http://dx.doi.org/10.5902/1984686X43112

 

Apropriação do Termo “Pessoas com Deficiência”

Appropriation of the term “Disabled People”

Apropiación del término "Personas con Discapacidad"

 

Maristela Ferro Nepomuceno

Pós-doutoranda na Universidade Federal de São João Del Rei, São João Del Rei, Minas Gerais, Brasil.

maristelafnep@gmail.com

ORCID – https://orcid.org/0000-0001-5817-022X

 

Raquel Martins de Assis

Professora doutora na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

rmassis.ufmg@gmail.com

ORCID – https://orcid.org/0000-0001-5248-1131

 

Maria Nivalda de Carvalho-Freitas

Professora doutora na Universidade Federal de São João Del Rei, São João Del Rei, Minas Gerais, Brasil.

nivalda@ufsj.edu.br

ORCID – https://orcid.org/0000-0001-7071-7179

 

Recebido em 25 de março 2020

Aprovado em 11 de maio de 2020

Publicado em 27 de maio de 2020

 

RESUMO

As pessoas com deficiência são historicamente discriminadas e, entre as várias ações para reduzir a discriminação, encontra-se a investigação da terminologia que as caracterizam. Pesquisas mostram que a linguagem e os conceitos que as pessoas utilizam influenciam os aspectos sociais, tal como termos pejorativos. Com base nesses aspectos, este estudo tem como objetivo analisar a apropriação e a circulação do termo “pessoa com deficiência” na comunidade científica brasileira e discutir a natureza social das terminologias e suas implicações. Para a investigação das terminologias relacionadas a quem possui o impairment, essa pesquisa analisou a apropriação do termo definido pela Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência utilizado no Brasil com base no referencial teórico dos conceitos de apropriação, de Roger Chartier (1988), tradução e negociação, de Zoia Prestes (2010), e circulação, de Pierre Bourdieu (2002). Pode-se constatar a importância da tradução e da distinção dos termos disability e impairment. A alteração na tradução do impairment como impedimento em vez de lesão resulta na concepção da deficiência como tragédia pessoal, um problema para a própria pessoa, devido ao impedimento. Da mesma forma, se a tradução de impairment for deficiência, implica não considerar os problemas físicos e de saúde que podem acontecer. Verificou-se que tanto a apropriação quanto a tradução de um termo devem estar inseridos dentro de uma cultura de origem e de destino. Embora o termo utilizado e apropriado no Brasil seja “pessoa com deficiência”, não há um consenso na literatura. Espera-se que este estudo contribua para uma reflexão crítica desse termo utilizado.

Palavras-chave: Pessoa com deficiência; terminologia; apropriação.

 

ABSTRACT

Disabled people are historically discriminated against and among the various actions to reduce discrimination, there is the investigation of the terminology that characterizes them. Research shows that the language and concepts that people use influence social aspects, such as pejorative terms. Based on these aspects, this study aims to analyze the appropriation and circulation of the term “pessoa com deficiência” (people with disability) in the Brazilian scientific community and to discuss the social nature of the terminologies and their implications. For the analysis of terminologies related to those with impairment, this research analyzed the appropriation of the term defined by the Convention on the Right of Persons with Disabilities used in Brazil based on the theoretical framework of the concepts of appropriation, by Roger Chartier (1988), translation and negotiation, by Zoia Prestes (2010), and circulation, by Pierre Bourdieu (2002). It can be seen the importance of translation and the distinction of the terms disability and impairment. The change in the translation of impairment as a hindrance instead of an injury results in the conception of the disability as a personal tragedy, a problem for the person himself, due to the impediment. Likewise, if the translation of impairment is disability, it implies not considering the physical and health problems that may occur. It was found that both the appropriation and the translation of a term must be inserted within a culture of origin and destination. Although the term used and appropriate in Brazil is “pessoa com deficiência” (people with disability), there is no consensus in the literature. It is hoped that this study will contribute to a critical reflection of that term used.

Keywords: Disabled people; terminology; appropriation.

 

RESUMEN

Las personas con discapacidad son históricamente discriminadas y, entre las diversas acciones para reducir la discriminación, existe la investigación de la terminología que las caracteriza. La investigación muestra que el lenguaje y los conceptos que las personas usan influyen en los aspectos sociales, como los términos peyorativos. Con base en estos aspectos, este estudio tiene como objetivo analizar la apropiación y circulación del término "pessoa com deficiência" (personas con discapacidad) en la comunidad científica brasileña y discutir la naturaleza social de las terminologías y sus implicaciones. Para el análisis de las terminologías relacionadas con las personas con discapacidad, esta investigación analizó la apropiación del término definido por la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad utilizado en Brasil sobre la base del marco teórico de los conceptos de apropiación, por Roger Chartier (1988), traducción y negociación, por Zoia Prestes (2010), y circulación, por Pierre Bourdieu (2002). Se puede ver la importancia de la traducción y la distinción de los términos discapacidad y discapacidad. El cambio en la traducción de la discapacidad como un obstáculo en lugar de una lesión da como resultado la concepción de la discapacidad como una tragedia personal, un problema para la persona misma, debido al impedimento. Del mismo modo, si la traducción del impedimento es discapacidad, implica no considerar los problemas físicos y de salud que pueden ocurrir. Se descubrió que tanto la apropiación como la traducción de un término deben insertarse dentro de una cultura de origen y destino. Aunque el término utilizado y apropiado en Brasil es "pessoa com deficiência" (personas con discapacidad), no hay consenso en la literatura. Se espera que este estudio contribuya a una reflexión crítica de ese término utilizado.

Palabras clave: Persona discapacitada; terminología; apropiación.

 

Introdução

As pessoas com deficiência têm sofrido discriminação ao longo de toda a história e em todas as partes do mundo (HARPUR, 2012). Essa realidade não é diferente no Brasil. Apesar de inúmeras iniciativas políticas e educacionais, essa discriminação é ainda presente (CARVALHO-FREITAS et al., 2010, 2018; LIMA; MENDES, 2011; NEVES-SILVA; PRAIS; SILVEIRA, 2015; KUHNEN, 2016).

No campo dos estudos sobre deficiência, a compreensão dessa temática como opressão social tem sido relacionada ao desenvolvimento do modelo social (BARNES, 2011). Desse modo, pesquisadores têm dedicado atenção aos aspectos culturais que impactam essa construção na sociedade. Entre as várias formas de atuação nessa perspectiva, a linguagem tem sido um importante veículo para mudanças culturais a respeito desse assunto (HARPUR, 2012). No campo da linguagem, a terminologia é vista como aspecto de grande importância, pois os conceitos utilizados influenciam os aspectos sociais (BARNES; MERCER; SHAKESPEARE, 1999).

