípios fundamentais de que trata o capítulo 1 do código de ética dos intérpretes de Libras. O artigo 1º estabelece que

[...] são deveres fundamentais do intérprete: 1°. O intérprete deve ser uma pessoa de alto caráter moral, honesto, consciente, confidente e de equilíbrio emocional. Ele guardará informações confidenciais e não poderá trair confidências, as quais foram confiadas a ele (QUADROS, 2004, p. 31 e 32).

Nesse artigo, percebe-se algumas características emocionais e morais que são atribuídas à pessoa intérprete de Libras. É requerido que seja honesta, tenha controle e equilíbrio emocional, caráter, pois, interpretará assuntos os mais diversos, desde uma aula até conversas particulares, sendo necessário que saiba se portar com discrição. É importante que a pessoa surda sinta confiança nele ou nela.

O 2º artigo diz que “[...] o intérprete deve manter uma atitude imparcial durante o transcurso da interpretação, evitando interferências e opiniões próprias, a menos que seja requerido pelo grupo a fazê-lo.” (QUADROS, 2004, p. 32). Neste artigo, encontramos a essência do espírito da modernidade que é a separação entre sujeito e objeto, a busca da objetividade nas práticas e discursos dos(as) intérpretes – “imparcialidade” –, em detrimento às possíveis interferências e equívocos oriundos das subjetividades. A subjetividade aqui é, portanto, percebida como um ruído indesejado, desnecessário e passível de ser evitado por intermédio do preciosismo técnico.

Ao se considerar, entretanto, e como afirma a AD, que todos os discursos e práticas estão naturalmente repletos de subjetividades, por estarem naturalmente repletas de conteúdos inconscientes e ideológicos e que, por este motivo, os sujeitos e seus discursos não são neutros, não há como exigir que o(a) intérprete seja absolutamente imparcial.

Além da sua própria subjetividade, o(a) intérprete está envolto(a) entre as subjetividades de seus interlocutores e interlocutoras, sendo consequentemente lembrados e atualizados afetos e/ou emoções que oriundas de outras relações interpelam as relações atuais no aqui e no agora. Exemplifica-se, nessa direção, a não-neutralidade do(a) intérprete, ao se assegurar que

Durante o ato interpretativo, as escolhas linguísticas dos Tils são suas e expõem suas ideologias, conhecimento científico e crenças. Existe um número expressivo de Tils oriundos de instituições religiosas, principalmente aqueles que ocupam hoje lugar de formadores de intérpretes, e essas crenças e conceitos morais afloram durante a tradução e definem as nossas escolhas dos lugares que desejamos interpretar. Não raro, intérpretes recusam trabalhos quando envolvem união homossexual, batizados em credos muito diferentes daqueles da fé que ele professa. Nesse momento, a acessibilidade não está em pauta, e, sim, o sujeito que realizará a tradução. À vista disso, não há Tils neutros e que não sejam interpelados pelo discurso durante o ato interpretativo. Nessa direção, os intérpretes estão corretos em declinar tais trabalhos, pois, como responsáveis pelo enunciado que será pronunciado na língua de sinais, e já sabendo, de antemão, o quanto será conflituoso realizar o trabalho, considero essa postura ética, criando, dessa forma, espaço para outro profissional realizar a tarefa com esmero. (ROSA, 2016, p. 60 e 61).

As escolhas que o(a) intérprete faz dos lugares onde interpretar, por exemplo, mostram seu posicionamento. Quando o código de ética foi aprovado no Brasil, havia a ideia de imparcialidade do(a) intérprete (ROSA, 2016), todavia, podemos dizer que ainda há essa expectativa. No entanto, quando a autora afirma em sua tese que anteriormente se concebia o(a) intérprete como neutro(a), percebe-se que há estudos como o dela, os quais assinalam o despontar de um novo olhar sobre o(a) intérprete e enxergam-no(a) de outra forma. Nessa esfera, compactuamos com a autora ao elucidar que

O intérprete não pode se esquivar da responsabilidade das suas escolhas linguísticas enquanto traduz; ele não é fantoche nas mãos da comunidade surda e tampouco do ouvinte que, naquele momento, está com a palavra. Ao contrário, no momento da interpretação é ele, o intérprete, que toma as decisões relativas à tradução. (ROSA, 2016, p. 60).

Mesmo em meio às subjetividades que o envolvem, o(a) intérprete de Libras tem uma grande responsabilidade ao interpretar, precisando estar ciente disto.

