http://dx.doi.org/10.5902/1984686X63445
Jogos matemáticos: análise de propostas inclusivas para potencializar o cálculo mental
Mathematical games: analysis of inclusive proposals to enhance mental calculation
Juegos matemáticos: análisis de propuestas inclusivas para potenciar el cálculo mental
Amanda Pasinato Cruz
Graduada pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
E-mail: amandapasinatocruz@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5562-8389
Maria Lucia Panossian
Professora doutora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
E-mail: mlpanossian@utfpr.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5847-4485
Recebido em 06 de dezembro de 2020
Aprovado em 09 de abril de 2021
Publicado em 27 de maio de 2021
RESUMO
Este artigo discute sobre a formação do pensamento matemático em um estudante com deficiência visual, procurando reconhecer condições de aprendizado de conteúdos matemáticos específicos por meio de jogos. Tem por objetivo apresentar os resultados parciais da pesquisa que analisou o desenvolvimento do cálculo mental de um estudante cego, na utilização de operações básicas aritméticas, recorrendo a jogos adaptados e desenvolvidos na perspectiva do Desenho Universal para a Aprendizagem. A fundamentação teórica deste artigo apresenta os princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem, uma breve discussão sobre os jogos como instrumento de ensino dentro de sala de aula, além de trazer a compreensão adotada sobre o cálculo mental e a sua importância. Esta pesquisa, de caráter qualitativo, pretende expor a adaptação/criação de dois jogos, analisando-os como possíveis potencializadores de aprendizagem em relação ao cálculo mental para todos os estudantes, inclusive para o discente cego participante, o que vai ao encontro da principal premissa do Desenho Universal para a Aprendizagem, a possibilidade de aprendizagem e desenvolvimento de todos com equiparação de oportunidades. A partir da pesquisa realizada, notaram-se indícios do desenvolvimento do cálculo mental do estudante foco, potencializado a partir dos jogos, assim como a necessidade de continuidade de estudos e pesquisas, dada a dificuldade de generalização de tais resultados.
Palavras-chave: Desenho Universal para a Aprendizagem; Cálculo Mental; Jogos.
ABSTRACT
This article discusses the formation of mathematical thinking in a visually impaired student, searching to recognize conditions for learning specific mathematical content through games. They aim to present the partial results of the research that analyzed the development of the mental calculation of a blind student, in the use of basic arithmetic operations, using games adapted and developed in the perspective of Universal Design for Learning. The theoretical basis of this article, presents the principles of Universal Design for Learning, a brief discussion about games as an instrument of teaching inside the classroom, in addition to bringing the understanding adopted about mental calculation and its importance. This qualitative research aims to expose the adaptation/creation of two games, analyzing them as possible learning enhancers in relation to mental calculation for all students, including the participating blind student, which meets the main premise Universal Design for Learning, the possibility of learning and developing everyone with equal opportunities. From the research carried out, there was evidence of the development of the mental calculation of the focus student, enhanced by the games, as well as the need for further studies and research, given the difficulty of generalizing such results.
Keywords: Universal Design for Learning; Mental Calculation; Games.
RESUMEN
Este artículo analiza la formación del pensamiento matemático en estudiantes con discapacidad visual, buscando reconocer las condiciones para el aprendizaje de contenidos matemáticos específicos a través de juegos. Pretenden presentar los resultados parciales de la investigación que analizó el desarrollo del cálculo mental de un estudiante ciego, en el uso de operaciones aritméticas básicas, utilizando juegos adaptados y desarrollados en la perspectiva del Diseño Universal para el Aprendizaje. La base teórica de este artículo, presenta los principios del Diseño Universal para el Aprendizaje, una breve discusión sobre los juegos como herramienta de enseñanza dentro del aula, además de traer la comprensión adoptada sobre el cálculo mental y su importancia. Esta investigación cualitativa tiene como objetivo exponer la adaptación/creación de dos juegos, analizándolos como posibles potenciadores del aprendizaje en relación al cálculo mental para todos los estudiantes, incluido el alumno ciego participante, lo que va en contra de la premisa principal Diseño Universal para el Aprendizaje, la posibilidad de aprender y desarrollar a todos en igualdad de oportunidades. A partir de la investigación realizada, se evidenció el desarrollo del cálculo mental del alumno focalizado, potenciado por los juegos, así como la necesidad de profundizar los estudios e investigaciones, dada la dificultad de generalizar tales resultados.
Palabras clave: Diseño Universal para el Aprendizaje; Cálculo Mental; Juegos.
Introdução
Inclusão é um termo “que expressa compromisso com a educação de cada sujeito, levando ao máximo seu potencial, desenvolvendo-o de maneira apropriada” (SILVA, MORAES, PERANZONI, 2009, p. 2). E implica em uma “reestruturação da escola, que deve ampliar as oportunidades de participação de todos, de forma a responder às necessidades educacionais de seus alunos” (SILVA, MORAES, PERANZONI, 2009, p. 2). Além disso, incluir pessoas com deficiência na escola possibilita o desenvolvimento de uma vida social mais saudável e as experiências cotidianas geradas dentro deste espaço podem definir a sua participação social. Sendo assim, “o sujeito necessita reconhecer-se enquanto pessoa, [mas] ele também necessita que os outros o reconheçam como sujeito ativo, o que somente ocorre [...] na convivência com outras pessoas” (SILVA, MORAES, PERANZONI, 2009, p. 5).
Frente a estas considerações, tem-se por objetivo neste texto apresentar as análises das potencialidades de desenvolvimento do cálculo mental, em um estudante com deficiência visual, ao utilizar jogos propostos na perspectiva do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA). Este artigo compõe parte da pesquisa submetida e aprovada1 pelo Comitê de Ética.
Desenho Universal para Aprendizagem, jogos e cálculo mental: compreensões teóricas
Neste capítulo serão apresentados os elementos teóricos que fundamentaram esta pesquisa: o Desenho Universal para a Aprendizagem, os jogos como instrumentos de ensino e discussões sobre o cálculo mental.