Alguns termos podem reduzir as potencialidades da pessoa, reforçando a sensação de déficit e fracasso pessoal, tais como “inválido” e “deficiente (SHAKESPEARE, 2010). Nessa perspectiva, discutir a influência da terminologia é de fundamental importância, pois ela reflete os conceitos, as percepções e os valores de uma sociedade (SIMONELLI, 2009), bem como pode carregar, de modo implícito, o preconceito (SHAKESPEARE, 1994).

A perspectiva histórica da terminologia permite perceber o desgaste de palavras que se tornaram pejorativas. Os termos “anormal”, “retardado”, “débil”, “inválido”, “incapaz” ou “ineducável”, entre outros, já foram utilizados para designar a “pessoa com deficiência” em um contexto histórico e cultural, mas, hoje, são amplamente rejeitados (ASSIS, OLIVEIRA e LOURENÇO, 2020). Essas percepções negativas podem se tornar estigmas e dificultar ainda mais o processo de inclusão desse grupo de pessoas (PLAISANCE, 2015). Nesse sentido:

As terminologias correntes são, com frequência, obstáculos à análise científica, exatamente porque veiculam evidências não questionadas. Um dos melhores remédios para isso, sempre necessário, é tomar precisamente essas terminologias como objeto de pesquisa e submetê-las a uma decodificação crítica. (CHAUVIÈRE; PLAISANCE, 2000, p. 15).

De acordo com Chartier (1988), há diferentes modos de apropriação de um termo ou conceito. Desse modo, pode-se pensar em diversas formas de nomear quem possui um impairment ou seja, uma lesão, termo usado pelos precursores do modelo social de deficiência (BARNES; OLIVER; BARTON, 2002).

A ciência de uma forma mais ampla é definida por Ponterotto (2005) como a busca sistemática por conhecimento. Para o autor, a filosofia da ciência refere-se às raízes conceituais subjacentes à busca pelo conhecimento e, incorpora crenças e suposições sobre a ontologia, ou seja, (a natureza da realidade, do ser); e epistemologia (o estudo e a aquisição do conhecimento).

Ao discutir sobre as premissas da natureza da ciência social, Morgan e Burrel (2005) afirmam que toda a ciência social deve se fundamentar no relacionamento entre o ser humano e o ambiente, uma vez que a vida humana é essencialmente o sujeito e o objeto da investigação. Os autores argumentam que é conveniente conceituar ciências sociais em termos de quatro conjuntos de suposições relacionadas à ontologia, epistemologia, natureza humana e metodologia. Transpondo essas questões para os estudos sobre deficiência, especificamente, sobre a terminologia “pessoas com deficiência”, pode-se pensar nas terminologias também como uma mudança epistemológica (do estudo e da aquisição do conhecimento).

A diversidade dos conceitos está relacionada ao paradigma teórico que o pesquisador possui. Ao se mudar o paradigma teórico, modifica-se o objeto de estudo e as estratégias metodológicas, e consequentemente a terminologia perpassa por essas questões. Essas mudanças terminológicas (epistemológicas) estão embasadas em um arcabouço teórico (BURRELL, GIBSON; MORGAN, 2005) e nas concepções de deficiência (CARVALHO-FREITAS, 2007). Ao modificar o termo usado para quem possui o impairment, modifica-se também a concepção metodológica e o objeto de estudo. De forma mais específica, se o paradigma teórico for o modelo social, o objeto de estudo torna-se os determinantes sociais que as pessoas com deficiência enfrentam e a estratégia metodológica utilizada será a adaptação e adequação da sociedade para a diminuição do preconceito e da opressão dessas pessoas, tendo como finalidade a inclusão das pessoas com deficiência.

Por outro lado, se a terminologia utilizada desqualifica a pessoa, ou a remete como pessoa dependente, tal como, a terminologia “pessoa com necessidades especiais”, a metodologia utilizada tenderá a se pautar em cuidados físicos, assistência e proteção. Do mesmo modo, o emprego da terminologia “deficiente”, também se encaixa nesse paradigma, ao aplicar esse termo, a metodologia utilizada tenderá a ser o tratamento para a reabilitação e o objeto passa a ser a doença da pessoa, tal como o modelo individual (médico).

Partindo do pressuposto das terminologias como uma mudança epistemológica e que as raízes conceituais incorporam crenças e suposições na terminologia empregada, esse trabalho tem como objetivo apresentar uma análise da apropriação do termo “pessoa com deficiência” à luz da perspectiva da tradução e discutir a natureza social das terminologias e suas implicações. Primeiramente, será apresentada uma breve fundamentação teórica sobre o que se entende por apropriação na perspectiva de Chartier (1988), tradução e negociação de acordo com Prestes (2010) e circulação internacional de ideias sob a ótica de Bourdieu (2002). Em seguida será apresentada a metodologia. Após essa etapa, serão descritos os resultados e discussões sobre o tema e por fim, as considerações finais.

Fundamentação teórica: as operações de apropriação, tradução e negociação e circulação de ideias

Apropriação

Nesta pesquisa, para a análise da terminologia foi utilizado o conceito de apropriação, de acordo com Roger Chartier (1988), autor que enfatiza a importância de considerar, nos estudos históricos e sociais, as relações estabelecidas entre os sujeitos individuais ou coletivos e os objetos culturais por eles operados, considerando as apropriações realizadas. No caso desse artigo, a terminologia “pessoa com deficiência” é entendida como um objeto cultural, parte do discurso acadêmico sobre os estudos da deficiência. Dosse (2004, p. 308) assim se refere aos estudos de Chartier (1988): “A apropriação, tal como a concebemos, visa a uma história social dos usos e interpretações, relacionados com suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os produzem”.

Partindo desses pressupostos, esta pesquisa analisa o uso da terminologia “pessoa com deficiência” na cultura acadêmica brasileira, bem como enfatiza que a tradução dos termos ou conceitos também precisa estar inserida dentro de uma cultura. A apropriação, para Chartier (1988), é uma transformação nos conceitos e nas ideias. Para o autor, há diferentes modos de se apropriar.

Tradução e negociação

Muitos estudiosos defendem que qualquer tradução é um ato de criar, seja ela literária ou técnica, na qual envolve uma experiência anterior, desse modo, o ato de traduzir é um ato de criar algo (PRESTES, 2010). A autora defende a importância desse trabalho em uma obra, pois segundo ela, o tradutor deve ser o suporte da alteridade do autor. Por outro lado, esse trabalho possui limitações, pois, segundo a autora, não é um ato mecânico de simplesmente transferir palavras de uma língua para outra.