O intérprete de Libras e a matemática: subjetividades à vista

No contexto analisado por esta pesquisa, interessa à comunidade o(a) intérprete que atua nas aulas de matemática. Esta é uma disciplina que já carrega em si preconceitos como o de que é difícil, um discurso que acaba por se consolidar por intermédio dos enunciados de professores, mães, pais e alunos(as) quando o mesmo é repetido ou reforçado. O enunciado deixa, deste modo, de ter um caráter de interdiscurso e se torna parte do intradiscurso, pois, é borrado da memória a curto prazo, tornando-se então anônimo, de onde, portanto, os sujeitos tomam esses discursos como originariamente seus. Tal ideia é fundamentada ao se ler que

A matemática é considerada uma disciplina difícil por uma parcela significativa dos alunos, possível de ser compreendida e aprendida por poucos. Esta visão é agravada pela posição dos pais e também por parte dos professores, que acabam compartilhando tal concepção e reproduzindo essa ideia aos adolescentes, estabelecendo com isso, uma barreira frente aos processos de ensino e aprendizagem matemática, às vezes, intransponível. (GONÇALVES, 2006, p. 43).

Grosso modo, muitos(as) alunos(as) possuem a crença de que esta é uma disciplina difícil, o que, por vezes, vem a constituir barreiras na aprendizagem. Para os(as) estudantes surdos(as), a matemática apresenta um diferencial em comparação a algumas outras disciplinas, afinal, ela possui uma linguagem própria.

Aproveitamos para ressaltar a diferença entre língua e linguagem. A língua é “[...] um sistema de signos compartilhado por uma comunidade linguística comum. A fala ou os sinais são expressões de diferentes línguas. A língua é um fato social, ou seja, um sistema coletivo de uma determinada comunidade linguística.” (QUADROS, 1997, p. 7-8). Enquanto que a linguagem

[...] é utilizada num sentido mais abstrato do que língua, ou seja, refere-se ao conhecimento interno dos falantes-ouvintes de uma língua. Também pode ser entendida num sentido mais amplo, ou seja, incluindo qualquer tipo de manifestação de intenção comunicativa, como por exemplo, a linguagem animal e todas as formas que o próprio ser humano utiliza para comunicar e expressar idéias e sentimentos além da expressão linguística. (QUADROS, 1997, p. 8).

Acerca da linguagem matemática e sua relação com a língua portuguesa, há a necessidade de se explicar ao(à) aluno(a), de maneira cuidadosa, o significado dos termos específicos da referida ciência. Lorensatti (2009) apresenta um simples exemplo de como é difícil para o estudante compreender – caso não exista esse cuidado em apresentar – outro significado para uma palavra já conhecida, o significado na linguagem matemática. A autora afirma que

Ainda, muitas vezes, as palavras tomam significados distintos daqueles utilizados no cotidiano. Por exemplo, utiliza-se, com freqüência, nas aulas sobre frações, a frase reduzir ao mesmo denominador. Reduzir para a maioria das pessoas, no seu dia a dia, tem o significado de tornar menor. Se não for explicado o sentido dessas palavras em contexto de uso, dificilmente um aluno tomará reduzir como sendo converter ou trocar. (LORENSATTI, 2009, p. 91-92).

Ressaltamos que a autora não trata na sua abordagem a inclusão ou o(a) estudante surdo(a). Sua análise, geralmente, gira em torno da necessidade de diálogo entre a linguagem matemática e a língua portuguesa na resolução de problemas matemáticos. Ao, entretanto, aplicarmos essa situação na sala de aula de matemática no contexto com estudantes surdos(as), vê-se a complexidade aumentar, pois, o(a) professor(a) de matemática da sala regular utiliza a linguagem matemática, e o intérprete de Libras que a ouve em língua portuguesa – inclusive porque, devido à sua formação, geralmente, não domina a matemática nem sua linguagem –, realiza a interpretação da informação para a língua de sinais.

Numa investigação que trata da matemática no ensino às pessoas surdas, Silva e Pinto (2017) remetem a existência de um sinal em Libras para uma palavra do cotidiano, que, na linguagem matemática, tem outro sentido. Os autores trazem como exemplo o termo “peso”:

Por exemplo: a palavra peso tem um sentido usual, relacionado à massa contida em um corpo, e um sentido matemático, nas médias ponderadas. O ILS, ao traduzir o peso da média ponderada para os alunos surdos que acompanha, certamente o fará com o balançar de mãos alternadas com as palmas voltadas para cima, que é o gesto que indica peso no sentido de massa. Compromete-se aí a compreensão do conceito de média aritmética ponderada, que fica inconsistente. Não raramente, o desconhecimento do próprio intérprete acerca dos conceitos matemáticos inviabiliza que ele crie um sinal que represente o conceito matemático de peso. (SILVA; PINTO, 2017, p. 5).

