http://dx.doi.org/10.5902/1984686X44084
Discalculia enquanto (a)normalidade: abordagem na formação inicial de professores de matemática e em periódicos
Dyscalculia while (a)normality: approach in initial training of mathematics teachers and journals
Discalculia como (a)normalidade: enfoque em la formación de matemáticas y em revistas
Ewerson Tavares da Silva
Mestre pelo Instituto Federal de Goiás, Jataí, GO, Brasil
E-mail: ewersontavares@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2903-4602
Sandra Regina Longhin
Professora doutora do Instituto Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil
E-mail: srlonghin@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1733-298X
Jordana de Oliveira do Amaral
Mestre pelo Instituto Federal de Goiás, Jataí, GO, Brasil
E-mail: jordana_oliveria_amaral@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1393-2136
Recebido em 05 de maio de 2020
Aprovado em 28 de fevereiro de 2022
Publicado em 30 de março de 2022
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar a discalculia enquanto transtorno de aprendizagem e sua abordagem na formação inicial de professores de Matemática. O trabalho sustentou-se em Souza e Gallo (2002) na tentativa de apontar uma interseção entre esse transtorno e o que tais autores apresentam enquanto (a)normalidade. Em seguida os debates se ancoraram em Pimentel e Lara (2013) e Bastos (2006) para refletir sobre esse transtorno em específico. De modo a investigar o debate que tem sido feito em torno dessa temática, esse artigo se estrutura sob os seguintes momentos: Inicialmente o texto se dispõe a investigar a Discalculia na formação dos professores de Matemática em Goiás por meio de suas matrizes curriculares buscando identificar o espaço propiciado para esse tipo de diálogo nesses cursos. Em seguida, analisa esse tema em duas revistas eletrônicas da área de Educação Matemática e Educação Especial levantando uma amostra sobre a frequência de dados sobre esse assunto e as implicações da promoção (ou não) desse diálogo. Enquanto resultado, percebeu-se que esse transtorno de aprendizagem não é abordado na formação inicial de professores e que o número de obras nos periódicos analisados não é expressivo, corroborando para que tais sujeitos continuem na condição de (a)normais no núcleo de suas salas de aula.
Palavras-chave: Normalidade; Discalculia; Formação de Professores.
ABSTRACT
This article aims to analyze dyscalculia as a learning disorder and its approach in the initial formation of mathematics teachers. The work was supported by Souza and Gallo (2002) in na attempt to point out an intersection between this disorder and what these authors present as (a) normality. Then the debates were anchored in Pimentel and Lara (2013) and Bastos (2006) to reflect on this specific disorder. To investigate the debate that has been contucted out around this theme, this text is structured under the following moments: Initially, the text sets out to investigate Dyscalculia in the formation of Mathematics teachers in Goiás through their curricular matrices seeking to identify the space provided for this type of dialogue in these courses. It then analyze this topic in two electronic journals around of Mathematical Education and Special Education, raising a sample about the frequency of data on this subject and the implications of promoting (ornot) this dialogue. As a result, it was noticed that this learning disorder is not addressed in the initial training of teachers and that the number of works in the analyzed journals is not significant, corroborating that these subjects remain in the condition of (a) normal in the core of their classrooms.
Keywords: Normality; Dyscalculia; Teacher training.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar la discalculia como un trastorno del aprendizaje y su enfoque en la formación inicial de los profesores de matemáticas. El trabajo fue apoyado por Souza y Gallo (2002) en un intento de señalar una intersección entre este trastorno y lo que estos autores presentan como (a) normalidad. Luego nos debates se anclaron en Pimentel y Lara (2013) y Bastos (2006) para reflexionar sobre este trastorno específico. Con el fin de investigar el debate que se ha llevado a cabo en torno a este tema, este texto se estructura en los siguientes momentos: Inicialmente, el texto se propone investigar la discalculia en la formación de maestros de matemáticas en Goiás a través de sus matrices curriculares que buscan identificar el espacio provisto para este tipo diálogo en estos cursos. Luego, analiza este tema en dos revistas electrónicas en el área de Educación Matemática y Educación Especial, levantando una muestra sobre la frecuencia de los datos sobre este tema y las implicaciones de promover (o no) este diálogo. Como resultado, se percibió que este trastorno del aprendizaje no se aborda en la formación inicial de los docentes y que el número de trabajos en las revistas analizadas no es significativo, lo que corrobora que estas materias permanecen en la condición de (a) normal en el centro de sus aulas.