Alguns cuidados são necessários para realizar a tradução, tal como, o conhecimento profundo da língua de chegada, ou seja, a língua para a qual se traduz, de modo a permitir uma flexibilização da mente para inventar novas soluções linguísticas, bem como o domínio da língua de origem e atenção para o contexto e o período histórico no qual foi produzida a obra original (PRESTES, 2010). Desse modo, realizar uma tradução sem considerar o contexto no qual o termo se originou é inadequado, pois pode acarretar alterações de palavras, de conceitos e de pensamento dos autores.

No tocante ao modelo social, o termo impairment, utilizado pelos precursores – Barnes, Barton e Oliver (2002) – para se referir a uma lesão (termo pouco utilizado nas pesquisas brasileiras), tem sido traduzido em algumas pesquisas brasileiras e documentos como deficiência ou impedimento, ou seja, colocando o foco tanto na pessoa quanto no que falta. Para os precursores (UPIAS, 1976; OLIVER, 1990a, 1996a; BARTON; ARMSTRONG, 2001), a distinção entre os termos impairment (lesão e impedimento) e deficiência faz-se necessária. Assim, conforme Prestes (2010), o contato com as obras originais torna-se relevante para a compreensão dos termos propostos pelos autores. Esse contato direto pode esclarecer a definição dos conceitos como disability e impairment e diminuir a alterações das ideias dos precursores, evitando a perpetuação das ideias distorcidas.

Prestes (2010) segue a perspectiva de que a tradução é uma negociação em que vários aspectos estão em jogo, tais como o texto-fonte, a figura do autor, a cultura em que o texto foi escrito, o texto de chegada e a cultura em que se insere. De modo sucinto e de acordo com Eco (2007), Prestes (2010, p. 92) afirma que “Negocia-se o significado que a tradução deve expressar porque se negocia sempre, na vida cotidiana, o significado que devemos atribuir às expressões que usamos.”

Neste trabalho, será utilizada a perspectiva adotada por Prestes sobre a ideia de negociação, a partir de Eco (2007):

Então, traduzir para Eco significa sempre “cortar” algumas das consequências que o termo original implicava e, por isso, para ele, ao traduzir, não se diz nunca a mesma coisa. Para ele, a interpretação que precede a tradução deve definir o que se pode ou não “cortar” no significado de uma palavra, porém, jamais estaremos seguros de que não perdemos algo importante. (PRESTES, 2010, p. 92).

De acordo com o fragmento, é preciso estar consciente de que a tradução quase sempre não será a mesma coisa, pois inevitavelmente haverá perdas e cortes. Ao se pensar no corte como tratado por Prestes (2010), pode-se inferir que o termo “pessoa com deficiência” foi uma tradução em que houve negociação, pois os precursores do modelo social utilizam o termo disabled people (pessoa deficiente), que, se fosse traduzido de modo literal, teria um significado pejorativo de acordo com a cultura brasileira, pois a palavra “deficiente” nos remete a atraso, déficit, disfunção.

Circulação internacional de ideias

No tocante à circulação internacional das ideias, Bourdieu (2002) afirma que as trocas de ideias podem ser entendidas como alianças e, na lógica das relações de forças, são percebidas como formas de fortalecer uma posição dominada e ameaçada. Assim, elas são submetidas a um determinado número de fatores estruturais geradores de mal-entendidos (BOURDIEU, 2002). Para o autor, a circulação dos termos sem o contexto de origem, ou seja, sem o “campo de produção” onde foi originado, pode ser reinterpretada em função do “campo de recepção”, ou seja, do local onde os termos chegam e, com isso, podem acarretar um grande mal-entendido.

Outro elemento importante, segundo Bourdieu (2002), é o sentido de uma obra no campo de chegada. Nesse caso, a determinação dessas trocas internacionais de ideias, bem como quais conceitos foram recebidos e apropriados nesse campo e quais foram esquecidos por um campo nacional, são todos determinados por aspectos sociais. Esses aspectos perpassam escolhas e poder, no sentido de reforçar a própria posição da pessoa no campo.

Assim, o sentido e a função de uma obra estrangeira são determinados tanto ou mais pelo campo de chegada quanto pelo campo de origem. Em primeiro lugar porque o sentido e a função no campo de origem são muitas vezes completamente ignorados. E também porque a transferência de um campo nacional para um outro se faz por meio de uma série de operações sociais: uma operação de seleção (o que se traduz? O que se pública? Quem traduz? Quem publica?) (BOURDIEU, 2002, p. 4, grifo nosso).

Por meio de Bourdieu (2002), pode-se pensar na apropriação do modelo social a partir da circulação de ideias internacionais, verificando quais conceitos desse modelo foram apropriados no Brasil e quais não foram, quais conceitos foram traduzidos em território brasileiro e para quais deles houve negociação. Para o autor, a escolha do que será publicado não se dá de maneira neutra, pois atende a interesses. Desse modo, transpondo para a realidade de pesquisa (especificamente das publicações), pode-se pensar que os pesquisadores traduzem e publicam obras, conceitos e terminologias em que possuem interesse, reforçando as suas posições no campo.

Método

Esta pesquisa tem natureza descritiva, relacionada à apropriação e circulação do termo “pessoa com deficiência”. Considera-se, em função da terminologia, o que circula, como circula e qual a relação entre circulação e apropriação, bem como a discussão da natureza social das terminologias e suas implicações. Desse modo, o fio condutor desta pesquisa é a apropriação dessa terminologia, a possível negociação e tradução do termo disabled people como pessoa com deficiência, feita pelos tradutores brasileiros, e a circulação desse termo no Brasil.

Esse estudo ocorreu no ano de 2019. Para realizá-lo, recorreu-se à análise de três tipos de produções: a terminologia “pessoas com deficiência” como definida na Convenção da ONU Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência - Convention on the Rights of Persons with Disabilities - CRPD (UN, 2006) , amplamente adotada no Brasil; a terminologia “disabled people”, conceituada nas obras originais dos precursores acadêmicos do modelo social de deficiência - a saber Colin Barnes, Len Barton e Michael Oliver (Diniz, 2003; Nepomuceno, 2019); as apropriações, traduções e negociações ocorridas entre os termos disabled people e pessoas com deficiência em artigos científicos brasileiros. O corpus documental da pesquisa foi formado, portanto, pelo texto da Convenção da ONU, por obras originais em inglês de Barnes, Barton e Oliver (2002) e por livros sobre deficiência que circulam no Brasil e, artigos científicos publicados na Revista Brasileira de Educação Especial, tal como Melo e Martins (2007); Lima e Mendes (2011), e Silva e Ferreira, (2017).