Assim, além de ter o sinal para o termo, é necessário o cuidado de se verificar se determinado sinal está adequado ao sentido deste termo no contexto específico da matemática. Silva e Pinto (2017) esclarecem que o contato entre professor(a) e intérprete antes da aula poderia atenuar essa dificuldade. Nos casos em que há falta de sinal para algum termo específico, o trabalho conjunto entre ambos(as) poderia suprir essa falta, com a elaboração de um sinal provisório, com vistas ao ensino ao(à) estudante surdo(a). A cooperação do(a) professor(a) de matemática possibilitaria, assim, que o sinal fosse desenvolvido de forma matematicamente consistente.

Percebe-se, então, que há formas de possibilitar ao aluno uma interpretação mais coerente com a linguagem matemática. Existem formas dessa matemática que se quer universal chegar aos(às) alunos(as) surdos(as) com o sentido esperado, não obstante a tantas mediações linguísticas ou interpretações percorridas.  Para que isso ocorra, é necessário, entretanto, que haja uma boa relação entre os(as) profissionais envolvidos(as) no processo. Nisso, as subjetivações trazidas pelas crenças relacionadas à matemática aparecem imbricadas às subjetivações do(a) docente e às do próprio intérprete nessas situações.

Com base em Gonçalves (2006), pode-se afirmar que todo(a) aluno(a) tem condições de aprender matemática, entretanto, a aprendizagem vai depender de vários fatores dentre os quais a forma como a disciplina é apresentada pelo(a) professor(a), a sua capacidade de motivar o(a) aluno(a) para o ato de aprender e a disposição deste(a) aluno(a) em aprender. No caso do(a) estudante surdo(a) na escola regular, encontramos outros fatores, como a interpretação realizada e elementos que podemos encontrar numa contribuição de Alberton (2015) ao afirmar:

Entendo que a cultura e as identidades surdas são questões presentes na Educação Matemática para surdos, tanto pelo reconhecimento, uso e valorização da Língua Brasileira de Sinais como primeira língua dos surdos, como através de práticas visuais para que o aluno surdo construa os conhecimentos matemáticos (ALBERTON, 2015, p. 96 e 97, grifos nossos).

Assim, professores e intérpretes precisam estar atentos a estes fatores que podem influenciar na aprendizagem do discente surdo, para que contribuam ao máximo com esse processo. Mais uma vez, a parceria se faz extremamente necessária, uma vez que, geralmente é o intérprete que possui conhecimentos acerca das especificidades do aluno surdo, podendo repassar informações para o professor, como a necessidade de desenvolver práticas visuais.

Resultados e discussão

Elencamos neste tópico alguns dos resultados obtidos através das observações de aulas e entrevistas realizadas com intérpretes de Libras.

A matemática, a falta de sinais e os(as) intérpretes

Tivemos algumas considerações nas entrevistas em relação à matemática. Algumas dizem respeito à falta de sinais específicos para a disciplina. A esse respeito, relatou-se que

Cada aula é um assunto diferente. A gente sempre tá pesquisando, procurando, procurando sinais, sinais não tem. E, assim, a gente tem uma certa dificuldade, por conta que os sinais que a gente pesquisa e encontra não são da região, são de outras. Aí, às vezes, os surdos têm aquele sinal próprio e a gente repassa outro pra eles. Aí, muitas vezes, eles não... não aceitam. Mas, assim, sempre insistindo, eles têm uma aceitação boa. (Informação verbal, intérprete I2).

Perguntamo-nos, então: por que pesquisar o sinal de um termo que o(a) surdo(a) já conhece? Outra controvérsia: o(a) intérprete diz respeito ao uso de certos sinais que não são a priori bem aceitos, mas que, através de insistência, os(as) discentes surdos(as) acabam por aceitá-lo.