Com o foco de influenciar a inclusão e o convívio em sociedade, a escola tem o papel de criar estratégias que tornem isso possível. Para isso, pode-se considerar a concepção do Desenho Universal. Nesta visão, é pensado em um mundo para todos, considerando cada especificidade humana possível, mudando características arquitetônicas para dar acesso ao espaço físico a qualquer um, com a preocupação voltada à diversidade humana e não para um ser único e “padronizado” (KRANZ, 2011, p. 25). Mas para refletir sobre a diversidade humana, é preciso considerar as diferenças físicas, psicológicas, cognitivas etc. E é nesse momento que se nota a importância de adotar a compreensão do Desenho Universal para a Aprendizagem2 (DUA) (KRANZ, 2011). Este conceito discute como podem ser desenvolvidas ferramentas de ensino acessíveis a todos, independentemente de suas especificidades.
Neste sentido, a seguir serão apresentadas algumas sugestões, adaptadas a partir dos preceitos de Mauch e Kranz3 (2008, p. 98-99 apud KRANZ, 2011, p. 26), consideradas imprescindíveis para a produção de materiais didáticos que possibilitam a inclusão:
· Para educandos com deficiência visual, destacando a baixa visão, é preciso utilizar contrastes de cores nos materiais, conteúdo ampliado, além de relevos e texturas.
· Para estudantes cegos, é indispensável à utilização do braile e caso haja a necessidade de registro por parte do estudante, existe a necessidade de disponibilizar a reglete e punção. Em algumas ocasiões é preciso fazer a descrição oral de imagens.
· Quando utilizar “cartelas ou tabuleiros, os mesmos deverão ter um corte diagonal na lateral superior direita, indicando o posicionamento correto do material”.
· Optar por materiais de fácil manuseio e de tamanho grande, pois estes auxiliam estudantes com dificuldades motoras e com deficiência visual. Também é ideal a utilização de velcro e imãs para fixação em tabuleiros e cartelas.
· Materiais que garantam a durabilidade dos jogos, quanto ao manuseio e manutenção dos mesmos.
· Para discentes surdos os materiais devem ser confeccionados utilizando Libras (Língua Brasileira de Sinais).
Quando se confecciona um material didático é importante considerar todos os estudantes. “A aprendizagem [...] é favorecida pela possibilidade de que todos, na maior extensão possível, podem jogar juntos, utilizando-se do mesmo material do jogo”, não só o jogo, mas qualquer material pedagógico (KRANZ, 2011, p. 27). Partindo desses princípios, encontra-se a necessidade de repensar as estratégias metodológicas e curriculares propostas dentro de sala de acordo com a perspectiva da educação inclusiva. Em seguida, no Quadro 1, Kranz (2011, p. 28) faz sugestões de como devem ser pensadas as relações emergentes da sala de aula, a partir da perspectiva do DUA.
Quadro 1 - Princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA).
Uso equitativo |
Currículo equitativo: A Instrução usa um currículo único que é acessível a estudantes com habilidades muito diversas; o currículo não segrega alunos ou chama a atenção indevida às suas “diferenças”. O currículo é concebido para envolver todos os alunos. |
Flexibilidade de uso |
Currículo flexível: O currículo foi concebido para ser apresentado de maneira flexível para acomodar uma gama de habilidades e preferências individuais; é considerada a deficiência física e sensório-motora, bem como variadas preferências de ritmo de aprendizagem. |
Simples e intuitivo (óbvio) |
Instruções simples e intuitivas: A instrução é simples, no modo mais acessível aos alunos; a linguagem, os níveis de aprendizagem, e da complexidade da apresentação podem ser ajustadas; o progresso do aluno é monitorado em uma base contínua para redefinir objetivos e métodos de ensino, conforme necessário. |
Informação perceptível |
Vários meios de apresentação: O currículo oferece múltiplas formas de apresentação para ensinar aos alunos de forma a efetivamente alcançá-los, independentemente da capacidade sensorial, do nível de compreensão ou atenção; a apresentação pode ser alterada para atender padrões de reconhecimento de cada aluno. |
Tolerância ao erro (segurança) |
Currículo orientado para o sucesso: O professor incentiva o envolvimento com currículo por eliminar barreiras desnecessárias ao engajamento; o professor fornece ambiente de aprendizagem de apoio através da assistência contínua, aplicando os princípios do projeto curricular eficaz, se necessário. |
Mínimo esforço possível |
Adequado nível de esforço do aluno: O ambiente geral da sala de aula proporciona facilidade de acesso a materiais curriculares, promove conforto, motivação, e incentiva o engajamento do estudante, acomodando variados meios de resposta do alunado; a avaliação é contínua; a instrução pode mudar com base em resultados de avaliação. |
Tamanho e espaço para aproximação/ abordagem de uso |
Adequado ambiente de aprendizagem: Ambiente de sala de aula e organização de materiais curriculares permitem variações no acesso físico e cognitivo dos alunos, bem como as variações de métodos de ensino; o ambiente de sala de aula permite grupos de estudantes variados; espaço de sala de aula incentivada a aprendizagem. |
Fonte: Nunes e Kranz4, 2011 (apud KRANZ, 2011, p. 28-29).
A partir desses princípios, de acordo com Kranz (2011, p. 29), o Desenho Universal para a Aprendizagem possibilita a aprendizagem e desenvolvimento de todos, “com equiparação de oportunidades”.
Além da garantia de acessibilidade, considera-se que um plano de ensino elaborado com recursos didáticos precisa ser pensado com a intencionalidade de assegurar a apropriação de conceitos científicos. Neste sentido, o jogo pode ser considerado um instrumento de ensino.
O jogo para ensinar Matemática deve cumprir o papel de auxiliar no ensino do conteúdo, propiciar a aquisição de habilidades, permitir o desenvolvimento operatório do sujeito e, mais, estar perfeitamente localizado no processo que leva a criança do conhecimento primeiro ao conhecimento elaborado. (MOURA, 1992, p. 47)
Além disso, ao adotar os jogos em sala de aula, é importante compreender o sentido mais amplo do projeto pedagógico: humanizar o homem.
