http://dx.doi.org/10.5902/1984686X42685

A filantropia como gênese da Educação Especial

Philanthropy as the genesis of Special Education

La filantropía como genesis de la Educación Especial

Márcia de Souza Lehmkuhl

Pedagoga doutora na Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

E-mail: lehmkuhlms@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2405-2043

Recebido em 01 de março de 2020

Aprovado em 23 de junho de 2021

Publicado em 27 de julho de 2021

RESUMO

O objetivo deste estudo é discutir a filantropia como a gênese da Educação Especial a partir das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes). As Apaes, como instituições para o atendimento das pessoas com deficiência, foram se popularizando e se disseminaram, constituindo, gradativamente, um sistema de Educação Especial, com a existência de mais de duas mil unidades espalhadas em todo o país, com federações estaduais e uma federação nacional. Como campo empírico, elegeu-se a revista Mensagem da Apae no período de 1974 a 2016, totalizando 105 edições. Para analisar o conteúdo das revistas, buscaram-se as contribuições de Gramsci (2001; 2014), delimitando categorias de análise, como Estado Integral e hegemonia. A partir das análises, dividiu-se o período histórico em três momentos ligados à filantropia: filantropia tradicional, profissionalização da filantropia e a nova filantropia e o “terceiro setor”. Concluiu-se que a filantropia acompanha a Educação Especial desde os seus primórdios, embora tenha sofrido modificações ao longo do tempo, e que a marca da deficiência é que define a ajuda aos desvalidos, a caridade e a benemerência. O atendimento às pessoas com diagnóstico de deficiência intelectual e múltipla em instituições privadas filantrópicas, especialmente nas Apaes, deu-se com o aval do Estado.

Palavras-chave: Educação Especial; Filantropia; Terceiro setor.

ABSTRACT

The objective of this study is to discuss philanthropy as the genesis of Special Education based on the Associations of Parents and Friends of the Exceptional (Apaes). The Apaes, as institutions for the attendance of people with disabilities, were popularized and disseminated, gradually constituting a true subsystem of Special Education, with an existence of more than two thousand units spread across the country, with state federations and a national federation. As an empirical, field was elected the magazine Mensagem da Apae from the period of 1974 to 2016, totaling 105 issues. To analyze the content of the magazines we sought the contributions of Gramsci (2001; 2014), delimiting categories of analysis, such as Integral State and hegemony. Based on the analysis we divided the historical period in three moments linked to philanthropy: traditional philanthropy, professionalization of philanthropy and the new philanthropy and the “third sector”. It was concluded that the philanthropy accompanies the Special Education since its beginnings, although the philanthropy has undergone changes over time, the mark of disability is what defines aid to the helpless, the charity and the benevolence. The attendance to people diagnosed with intellectual and multiple disabilities in philanthropic private institutions, especially in APAEs, took place with the approval of the State.

Keywords: Special Education; Philanthropy; Third sector.

RESUMEN

El objetivo de este estudio es discutir la filantropía como génesis de la Educación Especial de Asociaciones de Padres y Amigos de los Excepcionales (APAES). Apaes, como instituciones para educación de personas con discapacidad, se han popularizado y difundido, constituyendo gradualmente un verdadero subsistema de Educación Especial, con existencia de más de dos mil unidades repartidas por todo el país, con federaciones regionales y una federación nacional. Como campo empírico seleccionamos la revista Mensagem da Apae de 1974 a 2016, totalizando 105 ediciones. Analizar el contenido de las revistas buscadas en el razonamiento de Gramsci (2001; 2014), delimitando categorías de análisis, como Estado integral y hegemonía. Dividimos el periodo histórico en tres momentos vinculados a la filantropía, denominado: filantropía tradicional, profesionalización de la filantropía y una nueva filantropía y el “tercer sector”. Concluya que una filantropía acompaña a una Educación Especial desde sus comienzos, aunque una filantropía ha sufrido cambios con el tiempo, una señal de dificultad que define la ayuda a los desfavorecidos, una caridad y una benevolencia. La educación a personas diagnosticadas con discapacidad intelectuales y múltiple en instituciones filantrópicas privadas, especialmente en APAES, se llevó a cabo con la aprobación del Estado.

Palabras clave: Educación Especial; Filantropía; Tercer sector.

Introdução

Este estudo objetiva discutir o papel da filantropia como gênese na área da Educação Especial no Brasil a partir das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) e da Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Fenapaes). As Apaes, como instituições para o atendimento das pessoas com deficiência, foram se popularizando e constituindo, gradativamente, um sistema na área da Educação Especial, com a existência de mais de duas mil unidades espalhadas em todo o país, com federações estaduais e uma federação nacional.