Em relação à presença de contrassensos nesse discurso, é possível que tenham emergido quando o intérprete I2, ao tentar agradar a entrevistadora e analista, encerra o conflito discursivo por intermédio do uso de mecanismos de defesa, tais como a racionalização (justificativa) e uma negação da dificuldade inicialmente relatada. Segundo Orlandi (2015, p. 70), “o discurso é uma dispersão de textos e o texto é uma dispersão do sujeito. O sujeito se subjetiva de maneiras diferentes ao longo de um texto. Há pontos de subjetivação ao longo de toda a textualidade.” Dito de outro modo, o sujeito – ou a pessoa – se subjetiva através do discurso, por intermédio das posições que assume ao falar na interlocução com outrem e, consequentemente, das práticas que derivam desses movimentos. Sobre a falta de sinais, foi dito que

Quando ele [o professor] tá entrando em algum assunto que eu não lembro o sinal ou eu não sei como é, eu geralmente pergunto a ele o que seria, o que é, pra que eu veja em si a questão do conceito, qual o conceito, ou eu pesquiso também pra ver o sinal, porque a gente não tem muito sinal daqui da região. (Informação verbal, intérprete I3 - grifos nossos).

Diferentemente desta, o intérprete I6, quando perguntado se já tinha precisado usar um sinal de termo específico da matemática e não o encontrou, se já tinha dialogado com o professor para criar um sinal provisório, o mesmo respondeu:

Rapaz, já aconteceu. Aí eu uso muito classificador. Eu vejo como é que eu posso colocar aquele sinal que tenha o mesmo sentido. Aí eu faço o sinal. Compreenderam esse sinal? Aí compreendeu. Aí quando o professor dá a explicação, aí eu volto: que sinal é esse? Aí se eles realmente compreenderam, aí eles vão me explicar. Aí é muito através do classificador. (Informação verbal, intérprete I6 - grifos nossos).

Nessa fala, o depoente relata que se aproveita de uma ferramenta linguística pertencente à Libras conhecida como “classificador”1. De fato, é possível utilizar um classificador em contextos em que não há sinal. No entanto, percebemos que na consulta ao(à) professor(a), o diálogo com o(a) docente não entrou em discussão.  Entendemos, portanto, que falta o diálogo entre ambos, de modo a se ter a certeza de que o classificador utilizado esteja de acordo com o sentido ou o conceito matemático para aquele determinado termo.

Como constataram A. Júnior e Geller (2012), os classificadores carregam dois elementos ou duas entidades linguísticas, a saber: o significado e o significante. O significado se refere ao conceito; o significante, à imagem acústica. Assim, no caso em consideração, o professor contribuiria com o conhecimento do significado.

Com os casos citados, pensamos nas subjetividades que atravessam o movimento de se procurar o(a) professor(a) de matemática, conversar sobre a falta de sinal específico, e juntos tentarmos chegar à compreensão do conceito matemático – o significado –, e da possível imagem acústica – o significante –, para elaboração do melhor sinal provisório possível.

Sobre o necessário diálogo entre o(a) intérprete de Libras e o(a) professor(a) de matemática no contexto de utilização de um sinal provisório, Silva e Pinto (2017) explicam ser preciso que ambos(as) conversem sobre as especificidades em jogo, tanto da matemática quanto de Libras, para que o sinal a ser convencionado para uso em sala represente o significado real do termo no contexto matemático, estabelecendo-se assim situação favorável para que o(a) estudante surdo(a) não venha a confundi-lo com outro conceito que aquela palavra possa ter, a exemplo do termo “peso”, visto anteriormente.

Como podemos perceber, nas relações entre os profissionais e a matemática, os devires são ininterruptos; os afetos continuam em trânsito, assim como o fluxo contínuo e intenso de desejos que são atualizados através de deslocamentos. Desse modo, tão dinâmicos quanto as relações das quais participam, são as posições discursivo-práticas que se estabelecem, bem como os próprios sujeitos em subjetivações. Não há nada estagnado, portanto.

Fidelidade da mensagem x subjetividades emergentes

Quando perguntado a determinado entrevistado como ele se percebia, como considerava a própria atuação nas aulas de matemática, obteve-se a seguinte resposta: “Boa. Assim, procuro me esforçar o máximo pra passar pra o surdo o que eu entendo, e também o que o professor repassa pra gente”. (Informação verbal, intérprete I2). Percebemos que nessa fala há uma diferença daquilo que se entende em relação ao que fora transmitido pelo(a) docente, isto é, o que, talvez, o (a) docente tenha efetivamente repassado. Acrescentou o entrevistado: “[...] procuro me esforçar o máximo pra passar pra o surdo o que eu entendo.”

Não utilizamos o termo “fidelidade” no tópico por acaso. O código de ética do intérprete, como vimos anteriormente, utiliza esse termo, em seu art. 3º, ao afirmar que “[...] o intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor da sua habilidade, sempre transmitindo o pensamento, a intenção e o espírito do palestrante. Ele deve lembrar dos limites de sua função e não ir além da responsabilidade.” (QUADROS, 2004, p. 32, grifo nosso).