Palabras clave: Normalidad; Discalculia; Formación de profesores.
Introdução
O ser humano, durante seu processo de construção social e da sua subjetividade, vai reconhecendo pontos de convergência e divergências entre o eu e o outro. Numa esfera mais ampla, características determinadas biológica ou socialmente, por exemplo, tornam-se ponto de análise, a procura de comportamentos, ideias ou crenças, que aglomeram a maior quantidade de sujeitos possível. Estabelece-se aí, mesmo que implicitamente, o que conhecemos como normalidade, um conceito estabelecido no interior das comunidades e/ou grupos sociais (LOPES e FABRIS, 2013, p. 45).
Dessa forma, o “normal” é resultado de pactos dentro dessa estrutura, algo que é definido pelos próprios sujeitos que se encontram, na maior parte do tempo, dentro dessa amostra. Lopes e Fabris (2013, p. 45) apontam que “primeiro está dada a normalidade dos grupos para depois se estabelecer o normal para ele. É do normal instituído nas comunidades que se pode apontar o anormal e definir a normalidade para aquele grupo”. Podemos observar que o normal e o (a)normal são ideais que estão em função daquilo que é aceito, compreendido e não alheio aquele grupo social. Enquanto norma, estes mesmos autores compreendem como
Um conjunto de traços socialmente estabelecidos - uns mais explícitos e meticulosamente que os outros -, com base nos quais cada indivíduo, em uma sociedade ou um momento dado, pode apreciar o grau de distanciamento que guarda em relação a um outro, ou a sociedade como um todo, com referência a um aspecto determinado (peso, altura, audição, atividade sexual etc.) (SOUZA; GALO, 2002, p. 56).
Dessa forma, esse distanciamento comumente denominado de (a)normalidade, totalmente legítimo é reconhecido apenas a partir da definição da norma. Há diversas formas de ser (a)normal dentro de um grupo, pois estar além das fronteiras da normalidade, em algum momento, é probabilisticamente natural (para não se dizer normal). Não associamos aqui o termo (a)normal a algo pejorativo ou perturbadoramente estranho, ao qual deve se alimentar uma indiferença. Diferente disso, encontramos no (a)normal muito do que somos, pois como nos coloca Souza e Gallo (2002)
No espaço da norma não há exterioridade: tanto o anão como o gigante, tanto o retardado como o superdotado, tanto o deficiente visual como o vidente lhe são necessários, a fim de que possa completar toda a série de medidas, ascendentes e descendentes, a partir das quais cada indivíduo é posicionado e classificado em termos de proximidade ou de desvio. A norma permite, finalmente, que cada um possa ser o juiz e o pastor de si mesmo (p. 56).
Desta forma, entendemos que a norma serve apenas como instrumento para nos categorizar, o (a)normal será aqui concebido como algo aclamado e totalmente indispensável. Necessário porque somente a partir da compreensão desse (a)normal é que poderemos avançar na compreensão do ser humano na sua totalidade de possibilidades. É a compreensão desse sujeito, antes entendido como o alheio e estranho, que nos possibilitará apontar um caminho para a elaboração de propostas que contemplem a inclusão.
Diante do esboçado, nosso objetivo é discorrer sobre uma característica que atinge grupo de estudantes que, ao se adentrar no dia a dia da escola, mais especificamente nas aulas de Matemática, pode ser apontado como (a)normal. Entendemos que esse aspecto desse grupo precisa ser conhecido e reconhecido, de modo que seu direito ao aprendizado possa superar os percalços aos quais tem se defrontado.
Discalculia enquanto (a)normalidade a ser superada
Parafraseando Souza e Gallo (2002), se considerarmos o fato de que saber realizar operações básicas, seja para desempenhar atividades cotidianas ou para atender o que exige a escola, é o normal para uma criança em desenvolvimento, as crianças em fase escolar que não conseguem desenvolver essa competência seriam consequentemente identificadas como (a)normais, pois fogem da norma. Tal grupo ocuparia uma posição periférica na sala de aula, sendo estes a exceção, um subconjunto de pontos na parte mais baixa do sino que representa a curva normal desse evento.