A análise realizada pautou-se nas implicações sociais do uso da terminologia utilizou-se, para a análise, Roger Chartier (1988) no que se refere à apropriação, Pierre Bourdieu, (2002) para a circulação de ideias. O termo “pessoa com deficiência” utilizado de acordo com a Convenção da ONU será discutido sem perder de vista a criticidade dos precursores do modelo social no que se refere às denominações vigentes para designar a deficiência.

Resultado e discussão

Circulação do termo “pessoa com deficiência”

Uma possível tradução do termo disabled people para se adequar às ideias compartilhadas pelo modelo social do Reino Unido e tentar expressar o significado do termo aqui no Brasil seria “pessoa desabilitada”, a pessoa que não se encontra hábil para algo. Essa tradução implicaria que o indivíduo foi desabilitado por outros, pela sociedade. Ser desabilitado, nesse caso, significa a ausência de treinamentos e condições que pudessem possibilitar estar hábil ou a retirada de condições capazes de permitir o uso de habilidades. Para exemplificar melhor, se alguém está habilitado a dirigir, mas sofre um acidente e tem as pernas amputadas, torna-se desabilitado para dirigir um carro sem adaptação. Entretanto, se a pessoa possuir um carro cujo controle de freios e embreagens passa a ser feito pelas mãos, ela volta a ser habilitada a dirigir. Essa reflexão expressa o pressuposto do modelo social, pois, segundo os precursores do modelo social inglês, é a deficiência na sociedade que desabilita o indivíduo ou um grupo. Ao passo que, se a sociedade for adaptada, o indivíduo continua com o impairment, ou seja, com a lesão, mas deixa de ser desabilitado.

A tradução literal do termo disabled people em português pode levar ao erro, mas uma adequada interpretação do que o termo significa em ambas as culturas – inglesa e brasileira - reflete uma convergência ao invés de uma divergência. Os precursores criticam o termo people with disability, que, em uma tradução literal para o português, é “pessoa com deficiência”. Ao se traduzir esse termo do português para o idioma inglês, em pesquisas cujas ideias convergem com o modelo social, a tradução sugerida é disabled people, termo defendido pelos autores precursores (OLIVER, 1990b, 1996b) e não people with disability ou person with disability, pois poderia comprometer a compreensão do texto em inglês.

Em geral, a comunidade científica brasileira adota alguns pressupostos do modelo social e compartilha em grande parte das ideias dos precursores ingleses, tais como a importância da eliminação de barreiras para as pessoas com deficiência (BRANCATTI, 2001; OLIVEIRA; GOULART JÚNIOR; FERNANDES, 2009) e a manutenção do foco da deficiência na sociedade (MELO; MARTINS, 2007; CANTARONI et al., 2015). Entretanto, essa comunidade utiliza a terminologia “pessoa com deficiência”, diferentemente do termo defendido pelos precursores. Embora o pressuposto de inclusão e do modelo social seja o mesmo, as culturas são diferentes e utilizar no Brasil o mesmo termo empregado pelos precursores poderia influenciar de modo negativo a forma delas serem vistas.

Para uma melhor compreensão do termo disabled, de modo a tentar expressar os ideais dos precursores britânicos, pode-se afirmar que a pessoa se tornou “deficiente” dentro das limitações do impairment, ou seja, quando a sociedade não está adequada ou adaptada, o indivíduo torna-se “deficiente” dentro desse contexto.

A terminologia oficialmente adotada pelo governo no Reino Unido – United Kingdom – UK na forma original é a seguinte: “The word ‘disabled’ is a description not a group of people. Use ‘disabled people’ not ‘the disabled’ as the collective term.” (UK, 2018). Veja uma possível tradução em português de como esse termo pode ser exemplificado: “A palavra ‘deficiente’ é uma descrição e não um grupo de pessoas. Usar ‘pessoas deficientes’ e não ‘os deficientes’ como o termo coletivo.” (UK, 2018). A citação da terminologia adotada no Reino Unido sugere a utilização do termo que descreve o indivíduo e não o coletivo.

Ao tratar da recepção e circulação de terminologias e conceitos dentro dos textos científicos, Grynszpan (2012) aborda as possíveis consequências:

O mecanismo de recepção e circulação presentes na tradução de textos científicos, podem “produzir efeitos sobre as obras e as leituras no próprio país de origem, acrescendo a sua importância, gerando debates, tomadas de posição, impondo redefinições em edições futuras”. (GRYNSZPAN, 2012, p. 12).

Assim, pode-se ressaltar que a circulação internacional não pode ser tomada como via de mão única que simplesmente parte de um ponto original e segue adiante em linha reta. No que diz respeito ao modelo social, houve tradução e circulação desse modelo em diversos países, incluindo o Brasil, devido à sua apropriação pela Organização das Nações Unidas - ONU (UN, 2006), pelas declarações e leis voltadas para os direitos das pessoas com deficiência Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - (UNESCO, 1994) e pelos grupos científicos que, de modo direto ou indireto, absorveram a ideia.

Tomando-se Bourdieu (2002) como referência de análise, verifica-se que houve uma circulação internacional em relação à terminologia disabled people. Esse termo, ao ser traduzido para o português, circulou no Brasil inicialmente com a tradução “pessoa deficiente” na década de 1970, tradução literal do termo disabled people. Em seguida, após a (CRPD), utilizou-se o termo “pessoa com deficiência”, empregado na (ONU) (UN, 2006). A circulação continua no momento em que o termo retorna para o exterior quando um pesquisador traduz a terminologia “pessoa com deficiência” para o inglês como people with disability em um artigo científico em vez de disabled people.

Essa circulação pode ser exemplificada pelo trabalho de Fiorati e Elui (2015), que utilizam o conceito de modelo social influenciado pelas ideias dos precursores do modelo social britânico no artigo Social determinants of health, inequality and social inclusion among people with disabilities. Em várias partes do texto, incluindo o título, esses autores utilizam o termo people with disabilities. Nesse caso, foi feita uma apropriação da terminologia que modificou o termo preferencial disabled people do modelo social britânico para people with disabilities. O artigo de Fiorati e Elui (2015), escrito em inglês, foi citado por Yearwood e Hines-Martin (2016), autores de língua inglesa que leram o artigo de Fiorati e Elui (2015), cujo conteúdo possui os pressupostos do modelo social britânico, mas com a incorporação da cultura brasileira, uma vez que usam o termo people with disability, tradução literal do termo “pessoa com deficiência”. Importa ressaltar o cuidado que se deve ter nessas traduções do português para o idioma inglês, pois, mesmo se o pesquisador compartilhar os pressupostos do modelo social, em outro país essa terminologia pode ser interpretada de outro modo, alterando as ideias e a apropriação do trabalho do pesquisador em um contexto diferente do seu.