Tendo em vistas o princípio do código de ética do intérprete e a ideia da fidelidade então prevista e exigida, pensamos, a partir da AD e da perspectiva pós-estruturalista, que estamos diante de uma ideia controversa ou, dito de outro modo, de um contrassenso. Sob essa perspectiva, entende-se que o referido código de ética não considera que a língua seja constituída por signos, cuja maior característica é a arbitrariedade, ou seja, por ser composta de significantes e significados dinâmicos, não podendo ter como qualidade a transparência e a fidedignidade.

Orlandi (2015) revela-nos, a partir da perspectiva da Análise do Discurso (AD) e do pós-estruturalismo – teorias sobre as quais nos ancoramos – a língua compreendida como uma emaranhada ligação entre os universos psicanalítico, cultural e político. Nesse sentido, expõe-se a forma como os discursos materializam o complexo jogo dos híbridos.

Os discursos, segundo Orlandi (2015) estão na fronteira entre o individual e o coletivo; entre o idiossincrático e o cultural; entre os sistemas de valores institucionalizados socialmente, aos quais somos convidados a nos engajar, e nossos singulares trajetos; entre as inconsciências ideológico-históricas e as inconsciências singulares às nossas subjetividades. A língua e seus discursos expressam assim a errância, os percursos, as paradas, as dinâmicas e as provisoriedades dos significados.

Como considera Orlandi (2015), a língua tem como peculiaridade a opacidade que, por trazer consigo ideologias e outras inconsciências, é passível de erros ou equívocos. Questionamo-nos, portanto, como se crê legítimo emitir esse tipo de exigência ao(à) intérprete frente ao fato de que é impossível interpretar-se fielmente um signo (palavra ou sinal) em qualquer língua e ainda transmitir com precisão o pensamento, a intenção e o espírito do palestrante. Como podemos ver, o código de ética infere que as interpretações devem ser inequívocas, transmitindo além do pensamento do(a) docente sua intenção e espírito.

Na prática, inclusive, percebemos nas falas dos intérpretes que eles mencionam “interpretar” e não poderiam fazer diferente com o que se compreende a partir do que é transmitido pelo(a) docente. Na realidade, o(a) intérprete comunica ao(à) aluno(a) o que é compreendido de uma linguagem – a matemática – através da Libras que é, por sua vez, uma língua com todas as suas especificidades.

O próprio termo “intérprete”, relacionado a “interpretar”, remete à atribuição de um sentido que não é absoluto. Não há, portanto, como intérpretes se eximirem nem se absterem dessa qualidade que é constituinte da língua; não há como fazê-lo estritamente ou fidedignamente sem caírem em suas armadilhas, sem incorrerem em equívocos.

Mediante a etimologia da palavra “intérprete”, segundo o significado do antepositivo, do latim interpres, ӗtis, verifica-se os sinônimos: medianeiro, intermediário, ajudante, assistente, agente, mensageiro, negociante e enviado (INTERPRES, 2020). A partir desta constatação, vê-se o caráter compreensivo do termo “intérprete”, o qual se incorpora por oposição à ideia de fidelidade. Além da língua e de sua opacidade, a etimologia da palavra “intérprete” remete à mediação, intermediação e consequente negociação de sentidos, o que é implícito a toda e qualquer relação entre pessoas. Em meio a tais incoerências conceituais, entende-se mais uma vez, que processos de subjetivação perpassam o ato de interpretar, ainda mais em espaços e tempos dedicados ao ensino da matemática, considerando-se, inclusive, que a matemática é ela mesma vista como um tipo de linguagem de caráter universal.

Por essas razões, de modo específico no ensino da matemática, as subjetividades dos envolvidos nesse processo entram em cena e se entrelaçam. A transmissão dos referidos conteúdos poderia ser reforçada e facilitada pela inserção do docente na comunicação da Libras. Desse modo, ao invés de uma relação, caminharíamos para uma parceria em que ambos seriam subjetivados e subjetivariam com o propósito mesmo de possibilitar ao(à) estudante surdo(a) o acesso ao conteúdo matemático em sua complexidade.

Saberes, poderes e subjetivações na relação docente/intérprete

Ao longo das entrevistas, chamou-nos a atenção o fato que os(as) intérpretes que relataram experiências negativas em sala com docentes mencionaram que isso tinha acontecido em anos anteriores ao da realização da pesquisa. Todos(as), sem exceção, informaram que mantiveram boa relação com os(as) docentes de matemática em sala de aula no corrente ano.