E fazer isto é intervir no processo educativo de forma que cada indivíduo possa desenvolver a capacidade de resolver problemas, isto é, que cada homem desenvolva a capacidade de compreender a situação-problema, estando apto a arquitetar um plano, executá-lo e desenvolver a avaliação crítica. Este é o projeto humano. (MOURA, 1992, p. 51)
Moura (1992, p. 47), ainda destaca que o “domínio do jogo exige certos níveis de estruturas mentais do sujeito que joga: quanto mais complexo o jogo, maior o número de variáveis que este possui”. Salientando que, segundo o mesmo autor, ao tratar o jogo como uma ação pedagógica, este será considerado eficaz se é posto em um momento certo e de acordo com a necessidade daquele que aprende, ou seja, se gera no educando um sentido em relação àquilo que está sendo exposto, ele precisa encontrar necessidade no que está sendo aprendido. Por fim, ressalta-se que só existe jogo quando o estudante possui a vontade de jogar, se ele consegue “entrar na brincadeira”.
Neste momento, é o professor que tem o papel de desenvolver uma dinâmica adequada e ter um objetivo bem estabelecido para que o jogo possa se tornar um instrumento de ensino da Matemática e, a partir disso, ele “passa a ter novas dimensões, e é isto que nos obriga a classificá-lo considerando o papel que pode desempenhar no processo de aprendizagem” (MOURA, 1992, p. 49).
Quando consideramos o jogo [um] instrumento de ensino, também é possível classificá-lo em dois grandes blocos: o jogo desencadeador de aprendizagem e o jogo de aplicação. Quem vai diferenciar estes dois tipos de jogo não é o brinquedo, não é o jogo, e sim a forma como ele será utilizado em sala de aula. (MOURA, 1992, p. 49)
Nesse sentido é imprescindível distinguir dentro deste instrumento determinadas estruturas como a “Compreensão do jogo; Estabelecimento de estratégia; Execução das jogadas; Avaliação do jogo” (MOURA, 1992, p. 51).
O jogo dentro de sala de aula pode gerar diversas discussões relacionadas à validação dos procedimentos ali realizados. Nesse momento, toma-se como estratégia dos jogadores, recorrer às regras do jogo em momentos de desacordos a fim de definir a legitimidade das ações e, como uma segunda opção, são utilizadas as referências dos conceitos matemáticos. Isso significa que o estudante está considerando o jogo como a ação principal da atividade e a matemática como segundo plano. Geralmente nesse momento, erros matemáticos são considerados “sem importância” e, diante disso, a criança manipula de qualquer maneira suas estratégias matemáticas dando enfoque apenas às regras ali determinadas. Assim, se faz necessária a mediação do professor que, por sua vez, deve ser cauteloso perante suas propostas de utilização de jogos, pois esses momentos necessitam de intervenções específicas e intencionadas. A ideia do “jogo pelo jogo” anda na contramão em toda a teoria e concepções das metodologias de ensino constituídas até o momento, por isso a importância da mediação do docente. As possibilidades ofertadas no jogo são ricas e não podem ser “simplesmente” dispensadas pelos jogadores.
Se a estrutura lúdica é concebida de forma tal que não permita mudanças pela criança, estas situações promotoras de aprendizagens matemática permanecem como elementos centrais do jogo, sobretudo quando a atividade é supervisionada por um educador. (MUNIZ, 2014, p. 112)
Além disso, de acordo com Vygotsky (1991), para que exista aprendizagem é necessária a interação com outros sujeitos, onde alguns precisam estar em estágio superior ao desenvolvimento da criança, o professor nesse contexto é o mediador do processo, pois é ele que pode validar as diversas ações cognitivas realizadas. Durante o processo de ensino ocorre a ação de internalização pelo sujeito que, na perspectiva de Vygotsky (2000, p. 67), está relacionado ao “movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento infantil [e este] não se realiza do individual para o socializado, mas do social para o individual”. Neste movimento se desenvolve a apropriação de conceitos e significações, mediados culturalmente. Assim, é possível dizer que a aprendizagem se dá através da “relação do sujeito com o meio físico e social, mediada por instrumentos e signos [...], que se processa [para] o seu desenvolvimento cognitivo” (MOURA, 2010, p. 208).
Os jogos considerados como instrumentos de ensino, se apresentam como elementos estimuladores dentro de sala de aula, podendo assumir finalidades novas e desenvolver habilidades diversas nos educandos. O jogo permite que o professor inove o ambiente escolar além de aguçar o lado criativo e desenvolver o processo de pensamento dos estudantes.
Exemplos de propostas que influenciam no desenvolvimento do pensamento matemático são os jogos que envolvem cálculos mentais. O “cálculo mental é um procedimento ágil, que favorece a autonomia, a partir do momento em que permite à criança ser ativa e criativa nas escolhas dos caminhos para chegar ao valor final” (ANANIAS, PESSOA, 2015, p. 39), isso porque existem diversas maneiras de calcular e a criança utiliza aquela que mais se adapta a ela, ou a determinada situação.
Desta forma, cada situação de cálculo mental se coloca como um problema em aberto, onde pode ser solucionada de diferentes maneiras, sendo necessário ao sujeito recorrer a procedimentos originais, construídos por ele mesmo, a fim de chegar ao resultado. A satisfação do sujeito frente à criação de suas próprias estratégias de cálculo mental, favorecem atitudes mais positivas frente à Matemática. (GRANDO, 2000, p. 47)
No sentido de proporcionar a inclusão do estudante com deficiência visual, desenvolveu-se um jogo matemático que influencia na apropriação de estratégias de cálculo mental utilizadas por ele (e os demais estudantes), de tal forma que ele pudesse jogar de forma autônoma.
Neste momento é necessário apresentar um panorama geral sobre o cálculo mental. Diversos autores argumentam sobre a importância de ensinar e exercitar o cálculo mental em sala de aula. Por exemplo, na perspectiva de Taton5 (1969 apud CARVALHO; PONTE, 2012, p. 361), o cálculo mental desenvolve nos estudantes a noção “de ordem e de lógica, reflexão e memória, contribuindo para a sua formação intelectual e fornecendo-lhes ferramentas para efetuarem cálculos simples” sem a ajuda de recursos escritos e, assim, esses estudantes estão sendo preparados para o dia a dia. Já Wolman6 (2006 apud CARVALHO; PONTE, 2012, p. 363-364), considera ideal que o trabalho com cálculo mental seja programado em longo prazo, no sentido em que seja possível desenvolver com os educandos tarefas que contemplem a aprendizagem de diversos conceitos em diferentes formas e contextos.