De acordo com Bourdieu (2002), os textos que circulam sem seu contexto de origem podem ser mal interpretados. Desse modo, um pesquisador estrangeiro com conhecimento do modelo social, ao ler um resumo ou um título de uma pesquisa com a terminologia people with disability, pode não compreender o contexto brasileiro no qual o termo utilizado está inserido e concluir que a pesquisa não compartilha das ideias do modelo social, mas, sim, de uma outra perspectiva. Assim, o pesquisador deve levar em consideração a cultura e o contexto na qual os termos utilizados estão inseridos.

Grynszpan (2012) ressalta que o conceito de circulação pressupõe um movimento ordenado de um leque de conhecimentos e de saberes que podem sofrer mudanças de acordo com a postura de certos agentes, eventos e operações sociais que possibilitam o fluxo e a propagação de um pensamento. Desse modo, um pesquisador pode compartilhar do mesmo pressuposto do modelo social e fazer uso consciente da terminologia “pessoa com deficiência” por uma fidelidade à CRPD, por exemplo.

Alterações na tradução

Nesta seção, serão apresentados dois trabalhos em que, apesar da apropriação dos estudos sobre deficiência e do modelo social, foi possível perceber alterações na tradução.

O primeiro exemplo refere-se ao livro Ressignificando a Deficiência: da abordagem social às práticas inclusivas na escola, dos autores Valle e Connor (2014), considerado um livro de grande importância de orientação prática em Educação Inclusiva para professores iniciantes. Esse livro está fundamentado nos pressupostos do modelo social e nos estudos sobre deficiência em Educação. Segundo Nuernberg (2015), a tradução da obra significa um marco para esses estudos no Brasil. Trata-se do primeiro livro internacional que apresenta esse campo para a comunidade científica, trazendo uma abordagem crítica desse assunto no contexto educacional. Esse mesmo autor enfatiza que se trata de um excelente livro para os pesquisadores que desejam subsídios para o planejamento pedagógico compromissado com a educação de todos e que, consideram a diversidade como uma condição inerente às pessoas.

Apesar de o livro de Valle e Connor (2014) ter sido bem recebido e compartilhar ideias do modelo social, em sua tradução para o português uma nota técnica de rodapé destaca que os termos impairment, handicap e disability foram todos traduzidos como “deficiência”. A nota explicita as dificuldades de tradução das terminologias para o português, fazendo com que lesão e “desabilitado” sejam tomadas intercambiavelmente, embora tenham sentidos completamente diversos, alterando, assim, as dimensões sociais e biológicas conferidas aos termos deficiência e impairment.

Tradução e circulação do termo “pessoa com deficiência”

Um ponto chave para a compreensão da terminologia “pessoa com deficiência” é a compreensão dos termos impairment e disability. A definição do conceito de impairment foi desenvolvida pela Union of the Physically Impaired Against Segregation (União das pessoas com deficiência física contra a segregação) (UPIAS) (1976):

nós definimos o impairment como a falta de uma parte ou todo um membro, ou tendo um membro defeituoso, órgão ou mecanismo do corpo; e deficiência como a desvantagem ou restrição de atividade causada por uma organização social contemporânea que não toma ou presta pouca atenção às pessoas com deficiências físicas e, portanto, as exclui da participação na corrente principal das atividades sociais. (UPIAS, 1976, p. 20, tradução e grifo nosso).

No Brasil, há duas traduções usuais para o termo impairment: lesão ou impedimento. Esta pesquisa adota o termo lesão, conforme Diniz (2007), por expressar melhor o aspecto biológico. A expressão “lesão” representa a ideia, mas limita o uso. O termo exclui algumas situações amparadas pelo modelo social de modo mais amplo, tais como a gravidez, uma .situação temporária ou algum outro aspecto psicológico, conforme visto na obra de Goodley e Lawthom (GOODLEY; LAWTHOM, 2007).

A palavra impairment surgiu em um contexto histórico específico na década de 1970, período no qual parte da população inglesa experimentava os efeitos do pós-guerra, incluindo lesões ocorridas durante os conflitos. Esse termo foi criado por britânicos com deficiência física, ou seja, lesionados, que se uniram para redigir um manifesto no qual reelaboraram o conceito de deficiência (UPIAS, 1976).

Em entrevista a Diniz (2013), Barnes relata que o impairment (lesão) é uma constante humana; qualquer pessoa, ao envelhecer, pode adquirir alguma lesão:

As maiores causas das lesões são pobreza, violência, poluição, envelhecimento, ou seja, eles são criados socialmente. Poderíamos eliminar, por exemplo, muitas lesões se as pessoas não fossem pobres. (DINIZ, 2013, p. 238).

Para Barnes, os estudos sobre deficiência não excluem a realidade do impairment (lesão) e afirmam que ter ou adquiri-lo faz parte do cotidiano da pessoa. Segundo o autor, há vários tipos de lesões, relacionadas às diversas formas de funcionar no mundo (DINIZ, 2013). Importa compreender lesão dentro de um amplo espectro de possibilidades. Pode-se pensar em lesões sensoriais, como auditiva ou visual, lesões físicas ou, mesmo, lesões como doenças mentais1.

Nessa entrevista, Barnes afirma que o termo “pessoa com deficiência” carrega um problema individual ao invés de social, pois transmite a ideia de que a pessoa carrega a deficiência. O termo disabled people, em tradução literal para o português, seria “pessoa deficiente”.

Para entender a similaridade dos conceitos, observa-se a definição proposta pela organização não governamental Northern Officer Group (NOG), conduzida por pessoas com deficiência. Segundo a NOG (2010, p. 1), “A disabled person is a person with an impairment who experiences disability”. Essa sentença expressa de modo claro a essência do modelo social. Todavia, pode-se observar uma dificuldade em traduzi-la para o português. Uma tentativa de tradução seria: “Uma pessoa com deficiência é uma pessoa com lesão que experiencia a deficiência” (tradução nossa). Morris (2001) deixa mais claro o papel da sociedade ao repetir a definição adotada pelo British Council of Disabled People: “Disabled people are those people with impairments who are disabled by society”, cuja tradução poderia ser: “Pessoas com deficiência são aquelas pessoas com lesão que são colocadas em situação de deficiência pela sociedade” (tradução nossa).

Nesse sentido, a tradução do termo disability como deficiência não consegue exprimir a intenção da terminologia adotada pelos precursores do modelo social. Considerando-se a etimologia da palavra – dis (prefixo de negação, ausência) + ability (habilidade, capacidade) –, torna-se mais fácil a compreensão de seu uso pela língua inglesa. A palavra disability surge no século XVI, no contexto de legislação, significando incapacidade aos olhos da lei. Interessa comparar o sentido de inability com o de disability. O primeiro termo significa que alguém não pode fazer alguma coisa, pois não tem habilidade ou conhecimento. O segundo significa que alguém não é capaz de realizar alguma coisa devido a algum problema físico ou mental2.