Smith e Strick (2012) nos colocam que dentre os fatores orgânicos que contribuem para a dificuldade de aprendizagem estão patologias, subcondições de existência, falhas ou alterações no desenvolvimento cerebral, hereditariedade, desequilíbrios químicos e em alguns casos, as lesões cerebrais. A partir desse apontamento podemos inferir a possibilidade de que a dificuldade no aprendizado de Matemática, em alguns casos, pode ter sua causa primária não no percurso formativo desse sujeito, mas ser justificada devido a fatores cognitivos desse educando. Dessa forma, há a necessidade de reconhecer se estamos perante a um quadro de transtorno de aprendizagem de matemática ou apenas fatores externos que provocam essa dificuldade.
A discalculia é o transtorno de aprendizado caracterizado por uma desordem estrutural da maturação das capacidades matemáticas, a qual se enquadra como uma das causas por ocasionar com que muitos sujeitos “vistam da capa” da (a)normalidade dentro das aulas de Matemática. Isso se deve ao fato de que tal transtorno dificulta a compreensão dessa ciência por parte dos estudantes, algo que, historicamente tem sido observado, conforme Passos et al. (2011) apontam ao afirmar que “a experiência com a matemática escolar costuma ser fonte de frustrações e sentimentos auto-depreciativos”.
Assim, a discalculia têm se tornado uma preocupação crescente entre pesquisadores e professores da área de inclusão e de ensino de Matemática, mobilizando reflexões capazes de propiciar avanços na compreensão dessas questões. Entre diversos fatores, uma condição que revela a emergência do debruçar sobre esse assunto é a comprovação da presença de um número significativo de estudantes que apresentam sinais de um transtorno de aprendizagem. Para Bastos (2006), entre 3 e 6% da população em fase escolar apresenta sinais desse transtorno, revelando a necessidade de olharmos com um maior apreço para as dificuldades em aprendizagem de Matemática pois este pode ser um sintoma de um transtorno que exige um tratamento específico.
Caracterizado pela dificuldade de reconhecimento de símbolos, números e noções de quantificações, essa especificidade exige dos professores que ensinam Matemática a elaboração de estratégias pedagógicas que permitam superação dessas dificuldades. Bastos (2006, p. 198) destaca algumas características desse transtorno:
1) erro na formação dos numerais, os quais, na maioria das vezes, são representados invertidos; comorbidade com Dislexia;
2) falta de habilidade para calcular somas simples;
3) inabilidade quanto ao reconhecimento de sinais das operações;
4) dificuldade em ler valores dos numerais;
5) problemas quanto à memorização de fatos numéricos básicos;
6) dificuldades no transporte dos numerais em cálculos;
7) problemas quanto à ordenação e espaçamento entre os numerais em cálculos envolvendo multiplicação e divisão.
Dessa maneira, o conhecimento sobre esse transtorno é essencial para que os professores possam ter condição para elaborar ações significativas que promova o aprendizado dos estudantes que apresentem tais características, a fim de retirar esses estudantes dessa condição de (a)normalidade.
Essa não tem sido uma tarefa fácil para professores. O pesquisador Butterworth, já em 2005, apontava que as dificuldades no aprendizado de Matemática ocupavam um lugar secundário no que tange as discussões sobre dificuldades de aprendizado, atrás do aprendizado da leitura e da escrita. Isso evidencia que foi se construindo no ideário das pessoas o mito de que a matemática é uma ciência para poucos, fazendo com que os conhecimentos da área sejam absorvidos apenas por um seleto e restrito grupo. Essa concepção corrobora para dificultar o reconhecimento e o diagnóstico da discalculia nesse público.
Ao notarem a necessidade de pesquisas nesta área, Pimentel e Lara (2013) se debruçaram sobre dissertações e teses desenvolvidas no Brasil a fim de realizar um mapeamento sobre trabalhos que abordem o assunto. Com os dados analisados, os autores evidenciam que,
Em uma análise parcial, evidencia-se que embora muitos estudos sejam feitos relacionados a distúrbios de aprendizagem, apenas 4,4% desses trabalhos mencionam distúrbios de aprendizagem na Matemática. Da mesma forma, quando trata - se de transtornos de aprendizagem, apenas, aproximadamente, 7,9% referem-se à Matemática. Esses dados podem ser um indicativo de que pouco se discute sobre esse tema, principalmente no âmbito da Educação Matemática (PIMENTEL; LARA, 2013, p. 10).
Diante de tal resultado, fica evidente a necessidade da Educação Matemática enquanto campo de estudos, propiciar mais debates que possam promover avanços na compreensão dessa (a)normalidade, pois somente o conhecimento de causa é capaz de apontar caminhos para o seu enfrentamento.