Faz parte do papel do docente o planejamento das aulas visando desenvolver novas possibilidades de apropriação dos conhecimentos escolares, no sentido de entender a existência de diferentes formas de memorização, por parte dos discentes, e utilizá-las a seu favor, além de apresentar as relações desses conteúdos com os demais, para que não se tornem apenas elementos soltos para cumprir um currículo “limitado”.
[Aprender a] calcular mentalmente envolve a mobilização de estratégias que permitam um cálculo rápido e eficiente. Heirdsfield7 (2011) apresenta quatro elementos fundamentais que estão na base do desenvolvimento de estratégias de cálculo mental pelos alunos: (i) conhecer a numeração e compreender a grandeza e valor dos números, (ii) o efeito das operações sobre os números, (iii) ter capacidade para fazer estimativas para verificar a razoabilidade do resultado, e (iv) conhecer um conjunto de factos numéricos que lhes permita calcular rapidamente e com precisão. (CARVALHO, PONTE, 2012, p. 75)
A criança cria estratégias distintas de acordo com a sua compreensão em relação às operações e das relações numéricas que lhe são familiares. E para esta habilidade ser mais bem desenvolvida, é importante que o professor use diferentes propostas à medida que seja possível desenvolver diferentes habilidades, conduzindo os estudantes a redução dos erros ao fazer cálculos de diversas maneiras.
“O algoritmo e o cálculo mental são importantes e devem ser desenvolvidos paralelamente, para que o raciocínio matemático ganhe a elasticidade necessária” (ANANIAS, PESSOA, 2015, p. 39). E quanto mais cedo se começa o trabalho com o cálculo mental, “melhor será a compreensão dos alunos sobre a constituição dos números e operações” (ANANIAS, PESSOA, 2015, p. 39).
Na teoria vigotskiana, por exemplo, a memória é caracterizada como uma função psíquica superior, ou seja, uma função caracterizadamente humana. Para “que estas funções sejam desenvolvidas é necessário que o sujeito se aproprie dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade” (ALMEIDA; ANTUNES, 2005, p. 1), considerando que a memória é definida como a “capacidade de conservação e reprodução de informações” (ALMEIDA; ANTUNES, 2005, p. 5). E por se tratar de uma característica humana, a memória influencia no desenvolvimento do indivíduo, pois o homem:
começa a utilizar instrumentos para a realização de suas atividades. Essas ferramentas medeiam a relação do homem com o mundo material, permitindo a estes uma maior liberdade, pois podiam ir além do que lhes era permitido pelo aparato biológico. (ALMEIDA; ANTUNES, 2005, p. 5)
A partir da utilização de instrumentos, o homem conseguiu dominar voluntariamente a memória: “O desenvolvimento histórico da memória começa a partir do momento em que o homem, pela primeira vez, deixa de utilizar a memória como força natural e passa a dominá-la” (VYGOTSKY; LURIA8, 1930; 1996b, p. 114 apud ALMEIDA; ANTUNES, 2005, p. 5).
Tudo o que a humanidade enculturada lembra e conhece hoje em dia, toda a sua experiência acumulada em livros, vestígios, monumentos e manuscritos, toda essa imensa expansão da memória humana – condição necessária para o desenvolvimento histórico e cultural do homem – deve-se à memória externa baseada em signos. (VYGOTSKY; LURIA, 1930; 1996b, p. 120 apud ALMEIDA; ANTUNES, 2005, p. 6)
Assim, segundo a teoria, recordar se torna a busca de uma sequência lógica, “por meio da evocação de conteúdos memorizados [...] é possível ao indivíduo a elaboração de estratégias de ação, assim como permite ao sujeito que continue se lembrando dessas estratégias enquanto a ação é executada” (ALMEIDA; ANTUNES, 2005, p. 8).
O mais importante ao cálculo mental é a reflexão sobre o significado dos cálculos intermediários, facilitando a compreensão das regras que determinam os algoritmos do cálculo escrito. Desta forma, o constante exercício e a sistematização dos procedimentos de cálculo mental, podem vir a favorecer, ao longo do tempo, como estratégias de resolução e controle do cálculo escrito [...] as estratégias cognitivas desenvolvidas a partir da utilização do cálculo mental em situações práticas, favorecem a generalização numérica, a imaginação e a memorização. (GRANDO, 2000, p. 48)
Partindo dessas ideias, influenciar o desenvolvimento dos processos de cálculo mental dentro da escola, torna-se uma necessidade que se molda para a realidade do sujeito.
Esta pesquisa, de caráter qualitativo, visa apresentar possibilidades de desenvolvimento do cálculo mental de um estudante com deficiência visual, ao utilizar jogos na perspectiva do Desenho Universal para Aprendizagem. A pesquisa é concretizada com a apresentação de dois jogos, “O Produto É” e a “Torre do Cálculo”, sendo o primeiro adaptado e implementado em sala de aula regular e o segundo construído pela pesquisadora e desenvolvido na Sala de Recursos Multifuncionais do Tipo II (sala de recursos de acessibilidade para alunos com deficiência visual). Os dois jogos têm como finalidade potencializar o cálculo mental em todos os estudantes.
Para a realização da pesquisa em ambiente escolar, considerou-se necessário observar a dinâmica da aula e a relação do estudante com deficiência visual (DV) com os demais, para assim identificar aspectos a serem considerados ao adaptar e produzir os jogos. Essas observações foram realizadas na turma de nono ano do Ensino Fundamental, de uma escola pública da rede estadual localizada em Curitiba-PR, onde está incluído um estudante cego. A pesquisadora também manteve conversas extraclasses com a professora regente da turma. Desta forma, foi possível reconhecer os encaminhamentos metodológicos, a relação professor/aluno, bem como notar como se dá o processo de adaptação do conteúdo, material e situações feitas em sala de aula. Estes momentos foram utilizados somente para ambientação e organização do planejamento das aulas, de maneira que estes estivessem apropriados às condições em que os estudantes se encontravam. Após esta etapa inicial, foram agendados dois encontros, durante o segundo semestre de 2019, um realizado na sala regular com o jogo “O Produto É” e duração de 1 hora/aula, e outro na sala de recursos com o jogo “Torre do Cálculo”, com duração de 3 horas.