Na concepção dos precursores, o termo “pessoa com deficiência” carrega uma fragilidade por colocar a deficiência na pessoa. Uma tradução utilizada e originada do termo disabled people é “pessoa deficiente”, como visto em Pereira (2008). Entretanto, esse termo possui uma conotação pejorativa na língua portuguesa. Uma pessoa considerada deficiente, no Brasil, significa que possui déficits, atraso, que é inferior aos demais. Desse modo, deve-se atentar para as traduções literais e entender o contexto cultural de onde o termo foi criado para não alterar o sentido do termo proposto (PRESTES, 2010).

De acordo com Diniz (2007), para que a tradução tanto de conceitos quanto de terminologias seja bem sucedida é necessário fidelidade à teoria e à política que fundamentam os termos originais, não bastando apenas escolher termos que correspondam à tradução. Não há como traduzir para uma outra cultura carregando o sentido que é dado na cultura local, ou seja, não se deve traduzir do português para o inglês sem levar em consideração o contexto de recepção da tradução.

Oliver e Barnes (2012a) defendem que as definições podem influenciar a forma como as pessoas com deficiência são vistas como vítimas coletivas de opressão social ou como vítimas da tragédia individual. Eles ainda argumentam que as terminologias e as maneiras como são definidas possibilitam identificar e classificar, oferecendo um status de legitimidade social para definir as pessoas hábeis ou não para trabalhar. Por fim, os autores afirmam a importância da definição na predição do número desse grupo de pessoas, sendo fundamental para as políticas públicas. Essa afirmativa ganha também amparo no trabalho de Nubila et al.(2008), que ao se referirem às Classificações da Organização Mundial de Saúde (OMS), ao Código de Internacional de Doenças (CID) e à Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), ressaltam a falta de definição clara do termo deficiência ou incapacidade, aspecto que dificulta a construção de políticas de melhoria de saúde e de vida dessas pessoas.

Nessa mesma perspectiva, Eayrs, Ellis e Jones (1993) cita alguns autores da década de 1980, tais como Siperstein, Budoff e Bak (1980), que destacam como positivo o uso de rótulos ou estereótipos por acreditarem que podem ter um efeito benéfico na explicação dada às crianças para a incompetência acadêmica ou comportamento incomum de um colega. Na visão dos autores, se não houver nenhuma explicação para essa diferença na aprendizagem, as crianças podem fazer comparações desfavoráveis entre os pares com e sem deficiência.

Por outro lado, Wolfensberger (1972) enfatiza que algumas terminologias podem contribuir para a geração de rótulos nas pessoas com deficiência por se associarem a categorizações negativas. Para o autor, o termo “rótulo” é proveniente da teoria da rotulagem social, na qual os grupos mais poderosos definem a forma como os menos poderosos são percebidos e tratados. Segundo ele, rotular alguém causa uma profecia autorrealizável, ou seja, é um prognostico que, ao tornar-se uma crença, provoca a sua própria concretização. Essa teoria aponta que as pessoas tendem a agir de modo esperado conforme a rotulagem profetizada, reforçando dessa forma, as expectativas que estão por vir. O rótulo de alguém “ineducável” traz consigo a ausência de oportunidades educacionais e, consequentemente, essas pessoas terão menos competência, fazendo jus ao rótulo de alguém ineducável.

Taylor e Bodgan (1989) destacam que o rótulo para pessoas com deficiência é praticamente inevitável na sociedade e que se, por um lado, traz benefícios na compreensão da deficiência, por outro reforça a rejeição delas.

Por fim, ressalta-se a reflexão feita por Amiralian et al.(2000), que pressupõe que a imprecisão dos conceitos na literatura tem sido considerada uma fonte de dificuldades em pesquisas na área da deficiência. Na próxima seção, serão apresentadas discussões a respeito das terminologias empregadas para essas pessoas.

Recentes terminologias utilizadas no Brasil

Os termos utilizados para pessoas que possuem deficiência vêm se modificando ao longo dos anos, de acordo com o contexto e com mudanças de tendências (OLIVER, 1996b; BARTON, 1997; LOURENÇO, 2000; SASSAKI, 2002, 2003; CARVALHO-FREITAS; MARQUES, 2010; OLIVER; BARNES, 2010, 2012b; CARVALHO-FREITAS et al., 2018). Quanto à terminologia, um dos autores mais citados da área é o brasileiro Romeu Kazumi Sassaki (2002), consultor de Inclusão Escolar e tradutor oficial da Convenção da ONU (BRASIL, 2008)3.

De acordo com Sassaki (2002), a terminologia possui grande relevância, pois pode expressar uma discriminação ou uma forma inclusiva de lidar com a pessoa. Assim, uma sociedade inclusiva implica cuidados com a terminologia utilizada. Para o autor, há diversos termos para se referir às pessoas que possuem deficiência, tais como “deficiente”, “pessoas especiais”, “pessoas com necessidades especiais”, “especial”, “excepcional”, “inválido”, “normal”, “pessoa portadora de deficiência” e “pessoas com deficiência”. Barbosa Júnior (2018), afirma que o abandono de terminologias que desqualificam a pessoa é fundamental para gerar inclusão. Essa afirmação também encontra amparo, como já mencionado, na obra de Plaisance (2015).

No Brasil, um grande número de pesquisadores dedica-se aos estudos sobre deficiência sob a ótica do modelo social (CARVALHO-FREITAS, 2007; SUZANO et al., 2008; CARVALHO-FREITAS, M. N.; NEPOMUCENO, 2009; DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009; RIBEIRO; CARNEIRO, 2009; SARAIVA; MELO, 2011; GLAT; PLETSCH, 2012; DIAS; OLIVEIRA, 2013; CANTARONI et al., 2015; MORGADO et al., 2017; SILVA; FERREIRA, 2017). Entretanto, trabalhos vêm demonstrando que a terminologia “pessoa com deficiência”, mais aceita no momento, traz algumas questões que requerem reflexão.

Essas terminologias são discutidas na obra de Harpur (2012), na qual se afirma que há um debate em torno da linguagem dessa temática entre as abordagens dos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido para descrever a interação entre lesões e a sociedade. Para o autor, assim como para Clark e Marsh (2002) o termo “pessoas com deficiência” atribui déficits à pessoa e não à sociedade. Os EUA e a Austrália não seguem essa mesma abordagem, a deficiência é colocada atrás do indivíduo para enfatizar que a pessoa não deve ser definida por referência pelo seu impairment. De acordo com Harpur (2012) a terminologia ganhou mais força e mais uso devido à adoção da CRPD (UN, 2006).