Desenvolvimento metodológico
Partindo do pressuposto de que os conhecimentos acerca desse transtorno ainda estão restritos a uma pequena parcela de professores e que esse fato ocorre devido ausência dessa abordagem na formação inicial dos professores, agravada pela reduzido arcabouço de investigações acerca desse tema, essa pesquisa buscou analisar os Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC) de Licenciatura em Matemática das Instituições de Ensino Superior (IES) federais, estaduais e particulares do estado de Goiás. Para tanto realizamos uma pesquisa documental, de caráter qualitativo, com a identificação das fontes, localização e obtenção dos documentos, análise e interpretação dos dados, de acordo com Gil (2010).
Os PPC analisados se encontravam disponíveis nos sites das IES, o que possibilitou o acesso aos dados. Entre as IES analisadas temos cinco (5) federais (3 IF e 2 UF), três (3) estaduais e apenas uma (1) é particular. O quantitativo de IES particular foi reduzido devido a indisponibilidade de acesso ao PPC apesar de ser uma exigência pelo MEC. Por motivos éticos optamos por não identificar as IES.
A busca se deu em três momentos, inicialmente pesquisamos por termos que caracterizassem a educação especial, em seguida termos que explicitassem debates sobre as dificuldades de aprendizagem no ensino de Matemática, visto que essa disciplina é marcada por diversos estigmas e por fim, mas não menos importante, termos como transtornos de aprendizagem e discalculia por serem especificidades que se expressam através da não aprendizagem e que carecem da identificação e tratamento especializado.
O ponto de partida foram as ementas e a matriz curricular dos cursos, na tentativa de identificar a Inclusão e a Discalculia, a partir da presença de termos que se aproximam da possibilidade de discussão, tais como: inclusão, necessidades especiais, educação especial, dificuldade de aprendizagem e transtorno de aprendizagem, termos que apontam para o que entendemos aqui como (a)normalidades no campo da sala de aula.
O Quadro 1 a seguir apresenta a codificação adotada para as IES.
Quadro 1 – Identificação dos PPC
Código de Identificação |
Esfera administrativa |
PPC 1 |
Federal (IF) |
PPC 2 |
Particular |
PPC 3 |
Federal (IF) |
PPC 4 |
Federal (IF) |
PPC 5 |
Estadual |
PPC 6 |
Federal (UF) |
PPC 7 |
Estadual |
PPC 8 |
Estadual |
PPC 9 |
Federal (UF) |
Fonte: Dados da pesquisa (2020).
Como complementação da pesquisa, analisamos os mesmos termos por meio de investigação em duas (n = 2) revistas eletrônicas uma da área de Educação Matemática e outra de Inclusão, verificando a publicação de artigos que promovam esse debate.
Em seguida, como forma de síntese, apresentamos os resultados alcançados.
Discalculia na Formação Inicial de Professores de Matemática de Goiás
A formação de professores é objeto de estudo recorrente no Brasil onde seus objetivos, limites e estrutura são colocados em questionamento, implicando diretamente nos saberes e competências aos quais os futuros professores irão constituir a sua identidade profissional, observar, analisar e discutir a formação inicial de professores tem se tornado uma das formas de garantir que essa possa convergir com as demandas que escola tem apontado.
A fim de subsidiar a análise no espaço desse tipo de debate na formação inicial dos professores de Matemática, adotamos a análise das ementas e matrizes curriculares dos PPC dos cursos de Licenciatura em Matemática ofertados em Goiás.
Ao investigar esses PPC, temos uma compreensão, mesmo que mínima, sobre o espaço da inclusão no âmbito da formação desses profissionais.
O primeiro item que analisamos foi a presença dos termos inclusão, necessidades especiais e educação especial. Acreditamos que tal resultado já nos permitiria uma compreensão sobre o espaço da inclusão nesses documentos.
Após a leitura e sistematização de tais ementas, obtivemos os seguintes resultados:
- Das 9 matrizes curriculares exploradas, em 5 (55,55%) encontramos o termo “necessidades especiais” todos presentes nas referências bibliográficas da disciplina de Libras, disciplina obrigatória em tais cursos.
Apenas no PPC 4 (11,11%), além da presença dos termos na disciplina de Libras, foram encontrados na disciplina de Educação Matemática 1, onde são debatidas tecnologias capazes de promoverem suporte para estudantes que apresentarem alguma necessidade especial.