Os termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE), de consentimento para uso de imagem e som de voz (TCUISV) e de assentimento livre e esclarecido (TALE), aprovados pelo Comitê de Ética, foram entregues aos estudantes e responsáveis, sendo explicado que era de livre e espontânea vontade a participação na pesquisa. Para o estudante DV, o termo foi disponibilizado em txt (bloco de notas) para ser lido por meio do sistema DOSVOX. As regras dos dois jogos propostos foram lidas e explicadas para todos e disponibilizadas em braile para o estudante cego. Todo material proposto foi adaptado de acordo com as especificidades dos estudantes desta turma em particular. Durante as intervenções, foram utilizadas gravações de áudio, imagem e anotações em diários de bordo, a fim de captar as impressões e falas dos educandos.
Foram desenvolvidas perguntas orientadoras para o final das propostas, a fim de gerar debates acerca das situações encontradas no jogo, para então ter uma melhor compreensão do pensamento matemático desses estudantes, levando em consideração a relação entre a teoria e prática, a compatibilidade de seus argumentos e o quanto o estudante conseguiu aliar a atividade lúdica com o conteúdo escolar.
Para acompanhar as aulas de matemática na sala de aula regular, o estudante DV faz uso de um notebook e um teclado acoplado onde escreve tudo o que a professora dita durante as aulas. No seu computador, está instalado o programa DOSVOX, o que dá acessibilidade à utilização do equipamento. Este estudante assimila muito bem a aula de matemática, pois consegue responder diversos questionamentos e resolver exercícios de forma autônoma e correta, além de conseguir notas elevadas nas propostas avaliativas da matéria. A turma onde foi proposto o jogo “O Produto É”, possui em torno de 30 discentes e eles conversam muito entre si, transformando a sala em um lugar barulhento. O estudante DV faz um acompanhamento semanal, no período de contraturno, na Sala Multifuncional do Tipo II e é atendido individualmente durante três dias da semana no período da manhã, período este que foi desenvolvido o jogo “Torre do Cálculo”.
Os nomes dos estudantes e das professoras participantes são fictícios. O grupo analisado na sala regular era composto por cinco estudantes identificados como: Maicon (estudante cego), Kaio, Sandro, Isadora, Manuela e a professora Jaqueline (professora regente de matemática). Já na Sala Multifuncional do Tipo II estavam presentes: o Maicon, a professora Fabiane (professora da sala multifuncional no período matutino) e a pesquisadora. As ações do estudante cego foram priorizadas nas análises desta pesquisa.
Relações matemáticas apresentadas pelo estudante DV e indícios das potencialidades dos jogos
Os jogos produzidos serão apresentados nos itens a seguir. Eles influenciam na aprendizagem de todos os participantes, mas aqui será enfatizado o desenvolvimento do estudante com deficiência visual. Além disso, em vários momentos é importante destacar o papel da pesquisadora como professora e mediadora durante a intervenção para uma efetiva compreensão das regras e como organizadora da proposta.
O Produto É
O jogo “O Produto É” tem origem desconhecida e suas regras foram repassadas oralmente sem definições exatas. Para esta pesquisa foi desenvolvida uma série de regras organizadas, sendo estas adaptadas para uma turma específica. Ele é proposto para desenvolver o cálculo mental dos estudantes, associando a multiplicação de maneira prática e colaborativa.
É indicado para diversos anos escolares, desde que o estudante já tenha aprendido as propriedades da multiplicação. Seu objetivo enquanto atividade lúdica se centra em descobrir quais são as três cartas que estão nas mãos do banqueiro. De maneira simplificada, para jogar é preciso um banqueiro (jogador responsável pelas cartas) e os investidores (jogadores que fazem perguntas a fim de descobrir as cartas que estão nas mãos do banqueiro). Para tanto, são utilizadas sete cartas numeradas da seguinte forma: 2, 3, 4, 5, 7, 8 e 9. Estas cartas são adaptadas para deficientes visuais e possuem números/letras ampliados e em braile, como apresentado na Figura 1.
Figura 1 - Baralho com números/letras ampliados e em braile.
Fonte: Dados da pesquisa (2019).
O jogo funciona da seguinte forma, o banqueiro retira três cartas do monte e não mostra para os demais. Os investidores, por sua vez, precisam descobrir quais são essas três cartas dizendo apenas produtos possíveis entre a multiplicação de dois dos números. Quando um investidor diz, por exemplo, “O produto é 35?” o banqueiro só pode responder “Sim” se tiver em suas mãos as cartas 7 e 5, caso contrário deve dizer “Não”. Isso faz com que os jogadores pensem em todas as possibilidades de produtos dentro do jogo, além de trabalharem com a ideia de fatoração e decomposição desses números. Tendo assim, como intencionalidade principal potencializar as habilidades referentes à operação de multiplicação. Na medida em que os estudantes compreendem como descobrir as três cartas, o professor pode criar uma nova regra para que descubram o valor de quatro cartas.
No desenvolvimento do jogo “O Produto É”, na turma regular com 30 estudantes, participaram do grupo analisado cinco estudantes (Figura 2): Kaio, Sandro, Manuela, Isadora e Maicon (estudante cego).
Figura 2 - Grupo analisado com os cinco estudantes: Kaio, Sandro, Manuela, Isadora e Maicon.
Fonte: Dados da pesquisa (2019).
Foram lidas as regras para toda a turma e, então, a pesquisadora caminhou entre as mesas conversando com os grupos e tirando suas dúvidas.
Neste grupo, foi escolhida uma banqueira e os demais participantes começaram a dizer os produtos possíveis. A seguir estão descritas algumas falas que aconteceram durante o jogo, antes dos investidores descobrirem as duas primeiras cartas. Entre colchetes estão indicações da pesquisadora no sentido de esclarecer alguns acontecimentos.
Pesquisadora: Chute um valor de produto possível de duas cartas…você [Maicon] sabe os valores das cartas?
Maicon: Sim. 35 por exemplo? [5x7]
Pesquisadora: 35!? Então ó, 35 foi o chute do Maicon. Há a possibilidade de fazer um produto 35?
Isadora: Não [ela respondeu não, pois as cartas 7 e 5 não estavam em suas mãos].
Kaio: 32 [8x4].
[...]
Manuela: Eu posso chutar um número mais alto, tipo 57?