Nesse sentido, percebe-se que, apesar de o Brasil ter muitos pesquisadores orientados pelo modelo social, vários utilizam a terminologia adotada nos Estados Unidos e na Austrália, conforme apontado por Harpur (2012). Novas tendências no país têm adotado outros termos, tais como “diversidade funcional”, utilizada na obra de Carvalho-Freitas et al. (2018). Mais recentemente, esse termo “diversidade funcional” tem ganhado adesão de pesquisadores da área. De acordo com Pereira (2009), o aspecto biológico que incide na deficiência pode ser responsável por alguma diferença funcional. Em vez de tratar essa incidência como uma ineficiência ou incapacidade, esse autor a explica seguindo o trabalho de Canguilhem (2009), para quem a deficiência pode ser compreendida como uma possibilidade de se instituir novas normas e formas diferentes de funcionamento.

No entanto, segundo Clark e Marsh (2002), o termo “diversidade funcional” já era discutido pelos precursores do modelo social desde 1980. Para os autores, esse termo tem sido rejeitado pelos movimentos britânicos, afirmando que, de fato, trata-se de termos estadunidenses relacionados à habilidade ou à funcionalidade das pessoas. Nesse sentido, afirmar que a deficiência pode ser vista como diversidade funcional não considera a opressão social em que pessoas com lesões físicas ou mentais podem sofrer. Desse modo, esses autores argumentam que a diversidade funcional é uma afirmação que também se aplica às pessoas sem deficiência, pois todos apresentam suas especificidades.

De acordo com Carvalho-Freitas, Silva, Tette et al.(2018), o termo diversidade funcional expressa uma forma de funcionar, de realizar tarefas e de ser como uma variação das possibilidades humanas. Contudo, esse termo tem limitações, pois, apesar de abrir novas perspectivas para se pensar a diversidade humana, não contempla o processo de exclusão nem carrega a história de luta desse grupo de pessoas.

O problema das terminologias tem sido discutido não apenas no Brasil. A falta de padronização e a ausência de consenso na literatura e na mídia a respeito do termo é recorrente em outras realidades (CHAGAS, 2006; DINIZ; MEDEIROS; SQUINCA, 2007; MADYANINGRUM, 2017; MAMUS, 2017). Madyaningrum (2017) afirma que os termos têm como objetivo resistir ao uso de rótulos que carregam a ideia de déficit.

Chagas (2006), por sua vez, afirma que o avanço dos estudos sociopolíticos e educacionais suscitou o emprego de termos que colocam a pessoa em evidência, definindo de forma exata a desvantagem. A valorização da pessoa facilita a organização de grupos para reivindicar os direitos de quem está em situação de deficiência, de tal forma que os outros reconheçam a opressão social e lutem em prol de direitos plenos de inclusão na sociedade.

Por fim, importa destacar que a terminologia deve ser entendida de acordo com o contexto e a partir das características da língua onde ela está sendo usada. Não há como traduzir para o português de modo literal, o termo disabled people. Mas, existe uma tentativa de tradução que procura algo equivalente. Entretanto, se o contexto é diferente, consequentemente, o sentido também será.

Apropriações imprecisas do termo “pessoa com deficiência”

Ainda no âmbito da terminologia, um dos textos frequentemente utilizados no campo dos Estudos sobre Deficiência, no Brasil, é o artigo produzido por Sassaki (2003), intitulado: “Como chamar as pessoas que tem deficiência?” Vários autores fazem uso desse texto (OLIVEIRA; ARAÚJO; ROMAGNOLI, 2006; FARIA; CARVALHO, 2011; GALVÃO, 2011; MAIA; CAMINO; CAMINO, 2011; MATTOS; NUERNBERG, 2011; DIAS DE FARIA; FELÍCIO; DE CARVALHO, 2013; MAMUS, 2017). Sassaki (2003, p. 5) deixa claro que, “Mundialmente, já fecharam a questão: querem ser chamadas de “pessoas com deficiência” em todos os idiomas”. Após mais de 15 anos do estudo de Sassaki (2003), percebe-se que não há esse consenso mundial na literatura, conforme discutido em países como Indonésia, Espanha e Reino Unido. O texto é finalizado com a seguinte afirmação:

A tendência é no sentido de parar de dizer ou escrever a palavra ‘portadora’ (como substantivo e como adjetivo). A condição de ter uma deficiência faz parte da pessoa e esta pessoa não porta sua deficiência. Ela tem uma deficiência. (SASSAKI, 2003, p. 5, grifo nosso).

O trabalho de Sassaki (2003), como já dito tem sido um dos mais citados na literatura na área de inclusão de pessoas com deficiência. Após esse trabalho, o abandono de vários termos pejorativos foi consolidado. Assim, palavras como, “excepcionais”, “mongol” ou “pessoa portadora de defeitos físicos” já não têm sido mais usados em trabalhos científicos recentes. Entretanto, apesar de o autor atuar em favor da inclusão e embasar-se nos pressupostos do modelo social, uma afirmação no seu texto requer reflexão. A parte do texto grifada “A condição de ter a deficiência faz parte da pessoa” é um dos pontos mais criticados pelo modelo social. Oliver e Barnes (2012b) afirmam que a terminologia “pessoa com deficiência” materializa a deficiência como um problema individual, pois ela não está na pessoa. A pessoa pode ter um impairment que, devido à ação ou omissão da sociedade, torna-se uma deficiência. Apesar de ser um termo amplamente aceito, pesquisadores, ativistas e as próprias pessoas com deficiência (ou pessoas desabilitadas) precisam estar cientes dessa conotação e do foco em que a deficiência está.

Fica evidente que, no Brasil, nem sempre há uma distinção entre a deficiência e o impairment e isso compromete o entendimento do que se quer expressar. A não utilização do termo impairment nos textos não é suficiente para explicar que não houve influência do modelo social. Os pesquisadores podem ter um posicionamento favorável às ideias do modelo e não utilizar impairment devido ao desconhecimento dessa distinção, porém a não utilização dos termos ou a falta de distinção entre eles dificulta o entendimento, pelos leitores, do que se quer expressar.

Na mesma perspectiva de Sassaki (2003), outros autores enfatizam a deficiência como parte da pessoa (GUEDES, 2012; MAMUS, 2017). Pode-se notar uma reprodução das mesmas ideias do autor em outros artigos. Ao se partir do pressuposto de que a condição de ter a deficiência faz parte da pessoa, minimiza-se o efeito das barreiras físicas e atitudinais, conforme afirmado na CRPD (BRASIL, 2008).