Algumas das falas dos(as) intérpretes, por exemplo, que atestariam essa relação positiva com os(as) professores(as) de matemática são “[...] referente ao professor que me acompanha em sala de aula, ele é super de boa. Ele, quando um aluno não compreende, ele para a aula, deixa eu interpretar, tirar a dúvida do surdo. Ele dá a explicação e, assim, o surdo vai acompanhando.” (Informação verbal, intérprete I6).

Em outro momento da entrevista, referindo-se ao mesmo professor de matemática, este mesmo intérprete comentou que se tratava de uma afinidade bastante consolidada. Nessa mesma direção, afirmou-se: “[...] só, como eu disse, foi o ano passado. Mas, esse ano, tanto professor de matemática, português, história, todos são bem flexíveis ao assunto da inclusão aqui.” (Informação verbal, intérprete I2).

Salientamos que não foi questionado aos(às) intérpretes como se dá a atuação docente. Entretanto, os depoimentos vieram como respostas às perguntas sobre a relação profissional, tais quais: i) Como você avalia seu relacionamento com o professor de matemática em sala de aula?; ii) Como você se sente em relação à sua atuação nas aulas de matemática?; e iii) Há alguma dificuldade nessa relação profissional? Nesse bojo, pode-se apontar dificuldades ocorridas no ano anterior, conforme se constata no depoimento seguinte:

[...] porque até então, a professora era muito rígida. Teve lá um certo ponto onde eu tava explicando de uma forma, e ela disse: não, você tem que explicar dessa forma que eu tô ensinando, que ela vai aprender. Aí eu até disse: não, mas ela achou melhor dessa forma. Mas ela disse: não, [...] só faça, o que eu tô falando. Só interprete o que eu tô falando, porque ela vai entender. Não quis entrar em atrito. Tudo bem, concordei com ela, e assim, terminei o ano dessa forma. (Informação verbal, intérprete I2).

Percebe-se, portanto, que, não obstante, mecanismos de defesa subjetivos e/ou afetivos, tais como determinadas racionalizações: “Não quis entrar em atrito, tudo bem, concordei com ela”, e discursividades que, de maneira forjada, apontam para a harmonia. Há sim conflitos, tensões, assimetrias entre saberes e poderes na situação descrita.

São, portanto, heterogêneas relações de poder, intensidades, saberes e afetos e, consequentemente, de subjetivação que se revelam em ditos e não-ditos e se alternam, se sucedem histórica, ininterrupta e localmente entre docentes e intérpretes em sala da aula. Poderes que, segundo Foucault (2010), são inerentes a todas as relações e produzidos pelos saberes, seu grande capital.

É o que nos comunica o que fora dito pela docente, em acordo com o depoimento do intérprete I2: “só faça, o que eu tô falando. Só interprete o que eu tô falando, porque ela vai entender”. Não há, portanto, segundo Foucault (2010), relações desprovidas de poder, nem pessoas dele destituídas, pois, em gangorra, ou seja, de maneira instável, o poder se desloca continuamente territorializando-se, desterritorializando-se e reterritorializando-se, não podendo ser apropriado, não podendo se tornar propriedade de alguém.

Diz-nos, neste sentido, Foucault (2010, p. 30) que “[...] não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.” Os poderes geram saberes que, por sua vez, produzem os poderes e a docente acima referida sabe e se utiliza intuitivamente ou não desse capital. Saberes produzem poderes que criam dispositivos que geram outros saberes, afetos, desejos. Saberes, poderes, afetos que agenciam continuamente os devires históricos e, consequentemente, os processos de subjetivação de ambos(as), na relação fluida intérprete/docente.

O saber que instaura o devir professor(a) agencia suas posições discursivas e produz desejos, práticas e poderes em sala de aula. Essa dinâmica faz com que, nesse diálogo com o(a) intérprete, ele ou ela denote e exerça esta autoridade que, historicamente, não é “dada”, mas construída culturalmente, inclusive dentro e fora desta relação. A partir, portanto, dos efeitos produzidos pelos deslocamentos e posições da professora, de seu discurso que surgiu como um enunciado, o intérprete sentiu-se, entretanto, agenciado, o que pôde levar “[...] a questionar e a produzir sentidos àquela experiência que emergiu ao acaso e que, sem consulta, desorganizou um modo de viver até então conhecido.” (MANSANO, 2009, p. 115).