Destacamos que em 3 dessas matrizes (33,33%) não foi encontrada nenhuma disciplina que traga esse termo dentro de suas ementas ou mesmo dentre as referências bibliográficas.
Diante dos dados apresentados, observamos que a inclusão promovida se restringe a disciplina de Libras na maioria dos casos, o que é esperado pelo fato dessa disciplina ser obrigatória para os cursos de Licenciatura, de acordo com o decreto n° 5.626 de 22 de dezembro de 2005 onde estabelece em seu terceiro artigo que:
A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (DECRETO n°. 5.626, de 22 de dezembro de 2005).
Destacamos que, mesmo sendo um decreto que está em vigência há mais de uma década, 3 (33,33%) os PPC analisados não explicitam se há em seus percursos formativos algum espaço para a inclusão ou mesmo a presença da disciplina Libras, fato preocupante pois representa um terço das matrizes analisadas. Importante refletir sobre a ausência desse diálogo com a educação especial, o que pode levar a um impacto sobre percepções e formas de se ver o mundo dos profissionais formados por estas IES, não favorecendo a formação do professor para a identificação de estudantes com discalculia ou outra necessidade educacional específica.
Com relação ao termo “dificuldade de aprendizagem”, dos 9 PPC investigados, em apenas uma (11,11%) esse termo foi encontrado. A apresentação desses dados se encontra no quadro 2 a seguir.
Quadro 2 – Disciplinas que apresentam a expressão “Dificuldade de aprendizagem”
Contexto do termo |
Disciplina |
O uso dos ambientes informatizados em programas de acompanhamento para alunos com dificuldades de aprendizagem. |
Novas Tecnologias no Ensino de Matemática |
Elaboração, execução, avaliação de planos de trabalho para a recuperação de alunos com dificuldades de aprendizagem em matemática. |
Estágio Supervisionado 4 |
Fonte: Dados da pesquisa (2020).
Notamos que o termo “dificuldade de aprendizagem” se insere em dois momentos distintos na formação do professor. Na disciplina intitulada Novas tecnologias no ensino de Matemática, há a promoção de um espaço para discussão sobre a importância de ambientes informatizados no acompanhamento dos estudantes que apresentam dificuldade de aprendizagem e nas ações para recuperação de notas e de aprendizados dos estudantes com dificuldade de aprendizagem. A forma como se apresenta é preocupante pois são discussões tímidas e que ainda entendem a não aprendizagem como resultado de um percurso pedagógico que não obteve sucesso. Conforme foi apontado por Smith e Strick (2012), podemos compreender que outros fatores podem muito influenciar na dificuldade ou no não aprendizado de matemática, revelando que não é uma relação unívoca que muitos fatores interferem, inclui-se aí, a nosso ver, a discalculia.
Mesmo não encontrando análises reflexivas sobre como lidar com a dificuldade de aprendizagem, encontramos no corpo do PPC 4 algumas reflexões importantes. Quanto ao perfil profissional do Egresso, este material aponta que, espera – se que este venha desenvolver “capacidade de observação e percepção para detectar estudantes com dificuldades de aprendizagem indicando alternativas de ação que propiciem o desenvolvimento de sua autonomia de pensamento”. Percebe- se que há um descompasso quanto ao que é esperado desses profissionais e a formação a qual esses têm acesso, pois para um possível diagnóstico, é necessário que estes debates acerca de dificuldade e/ou transtorno de aprendizagem se naturalizem no âmbito da sua formação inicial, algo que não tem sido privilegiado pelo corpus analisado.
Outro trecho bastante convidativo a reflexão presente nesse PPC se refere ao modo como tais professores devem avaliar seus estudantes. É descrito nesse material que se espera que esses professores possam “perceber os progressos e identificar as dificuldades, utilizando a avaliação como instrumento de diagnóstico e superação das dificuldades”. Sobre isso Ávila, Lara e Lima (2019) evidenciam que
O Brasil carece de pesquisas na área da Educação Matemática que tenham como preocupação a avaliação, pois a falta de instrumentos padronizados impede que os profissionais de fato compreendam especificamente as áreas debilitadas e estabeleçam um plano de intervenção eficaz (p.1).
Conforme o esboçado, entendemos que essa é uma competência fundamental aos professores, porém é necessário que as IES deem subsídio teórico-metodológico para a efetivação dessa ação.