Pesquisadora: Você pode chutar os números que são possíveis. Vocês têm que prestar atenção na jogada dos outros para investir no número certo.
Sandro: 45 [9x5].
Isadora: Não.
Manuela: 49.
Pesquisadora: 49 é possível? Só tem uma carta de cada!
Isadora: 7 vezes 7 não tem!
Manuela: Não tô entendendo.
Além da falta de compreensão das regras do jogo, pois não é recorrente a utilização de propostas como estas na turma, nota-se a dificuldade de alguns estudantes em relação à própria tabuada.
O jogo continua até que um investidor aposta no número 21 e acerta. Então a banqueira comenta “Vai gente, quais são as duas cartas que estão na minha mão?”, eles ficam receosos e depois falam que são as cartas 3 e 7 e ela completa “Agora vocês têm que descobrir a outra carta!”.
Os estudantes videntes começaram a conversar entre si e só depois de certo tempo notaram que o colega DV não estava participando, então todos se voltaram para ele e Kaio explica o que havia acontecido “Ó Maicon, tem o 3 e o 7, eu falei 21, eu acertei o número aí tem… as cartas possíveis no jogo é 3 e 7. Daí agora a gente vai ter que descobrir qual é a outra carta que ela tem na mão.”. Esses momentos se mostram importantes, no sentido de que os demais começaram a se importar em deixar o Maicon a par de tudo o que acontecia no jogo. E, partindo da explicação do Kaio, começa-se a ter indícios que o grupo está começando a entender as regras do jogo e torna-se possível analisar a compreensão deles sobre as apostas, assim como se existem relações do cálculo mental em suas estratégias.
A pesquisadora explica que todos sabem que nas mãos da banqueira existem as cartas 3 e 7, porque é a única multiplicação possível e agora era preciso tentar descobrir qual o outro número que a banqueira tinha em mãos. A partir desse fato os estudantes precisavam entender que era certo apostar em números múltiplos de 3 ou 7.
O estudante DV perguntou se havia a carta número 4, respondido que sim, ele aposta no 8 e a banqueira explicou que ele tinha que falar um produto, Kaio interrompe e diz “Então! 4x2 é 8!”. A banqueira ficou incomodada, pois provavelmente estava se referindo ao fato que ele não usou a carta 3 ou 7, já descobertas, e isso não era uma boa estratégia para o jogo. Partindo disso podemos dizer que o Maicon não entendeu totalmente a dinâmica, mas apostou em números possíveis dentro do jogo. Apesar de a pesquisadora explicar estratégias que ajudassem na escolha dos números, pôde-se notar que alguns participantes não conseguiram relacionar essas dicas.
Na sequência, Maicon aposta no número 35 e a banqueira diz não. Neste momento é possível fazer uma análise sobre os processos do cálculo mental. A partir da suposição da existência do produto 21 e confirmação da banqueira, os jogadores deveriam compreender que nas mãos dela estavam as cartas 3 e 7 (a única possibilidade no jogo). Seguindo disso, o estudante cego pergunta se o produto é 35 (5x7), e têm-se duas opções, ele apenas chutou um número possível nas regras do jogo por entender que as cartas 5 e 7 fazem parte das possibilidades ou, na melhor das hipóteses, ele conseguiu compreender as regras ao tentar excluir todas as possibilidades de produtos geradas pela multiplicação com o número 7. Ele já tinha apostado nesse número, o que mostra que ele esqueceu a resposta e já poderia ter notado que o 5 não era uma opção. Nestas circunstâncias postas, não é possível falar qual hipótese era a verdadeira.
Ao final da jogada eles tiveram a seguinte conversa:
[...] Kaio: 24?
Isadora: 24!? Acertou! Então fala os números!
Kaio: 3, 7 e 8. [Todos comemoraram]
Por meio da fala de finalização da jogada, notamos que este investidor compreendeu que deveria escolher o número 3 (ou o 7) para apostar em produtos possíveis, a fim de conseguir ganhar o jogo.
O jogo continuou de maneira semelhante, a interação entre os participantes melhorou a cada rodada e suas estratégias também. A ideia matemática do jogo era o treino do cálculo mental, no caso trabalhar com os resultados da tabuada de maneira mais direta, a fim de que os estudantes pudessem alcançar certo automatismo nesses cálculos.
Durante esse momento de análise, foi perceptível a falta do exercício do cálculo mental por parte dos estudantes e considerou-se necessária a continuação da proposta pedagógica, com discussões sobre as propriedades de associatividade e comutatividade da multiplicação que aparecem no jogo, além da fatoração e decomposição dos números. No final da proposta a pesquisadora fez algumas perguntas sobre a proposta e, a partir das respostas dos educandos, percebeu-se que o jogo alcançou suas expectativas de potencializar o cálculo mental para todos.
A “Torre do cálculo” é um jogo que trabalha com as relações das quatro operações básicas da matemática (adição, subtração, multiplicação e divisão) e exercícios de cálculo mental, onde podem aparecer conceitos e propriedades como: ordem de precedência; expressões numéricas; comutatividade; números primos; números pares; múltiplos; entre outros. O objetivo da proposta, enquanto jogo, é que os estudantes façam as operações matemáticas indicadas a fim de obter a maior quantidade de pontos a cada etapa. Tem como intencionalidade pedagógica desenvolver habilidades do cálculo mental, na perspectiva de influenciar essa prática entre os estudantes de maneira inclusiva e colaborativa.
O jogo é proposto para educandos do Ensino Fundamental Anos Finais e aconselha-se que seja praticado em grupos de 3 a 4 jogadores. Além disso, o jogo e seu tabuleiro foram criados sob as premissas do DUA, objetivando ser mais acessível a todos.
Para este jogo foi necessário um baralho com as cartas adaptadas (Figura 1) do “Ás” (um) até o dez, duas cartas “Coringa”, o tabuleiro e as pedras com sinalizações/relevos e/ou cores distintas. Ele é estruturado da seguinte maneira: Cada jogador recebe três cartas; no primeiro nível, que possui quatro etapas, é preciso somar e/ou subtrair os valores das cartas de maneira que resultem em um número primo (números primos possíveis: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29); no segundo nível, que possui três etapas, é preciso subtrair e/ou multiplicar os valores para resultarem em um número par; já no último e terceiro nível, que possui duas etapas, os jogadores precisam somar e/ou dividir para encontrar um número múltiplo de cinco, como exemplificado no Quadro 2 e Figura 3.