Os efeitos ou sentidos então atribuídos e repercutidos, subjetivadores a ambos propiciam, pela própria arbitrariedade dos signos, desterritorializações, reterritorializações, territorializações de afetos, saberes e poderes. Por esse motivo, foram questionados pelo intérprete. “Essa produção de subjetividades, da qual o sujeito é um efeito provisório, mantém-se em aberto, uma vez que cada um ao mesmo tempo em que acolhe os componentes de subjetivação em circulação, também os emite.” (MANSANO, 2009, p. 111).

O discurso-prática da professora, em linhas de força, afetou o corpo e a subjetividade do intérprete, assim como sua resposta, recursivamente, interferiu ou repercutiu na professora, de modo que, apesar de não concordar, o intérprete acatou a autoridade e respondeu de acordo com o que fora solicitado. A respeito de tal argumentação, esclarece-se que

Ele [o sujeito] é construído à medida que experiencia a ação das forças que circulam no fora, e que, por diferentes enfrentamentos, afetam o seu corpo e passam, em parte, a circular também do lado de dentro. Sob essa ótica, a produção do sujeito envolve um movimento que não conhece sossego, pois ele não está dado de uma vez por todas. (MANSANO, 2009, p. 115 - grifo nosso).

Intérprete e docente, enquanto pessoas, se informam por intermédio de suas singularidades, inconsciências, afetos, desejos e intensidades. Dessa forma, agenciam e constroem instável e reciprocamente suas relações de poder, seus devires e provisórios modos de subjetivação.

Por ser uma dinâmica de mutualidade em afetos, saberes e poderes, a relação intérprete-docente depende, muitas vezes, da tomada de consciência das evidências ou inconsciências singulares e/ou historicamente dadas entre ambos(as), assim como da adoção de linhas de fuga que incluam, de fato, a pessoa surda com o intuito de fomentar um contexto favorável ao seu aprendizado.

Isso significa diálogo e, como foi dito: “[...] são poucos os que permitem isso, esse diálogo entre a gente, de reconhecer que cada um tem sua parte no aprendizado do aluno. Mas, graças a Deus na matemática, eu tô bem satisfeita.” (Informação verbal). Em outra fala, relatou-se a satisfação na relação com o docente de matemática: “[...] ele me dá um espaço, diferente de outras disciplinas.” (Informação verbal, intérprete I7).

Podemos dizer, portanto, que não há uma regra e que não é crível apontar uma homogeneidade em qualquer que seja a direção frente à incessante produção de heterogeneidades que constitui as subjetividades, singularidades peculiares a toda e qualquer pessoa – intérprete, docente ou discente surdo(a) –, todavia, é esta mesma heterogeneidade que permite que as relações aconteçam. Afinal,

Essa produção de subjetividades, da qual o sujeito é um efeito provisório, mantém-se em aberto uma vez que cada um, ao mesmo tempo em que acolhe os componentes de subjetivação em circulação, também os emite, fazendo dessas trocas uma construção coletiva viva. (MANSANO, 2009, p. 111).

Dessa forma, vão sendo, portanto, construídas relações entre os(as) profissionais, permeadas por diálogos que agem subjetivando, através da alternância das relações de poder que são traçadas. Nisso o sujeito ora é subjetivo, ora é subjetivado.

Conclusão

O presente artigo apresentou uma análise das subjetividades presentes nas aulas de matemática, em salas com estudantes surdos(as) e, consequentemente, com atuação de intérpretes de Libras. Tendo em vista os objetivos traçados, realizamos entrevistas com intérpretes de Libras. E, sob a égide da Análise de Discurso (AD), foi possível, portanto, perceber os devires, as historicidades, os afetos envolvidos e as produções de desejos nas quais estão envoltos(as) os(as) intérpretes em sua atuação nas aulas de matemática.

Por meio do convívio temporário com os(as) intérpretes em sala de aula e em momentos outros do cotidiano da escola, pudemos perceber seus devires: o ininterrupto moldar das relações e, consequentemente, subjetivações contínuas entre intérpretes de Libras e docentes de matemática que conferiam um(a) ao(à) outro(a), reciprocamente, o colorido das historicidade e provisoriedades.

Compreendemos que, o trabalho dos(as) intérpretes não é neutro, por se tratar de uma atuação entre línguas e culturas diferentes, no sentido de que subjetividades perpassam sua atuação e precisam ser mediadas por ele ou por ela, além das suas próprias, que também emergem nesse contexto.

Dependendo, portanto, das subjetividades que em sua incompletude constituem provisoriamente intérpretes e docentes, ou seja, seus devires, e da compreensão que eles ou elas têm sobre o papel a ser desempenhado pelo intérprete, a atuação desse profissional pode tomar rumos, os mais distintos, sendo que haverá ou não espaço para relações suficientemente boas que venham a favorecer o acolhimento e o ensino do(a) discente surdo(a).