O termo “pessoa deficiente” foi utilizado no Brasil no final da década de 1970 e início da seguinte (MAMUS, 2017). Diniz (2007) utiliza o termo “pessoa deficiente” de modo consciente por justificar a tradução literal do termo utilizado pelos precursores disabled people. Todavia, não se pode afirmar que no período em que o Brasil utilizou esse termo houve uma apropriação brasileira consciente dessa terminologia utilizada no Reino Unido. O fato de o Brasil não adotá-lo mais não está ligado a uma reflexão crítica pautada nos princípios do modelo social, mas, sim, por seguir e adotar a CRPD (UN, 2006).

Ao discutir esse assunto, Galvão (2011) destaca que as tentativas de conceituar um fenômeno de tal ordem serão improdutivas se não tomarmos como principal objetivo a fala das próprias pessoas com deficiência ou daquelas que convivem com essas pessoas. Nesse sentido, o autor está em consonância com o slogan Nada sobre nós sem nós proposto pelos precursores do modelo social, identificando nessa postura a melhor fonte para a construção de termos e conceitos adequados para os estudos sobre deficiência.

Considerações finais

Diante das discussões postas, e da premissa das terminologias como uma mudança epistemológica pode-se afirmar que ao se modificar o paradigma teórico, modifica-se também o objeto de estudo e as estratégicas metodológicas. Esses aspectos auxiliam no entendimento da natureza social das terminologias utilizadas e possui implicações na forma de agir e lidar com as pessoas com deficiência. Se o paradigma teórico pressupõe valores e crenças que estimulam a independência, o empoderamento e a emancipação da pessoa, o objeto de estudo tende a ser o preconceito e a discriminação enfrentada pelas pessoas com deficiência, e as estratégias utilizadas são a adaptação e adequação do local para a pessoa se incluir socialmente. Por outro lado, se o paradigma teórico pressupõe crenças da cura da deficiência, o objeto de estudo torna-se a doença e as estratégias metodológicas são o tratamento dessa doença, individualizando desse modo a deficiência.

Esta pesquisa constatou a importância das terminologias para a identificação das pessoas, para o reconhecimento da própria história e para não rotular a deficiência. Embora o termo apropriado no Brasil seja “pessoa com deficiência”, pode-se verificar que não há um consenso na literatura a respeito da terminologia. De acordo com a CRPD da ONU, a nomenclatura é um termo em evolução e pode se modificar culturalmente.

O cuidado ao se fazer a tradução de uma terminologia foi constatado nesta pesquisa como um aspecto de grande importância. No âmbito dos projetos de inclusão social e dos pressupostos do modelo social, o pesquisador brasileiro, ao traduzir sua pesquisa para o inglês, deve optar pela terminologia “pessoa com deficiência”, mas traduzi-la pelo termo disabled people em vez de people with disability, para que o texto não seja alterado no campo de chegada. Em outras palavras, espera-se que o texto seja compreendido sem alterações, pois as ideias podem ser favoráveis ao pensamento dos autores precursores do modelo social e a opção da escolha da terminologia não seguir essa mesma alternativa. O pesquisador brasileiro precisa escolher o termo adequado aos seus pressupostos, de modo que suas ideias não sejam compreendidas de forma errônea pelos leitores estrangeiros.

A diferença entre os termos disability e impairment – deficiência e lesão – também precisa ser considerada quando se trata da circulação das terminologias ancoradas no modelo social britânico. Não se pode fazer uma fusão desses termos, pois não significam o mesmo fenômeno. Embora o modelo social britânico defenda o uso do termo disabled people, ele não se adequa ao contexto brasileiro. Esse termo, traduzido para o português, seria “pessoa deficiente” e no Brasil essa terminologia carrega conotações pejorativas, rotulando a pessoa como alguém que possui um atraso ou déficit. Pode-se afirmar que a utilização do termo “pessoa deficiente” no contexto brasileiro seria um retrocesso na história das pessoas com deficiência em termos histórico e cultural.

É preciso considerar questões culturais ao se fazer a tradução de um termo, como a circulação de ideias no campo de chegada. Verificou-se também que, de acordo com a operação de negociação discutida por Prestes (2010), o termo “pessoa com deficiência” foi negociado, pois, se fosse traduzido de modo literal como “pessoa deficiente”, teria um significado pejorativo para a cultura brasileira. Por fim, corroborando as ideias de Prestes (2010), a tradução quase sempre não será a mesma, pois acarretará perdas e cortes.

Nesse sentido, o próprio modelo social sugere que a elaboração da tradução de documentos envolva a comunidade de pessoas com deficiência. Assim, a tradução não seria apenas o trabalho de um indivíduo, mas de mais pessoas, caracterizadas principalmente pela presença do grupo minoritário das pessoas com deficiência.

Por fim, reconhece-se que há ainda muito a se discutir sobre o tema, pois diversos aspectos não foram abordados nesta pesquisa, mas, evidentemente, merecem investigações futuras. Entre esses temas, pode-se citar a apropriação da terminologia em mídia como jornais e revistas, veículos de grande importância para a difusão desses conceitos. Uma possibilidade para futuros trabalhos é analisar a apropriação das ideias, defendidas em Chappell, Goodley e Lawthom (2001) e Goodley (2001), sobre a importância do modelo social para inclusão das pessoas com dificuldades de aprendizado.

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Notas

[1] Para uma ampla discussão a respeito da relação de diversos tipos de lesão e aspectos psicológicos, o leitor pode se referir ao trabalho de Goodley (GOODLEY; LAWTHOM, 2007).

2 Nesta parte do texto, utilizaram-se definições tiradas de dicionários. Importa destacar que em dicionários fica visível ainda a predominância da visão do modelo individual. Por exemplo: no dicionário de Cambridge: “a physical or mental condition that makes someone unable to act in a way that is considered usual for most people” (“Uma condição física ou mental que torna alguém incapaz de agir de uma maneira que é considerada normal para a maioria das pessoas”). Essa mesma questão também ocorre em dicionários em português para o termo deficiência, conforme retirado de Michaelis: “1 (MED) Mau funcionamento ou ausência de funcionamento de um órgão. 2 Ausência de qualidade ou de quantidade; carência, falta, lacuna. 3 Falta de algo de que se necessita”.

3 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência vem consolidar uma nova percepção da deficiência como uma questão de Direitos Humanos. Ela reconhece o direito à igualdade de condições de todas as pessoas com deficiência e sua plena inclusão na comunidade (BRASIL, 2008).

Correspondência

Maristela Ferro Nepomuceno – Universidade Federal de São João Del Rei, Núcleo de Pesquisa em Acessibilidade, Diversidade e Trabalho (NACE), Departamento de Psicologia, Praça Dom Helvécio, n. 74, São João Del Rei, Minas Gerais – Brasil.

CEP: 36307-024

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