Quadro 2 - Quadro explicativo das regras do jogo.
Nível |
Regra |
Quantidade de Etapas |
1º Nível |
Somar e/ou subtrair para encontrar um número primo. |
4 Etapas |
2º Nível |
Subtrair e/ou multiplicar para encontrar um número par. |
3 Etapas |
3º Nível |
Somar e/ou dividir para encontrar um número múltiplo de cinco. |
2 Etapas |
Fonte: Dados da pesquisa (2019).
Figura 3 - Tabuleiro com indicações dos níveis e etapas.
Fonte: Dados da pesquisa (2020).
A pontuação do jogador é determinada pela quantidade de operações que ele utiliza. Em qualquer nível, se saírem as cartas 2, 3 e 4, o jogador deve colocar duas pedras na etapa em que se encontra. Se receber pelo menos uma carta coringa ele ganhará a pontuação zero na etapa. Ganha o jogo quem tiver a maior pontuação ao final de todas as etapas. Para maiores esclarecimentos, exemplifica-se: O Jogador 1 no primeiro nível, retirou as cartas 1, 2 e 4 e somando-as (1+2+4) encontrou o número 7, que é número primo. Nestas condições o Jogador 1, ganhou um ponto na etapa por usar apenas a adição. Se o Jogador 1 fizesse o cálculo [(2-1)+4] teria encontrado o número 5, que também é um número primo, e conseguiria dois pontos por usar adição e subtração. Caso o jogador não consiga obedecer à regra do nível, pula a vez colocando a pedra que indica zero na etapa em que se encontra.
Participaram deste jogo o Maicon, a professora Fabiane e a pesquisadora. Enquanto era realizada a leitura das regras do jogo, iniciaram-se as rodadas na perspectiva de aprendê-las jogando. Para o primeiro nível, era preciso somar e/ou subtrair os números das cartas a fim de encontrar um número primo. Nesse primeiro momento, Maicon retirou as cartas 7, 8 e 9 e não conseguiu encontrar nenhum valor. De fato, já que temos quatro possibilidades de permutação entre as duas operações propostas, ou seja, era possível conseguir os seguintes resultados (7+8)+9=24; (7+8)-9=6; (7-8)-9=(-10); (7-8)+9=8, além da permutação entre os três números retirados que contabiliza vinte e quatro possibilidades que resultam nos mesmos valores, exceto pelos sinais. Depois de pensar nas possibilidades ele perguntou a pesquisadora se podia resultar em um número negativo, foi respondido que sim e explicado que os números primos também podem ser negativos se considerado o Conjunto dos Números Inteiros.
Em outra etapa, ele retirou as cartas 5, 6 e 7, tendo assim como possibilidades (5+6)+7=18; (5+6)-7=4; (5-6)-7=(-8); (5-6)+7=6 (exceto pelos sinais) e novamente não era possível encontrar um número primo. Durante os áudios gravados é possível perceber que o Maicon fazia as operações como se estivesse “caminhando” sob a reta numérica, por exemplo, ao fazer a operação (5-6) ele conta “5… 4, 3, 2, 1, 0, -1” e sem falar “(-1-7)” continua sua contagem “ -2, -3, -4, -5, -6...”., não é possível escutar ele contando até (-8), porém ele dá uma pausa e comenta “Não dá!”, vale destacar que na maioria das vezes essa contagem não era acompanhada nos dedos. A construção do contar mentalmente do estudante com deficiência visual, neste caso, é bem desenvolvida e complexa em comparação com estudantes videntes na mesma faixa etária, pois é comum recorrerem à contagem nos dedos, possivelmente ao fato de associar os números à quantidade de dedos. Não confiando no seu próprio potencial, ele pergunta à pesquisadora se estava certo e ela começa a citar algumas operações possíveis “5+6=11... 11+7=18, não... 5-6=1…” Maicon interrompe e diz “(-1)”, ela continua “(-1)+7=6... ou (-1)-7=(-8)” e disse que não dava certo.
Logo que se inicia a terceira etapa do primeiro nível, o estudante recebe as cartas 3, 8 e 10 e diz “Vou começar pelas minhas possibilidades: soma, soma, soma; soma, soma, subtração; subtração, subtração, subtração; soma, subtração, subtração...”. A proposta de utilizar as três cartas é que o estudante utilize o valor da primeira e faça uma operação com a segunda, com este resultado deve ser feita mais uma operação com a terceira carta, assim, existe a possibilidade de utilizar uma ou duas operações. Mas não houve intervenção nesse momento, pois ele entendia que existiam quatro possibilidades. Poderiam ser encontrados os seguintes números: (3+8)+10=21; (3+8)-10=1; (3-8)-10=(-15); (3-8)+10=5, mas as possibilidades de utilização de operações que ele indicava oralmente eram impossíveis. Quando ele conseguiu encontrar o número primo exclamou “Consegui 5!!! (10+3)-8=5”. Nota-se então que internamente ele tinha claro o que deveria ser feito e isso mostra que os processos de cálculo mental são feitos de maneira particular, pois o sujeito é quem cria seus procedimentos e não necessariamente suas falas realmente indicam o que ele pensa.
Em determinado momento, Maicon precisava encontrar um número par e disse “10x10=100… 100x6=600, certo!?”, a pesquisadora concorda dizendo a pontuação que ele recebeu. Depois com as cartas 5, 1 e 8 em mãos é feita a seguinte conta ”5-1=4… x8=32”.
Maicon fica muito atento ao que os demais dizem e os corrige, neste caso um jogador falou “6-7=1... 1x4=4” e ele diz “(-4)… (-1)x4=(-4), né!?”. Isso mostra o quanto a estrutura do jogo disponibiliza discussões sobre conceitos matemáticos, já que mentalmente “temos mais liberdade”, porém é imprescindível atentar-nos no que é possível ou não na hora de construir determinados algoritmos. Também, notou-se que para o estudante cego as falas têm muita importância, pois existe a necessidade de atentar-se aos detalhes para conseguir entender o contexto ali presente. Quando o jogo não o possibilita fazer as operações, a professora e a pesquisadora ditavam seus valores a fim de que ele ajudasse nas contas, como no seguinte momento:
Pesquisadora: 6 menos 1?...