Referências

ALBERTON, B. F. Discursos curriculares sobre educação matemática para surdos. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Faculdade de Educação, Porto Alegre. 2015.

ANTONIO, L. C. O; MOTA, P. R; KELMA, C. A. A formação do intérprete educacional e sua atuação em sala de aula. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v.10, n. 3, p. 1032–1051, 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/8105. Acesso em: 24 jun. 2021

ARNOLDO JÚNIOR, H; GELLER, M. Emancipação de sinais em Libras: um estudo acerca dos classificadores matemáticos. Rev. Bras. Trad. Vis., Recife, v. 11, n. 11, 2012. Disponível em: http://audiodescriptionworldwide.com/associados-da-inclusao/rbtv/emancipacao-de-sinais-em-libras-um-estudo-acerca-dos-classificadores-matematicos. Acesso em: nov. 2019.

BRASIL, Decreto n. 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Brasília, DF: Casa Civil, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm Acesso em: 24 jun. 2021.

BRASIL, Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Brasília, DF: Casa Civil, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm Acesso em: 24 jun. 2021.

BRASIL. Lei n. 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão do tradutor e intérprete de Libras. Brasília, DF: Casa Civil, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12319.htm. Acesso em: nov. 2018.

DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Trad. de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2001. Disponível em: http://www.grupodec.net.br/wp-content/uploads/2015/10/DELEUZE_Empirismo_ e_Subjetividade.pdf. Acesso em: nov. 2019.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Editora Loyola, 2010.

GONÇALVES, T. O. A constituição do formador de professores de matemática: a prática formadora. Belém: Cejup, 2006. Coleção Pesquisa em Educação em Ciências e Matemática.

INTERPRES, ӗtis. In: DICIONÁRIO latim-português online. [S.l.]: Glosbe, 2019. Disponível em: https://pt.glosbe.com/pt/la/intérprete. Acesso em: dez. 2020.

LORENSATTI, E. J. C. Linguagem matemática e língua portuguesa: diálogo necessário na resolução de problemas matemáticos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 89-99, maio-ago., 2009.

MANSANO, S. R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Rev. Psic. da UNESP, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 110-117, 2009.

MASSI, F. As estratégias textuais de Clifford Geertz. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 169-172, 1992.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Pontes. 2015.

PIZZIO, A. L. et al. Língua Brasileira de Sinais III. 2009. TCC (Licenciatura em Letras-Libras) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em: http://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacao Especifica/linguaBrasileiraDeSinaisIII/assets/263/TEXTO_BASE_-_DEFINITIVO_-_2010.pdf. Acesso em: nov. 2019.

QUADROS, R. M. O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e língua portuguesa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997

QUADROS, R. M. O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e língua portuguesa. Brasília: MEC/SEESP, 2004.

ROSA, A. S. Tradutor ou Professor? Reflexão preliminar sobre o papel do intérprete de língua de sinais na inclusão do aluno surdo. Ponto de Vista, Florianópolis, n. 8, p. 75-95, 2006. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/pontodevista/article/view/1106/904. Acesso em: 20 jun. 2021

ROSA, A. S. A alteridade como fundamento ético para a tradução e interpretação da língua de sinais na sala de aula. 2016. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2016.

SCHEFER, R. C. A. Considerações de uma Intérprete de Libras no contexto escolar. 2018. TCC (Bacharelado em Letras-Libras) – Universidade Federal de Santa Catarina, Joinville. 2018. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/ 123456789/188445. Acesso em: out. 2019.

SILVA, J. A; PINTO, G. M. S. As ações do professor de matemática e do intérprete educacional de Libras junto ao aluno surdo. Rev. Educ. Pub., Rio de Janeiro, v. 17, n. 8, 2017. Disponível em: http://educacaopublica.cederj.edu.br/revista/artigos/as-acoes-do-professor-de-matematica-e-do-interprete-educacional-de-libras-junto-ao-aluno-surdo-incluido-na-sala-de-aula-regular. Acesso em: dez. 2018.

Notas

1 Classificador, na Libras, de acordo com Pizzio, Campello, Rezende e Quadros (2009, p. 14), é um tipo de morfema, utilizado através das configurações de mãos que podem ser afixadas a um morfema lexical (sinal) para mencionar a classe a que pertence o referente desse sinal, para descrevê-lo quanto à forma e tamanho, ou para descrever a maneira como esse referente se comporta na ação verbal (semântico).

 

 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)