Ao investigarmos a presença dos termos “transtorno de aprendizagem” e “discalculia” ou ainda identificação de ementas de disciplinas que promovessem esse diálogo, observamos que tal discussão é inexistente. Entendemos que o debate pode se materializar por meio de agentes externos ou conversas informais por meio de sujeitos que dominem o assunto. Porém, reforçamos aqui o papel das IES de garantir que tal debate seja promovido entendendo a sua importância na formação de professores, o que identificamos não ser a realidade em 88,89% dos cursos analisados.
Com base nos dados apresentados, nos deparamos com a seguinte situação: a formação inicial para professores de Matemática nas IES analisadas carece de abordagem referente a inclusão e a discalculia não é apresentada como um transtorno de aprendizagem.
Ao observarmos que a questão não se encontrava durante a formação inicial dos professores nos PPC das IES analisadas, complementamos a investigação, sob forma de estado da arte, na busca dos mesmos termos em duas (2) revistas eletrônicas. Entendemos que as revistas, enquanto espaço onde pesquisadores compartilham suas investigações e por serem plataformas de fácil acesso para a divulgação de pesquisas sobre esse assunto, apontaria para um caminho onde a construção de um arcabouço de material para aqueles que, mesmo privados de tais discussões no seu momento de formação inicial, poderiam se aprofundar no assunto.
Entendendo a discalculia como um transtorno que atinge o ensino de Matemática, recorremos a Revista Eletrônica de Educação Matemática (Revemat) a fim de investigar esse espaço para sua discussão nesse periódico. Por outro lado, como a discalculia se enquadra no nosso entender como transtorno de aprendizagem, temática amparada pela inclusão, entendemos que essa abordagem deve estar presente entre as investigações dos que pesquisam sobre educação especial. Assim, tomamos como objeto de apreciação os artigos publicados pela Revista de Educação Especial na busca de pesquisas que consubstanciem tal debate. Como filtro temporal, optamos por publicações do período de 2015- 2019, podendo dessa forma analisar as produções recentes. Tais revistas foram escolhidas por terem periodicidade contínua. A seguir apresentamos os resultados obtidos.
Discalculia nos periódicos investigados
A Revemat foi nosso primeiro campo de investigação quanto aos periódicos. A priori buscamos textos que abordassem além da discalculia, a inclusão em outros aspectos, de modo a obtermos dados para compreensão do espaço ocupado pela inclusão entre as publicações desse período.
Para essa análise nos ativemos ao resumo dos artigos do período e a busca de palavras chaves.
Tabela 1 – Quantidade de artigos analisados da Revemat
Ano |
Quantidade de artigos |
2015 |
24 artigos |
2016 |
33 artigos |
2017 |
28 artigos |
2018 |
32 artigos |
2019 |
21 artigos |
Total |
138 artigos |
Fonte: Dados da pesquisa (2020).
No espaço amostral investigado nenhum artigo foi identificado com a abordagem a temática discalculia, mostrando que essa temática é ainda pouco investigada.
A leitura dos resumos nos levou a 1 (0,72%) artigo que de alguma forma se aproximam da perspectiva inclusiva. Nessa pesquisa, Silva e Strohschoen (2019) discutem a inclusão por meio de uma pesquisa exploratória acerca da formação para se trabalhar com estudantes portadores de paralisia cerebral.
A análise dos resumos nos permitiu avaliar que a temática inclusão se apresenta de forma tímida nesse periódico, enquanto a discalculia nem é posta como objeto de investigação. Ao nos defrontarmos com essa observação, recorremos à análise de um periódico eletrônico voltado para a área de Educação Inclusiva. Assim como a Revemat, a Revista Educação Especial tem fluxo contínuo, o que possibilita que a qualquer momento os autores possam iniciar o processo de submissão de trabalhos nesse periódico. Nesta revista, pesquisamos diretamente os trabalhos que abordavam a temática discalculia. O quantitativo de artigos publicados no período considerado se encontram na tabela 2 a seguir.
Tabela 2 – Quantidade de obras analisadas na Revista Educação Especial
Ano |
Quantidade de artigos |
2015 |
54 artigos |
2016 |
50 artigos |
2017 |
52 artigos |
2018 |
49 artigos |
2019 |
86 artigos |
Total |
291 artigos |
Fonte: Dados da pesquisa (2020).