Maicon: 5.
Pesquisadora: 5 vezes 10?...
Maicon: 50.
Pesquisadora: E 50 é um número par?
Maicon: Claro!
[...]
Professora Fabiane: Fiz 7 vezes 10...
Maicon: 70.
Professora Fabiane: (-8).
Maicon: Não sei.
Professora Fabiane: 70 menos 8?
Maicon: 62.
Aqui foram ilustradas algumas possibilidades que o jogo oportuniza aos estudantes exercitarem o cálculo mental partindo de operações aritméticas construídas na proposta. Como o jogo depende da sorte no recebimento das cartas, os estudantes em vários estágios de aprendizagem podem participar de maneira igual. A colaboração pode ser destacada nos momentos que os jogadores poderiam se ajudar sem que isso afetasse sua pontuação. As estratégias do estudante DV se mantiveram semelhantes desde o início do jogo, porém (pelos áudios) foi notável a rapidez com que ele realizou os cálculos ao longo do jogo, além de se tornar mais confiante nas suas estratégias e resolver as operações sem ajuda.
Quando o jogo exige que se “utilize duas operações específicas para ganhar mais pontos” o estudante deve perceber que existe uma quantidade limitada de possibilidades e, assim, pode reduzir seu tempo de pensar exercitando o cálculo mental com mais eficiência. A necessidade da existência de regras no “jogo consiste na necessidade de encontrar [...] [e] inventar imediatamente uma resposta que é livre no limite das regras” (CAILLOIS, 1967, p. 39 apud MUNIZ, 2014, p. 37) e ao restringir “as ações do sujeito, paradoxalmente, favorece o desenvolvimento da criatividade do sujeito que joga” (MUNIZ, 2014, p. 37).
É possível notar o quanto o jogo possibilita ao estudante DV desenvolver sua autonomia perante a estrutura do jogo e no desenvolvimento de estratégias mentais para a realização dos cálculos, além disso, a “recuperação fluente de fatos aritméticos básicos”, possibilitada pelo jogo, faz com “que o aluno atinja um automatismo que lhe permita um bom nível de proficiência na matemática [...]” (CORSO; DORNELES, 2012, p. 639).
Os jogos apresentados estão baseados nas premissas do DUA, disso tem-se que as propostas podem ser desenvolvidas em salas regulares que tenham estudantes com outras especificidades, mas é necessário observar as características de tais turmas, assim como feito nesta pesquisa. Como exposto, o primeiro jogo foi adaptado de uma proposta de origem desconhecida, então foi preciso formalizar as regras e disponibilizar um material acessível ao estudante DV. O outro foi desenvolvido pela pesquisadora a fim de que o estudante pudesse marcar sua pontuação de forma autônoma e trabalhasse com as quatro operações básicas.
O jogo desenvolvido na sala regular possibilitou mais discussões acerca dos procedimentos realizados em comparação ao feito na sala de recursos. Notou-se mais dificuldades com o jogo “O Produto É”, pois aparentemente o Maicon não entendeu integralmente as regras da proposta e dependia da relação com o coletivo. Nos áudios foi possível notar que o estudante que assumia o papel de banqueiro tinha potencialmente mais compreensão das estratégias do jogo em relação a quem tinha o papel de investidor. Destaca-se que o estudante DV, não reconheceu características dos números pares (por exemplo: um número par multiplicado por qualquer outro número resulta em um par) e dos números primos (pois não considera a existência de números primos negativos).
Os dois jogos fazem com que os estudantes pratiquem o tempo todo exercícios de cálculo mental, de maneira aleatória e trabalhem diversas estratégias de cálculos e operações, podendo assim potencializar as habilidades de cálculo mental para todos os educandos, inclusive para o discente com deficiência visual, já que a proposta estava adaptada às suas especificidades e foi construída a partir das premissas do Desenho Universal para a Aprendizagem.
Nesta pesquisa foi possível apresentar as análises do desenvolvimento do cálculo mental, em um estudante cego, potencializado a partir da utilização de dois jogos propostos na perspectiva do DUA. Vale destacar que não se pretende generalizar resultados, mas este trabalho pode contribuir com discussões sobre Educação Inclusiva e no desenvolvimento do cálculo mental em estudantes com deficiência visual.
Referências
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MUNIZ, Cristiano Alberto. Brincar e jogar: Enlaces teóricos e metodológicos no campo da educação matemática. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Tendências em Educação Matemática, 20).
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Notas
1 Pesquisa realizada em conjunto com outras pesquisadoras e intitulada como “O desenvolvimento do pensamento matemático de alunos deficientes visuais: uma análise através da teoria histórico-cultural”, aprovada em 2019 (CAAE: 12565419.0.0000.5547, número do parecer: 3.392.138).
2 Aqui é utilizado o termo “Desenho Universal para a Aprendizagem” baseado no texto de Kranz (2011), mas a autora opta pela utilização do termo “Desenho Universal Pedagógico”.
3 MAUCH, Carla; KRANZ, Claúdia. Os Jogos na Educação Inclusiva. In: MAUCH, Carla (Org). Educação Inclusiva: algumas reflexões. Natal: EDUFRN, 2008.
4 NUNES, Débora; KRANZ, Claúdia. Módulo 4: a tecnologia assistiva como promoção da educação inclusiva de alunos com deficiências e transtornos globais. Natal: EDUFRN, 2011.
5 Taton, R. (1969). O cálculo mental. Lisboa: Arcádia.
6 Wolman, S. (Ed.) (2006). Apuntes para la enseñanza matemática: Cálculo mental con números racionales. Buenos Aires: Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires. (Retirado de http://estatico.buenosaires.gov.ar/areas/educacion/curricula/pdf primaria/calculo_racional_web.pdf em 22/03/2011)
7 HEIRDSFIEL, A. (2011). Teaching mental computation strategies in early mathematics. Young Children, 66(2), 96-102.
8 VYGOTSKY, Lev Semiónovich; LURIA, Alexandr Romanovich. (1930) Estudos da história do comportamento: símios, homem primitivo e criança. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996b.
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