Foram analisados os resumos de 291 artigos. Desse montante, apenas 2 (0,68%) apresenta discussão referente a discalculia, revelando que tal discussão circunda uma parcela mínima de pesquisas. Para tais artigos foi realizada uma leitura completa a fim de se compreender como foi realizada a pesquisa e quais conclusões obtidas pelos autores.
Ambas as pesquisas se propunham em realizar uma revisão sistemática de literatura nas produções brasileiras que a discutiam. Enquanto resultado, a pesquisa de Guedes, Blanco e Neto (2019) aponta para a existência de 3 trabalhos presente no periódico da CAPES no período analisado aos quais apresentam propostas de intervenção aos estudantes com dificuldade em Matemática e/ou discalculia, além de raros momentos para a formação dos professores para esta especificidade, revelando a necessidade de mais pesquisas sobre o assunto.
Inferimos que pesquisas relacionadas à discalculia, mesmo sendo analisadas num espaço privilegiado para o seu debate, são ainda insipientes. Inferimos que por ser um tema que não se encontra presente na formação inicial de professores, não tem sido foco de pesquisas, logo os professores que identificam esta dificuldade de aprendizagem entre seus estudantes, não possuem ferramentas que lhe possibilitem conhecer melhor sobre esse transtorno, implicando na reverberação da desinformação e ausência de conhecimento suficiente para detectar ou mover ações de modo que pudesse auxiliá-los no enfrentamento. De modo a rematar essa pesquisa, tecemos a seguir algumas considerações finais.
Tecendo considerações finais
A importância de se realizar uma pesquisa que visa diagnosticar os artigos que abordem o tema discalculia está no fato de trazer a luz das discussões sobre o ensino e aprendizagem de Matemática, revelando a necessidade de um maior debate acerca desse tema, por ser um desafio para os pesquisadores devido à pouca vivência com estudantes com este diagnóstico.
A pesquisa aqui relatada destaca a discalculia ainda como um tema pouco abordado nas áreas de ensino e de inclusão, um indicativo da necessidade de avançar nesse debate, para que de fato a educação, na sua forma mais plena, possa ser para todos.
A discalculia enquanto dificuldade de aprendizagem específica na área da Matemática, requer que os professores a compreendam para atuarem de forma inclusiva, necessitando ser abordada como parte da formação humana enquanto construção de sujeitos sociais.
É fundamental que todos compreendamos o que chamamos nesse texto de (a)normais como sujeitos com direitos, sonhos e potencialidades, entendendo que todos os que compõe o centro da distribuição normal, estão expostos a apresentar dificuldades.
Quanto mais refletimos sobre a inclusão, mais claro se torna para nós que deficiência não está no (a)normal, mas no sistema, por ser esse incapaz de acolher e promover condições para o desenvolvimento de todos. Cabe a nós, ora professores e pesquisadores, problematizarmos essas questões a fim de que as diferenças possam ser vistas sob um espectro de fascínio e não como sinônimo de limitação.
Os resultados obtidos na análise dos artigos no espaço investigativo aqui definido, nos mostrou que as IES em seus cursos de Licenciatura não têm propiciado debate sobre esse assunto, o que dificulta o exercício do professor de Matemática.
Destacamos a importância de práticas por meio de cursos de formação continuada, que subsidiemos professores de saberes que lhes deem condições para que identifiquem a discalculia, de forma que esta condição não seja entendida como anormal, mas possa ser vista como uma área repleta de interrogações, que não pode ser desconsiderada nem tão pouco banalizada, a ponto de ser menosprezada.
Entendemos que esta pesquisa estimula os educadores da área de Matemática a se inserirem em pesquisas no âmbito da inclusão voltando seu olhar para esse transtorno, de modo contribuição no enfrentamento da situação.
Os dados apresentados nos levam a reflexões sobre o espaço da discalculia nos PPC dos cursos de Licenciatura e nas pesquisas realizadas. Entendemos que ainda há um caminho a ser trilhado até que temáticas como essa possam ser naturalizas nas pesquisas de forma a atingir a sala de aula, sentindo os efeitos positivos de debates deste tipo.
Mesmo diante de dificuldades, devemos nos agarrar ao ideal de que é um quadro que pode ser revertido, pois são problemáticas latentes na sala de aula e que é necessário que estas sejam analisadas, pois sua pulsação precisa ser ouvida, analisada e estudada por muitos profissionais. Esperamos ter contribuído para reflexões sobre a discalculia, que se apresentam como inquietações de um grupo de professores que ouviu tais pulsações no dia a dia de suas salas de aula.
Referências
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