Como percurso metodológico, analisamos as revistas Mensagem da Apae, da Federação Nacional das Apaes (Fenapaes), no período de 1974 a 2016, totalizando 105 edições. Para analisar o conteúdo das revistas, buscamos as contribuições de Gramsci (2001), delimitando categorias de análise, como, Estado Unitário (Integral) e hegemonia.

A trajetória da Fenapaes evidenciou as formas pelas quais o sentido de filantropia foi se modificando, não para constituir uma nova forma de solidariedade, mas, ao contrário, para garantir a manutenção do status quo em relação aos fundamentos ético-políticos que servem de base para o descompromisso do Estado com os destinos dessa população.

A primeira Apae foi criada em 1954, no Rio de Janeiro, capital do Brasil, exatamente no período de efervescência política, entre o populismo do governo de Getúlio Vargas e as promessas desenvolvimentistas de Juscelino Kubitschek (SILVA, 1995). A partir da iniciativa de pais de pessoas com deficiência, com a mesma condição econômica, social e cultural, além de profissionais da área da saúde (médicos), profissionais liberais e professores envolvidos com a área da Educação Especial (JANNUZZI; CAIADO, 2013; SILVA, 1995), institui-se a Apae como instituição privada de cunho filantrópico e assistencial ― ação influenciada por representantes da Embaixada dos Estados Unidos que estavam no Brasil e de Helena Antipoff1 (JANNUZZI; CAIADO, 2013).

Idealizada a partir de um modelo de organização estadunidense de Educação Especial, a prioridade de sua criação foi o atendimento na área, sob a perspectiva de que essa população pouco poderia contribuir para o desenvolvimento econômico e, por causa de suas limitações inerentes, ela deveria ser objeto da benemerência e da ajuda aos desvalidos.

Na medida em que o pressuposto ideológico vigente considerava que determinada parcela da população ― no caso, as pessoas com deficiência ― não apresentava condições para integrar-se de forma produtiva ao meio social, deveria ser objeto de ajuda aos desvalidos, deslocando-se do campo do direito para o da benemerência e da filantropia. Assim, a “benemerência, como um ato de solidariedade, passa a se constituir em práticas de dominação, que destituem o alvo das ações de caridade da condição de sujeito de direitos” (CARVALHO, 2008, p. 10).

A partir das análises das revistas foi possível compreender que as proposições em relação à filantropia, ao longo do período analisado (1974-2016), foram se reorganizando, mas sem perder a essência, que é o apelo emocional focado na deficiência, na patologia e na incapacidade da população atendida pelas instituições.

A filantropia e a organização da Educação Especial

O termo “filantropia”, etimologicamente, remonta à Grécia Antiga, com significado genérico original de “amor pela humanidade” (philos, “aquele que gosta de”, mais anthropos, “homem”). Na Idade Média, passou a ser associada à caridade cristã. Segundo Jannuzzi (2006, p. 94) “no vocabulário cristão é entendida como amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus. Seria benevolência, complacência, compaixão”. A palavra ganhou outro sentido na sociedade industrial, quando, a partir de uma relação estabelecida com a perspectiva platônica, filantropia indicava três aspectos: saudação, ajuda e hospitalidade, tendo sua acepção se fixado somente na ajuda ― sobretudo ajuda aos desvalidos ― em nome da caridade cristã (ABRAGNANO, 2007).

A filantropia é o princípio de atendimento das instituições privadas na área da Educação Especial, com concordância do Estado, este entendido como um organismo próprio de um grupo que se organiza a partir de uma relação entrelaçada entre a sociedade civil (conjunto de relações na sociedade capitalista) e a sociedade política (o Estado como governo) para a manutenção das relações de poder e de hegemonia (GRAMSCI, 2014).

Com o advento da sociedade moderna capitalista, a filantropia passou a ser entendida como antítese ao direito, à cidadania (GARCIA, 1998). O uso corrente do termo cidadania foi sendo banalizado pelas políticas liberais, nas quais o princípio de igualdade contradiz o sistema capitalista e, por isso, a “cidadania constituiu-se, de fato, como um dos ideais universais do liberalismo os quais, com o tempo, foram restringindo-se à classe burguesa” (GARCIA, 1998, p. 34).

Nesse sentido, a filantropia foi se reposicionando no movimento apaeano ao longo dos 42 anos analisados. Para entendermos esse reposicionamento da Fenapaes, dividimos as análises em três períodos: de 1974 a 1990 ― a filantropia “tradicional”; de 1990 a 2006 ― a profissionalização da filantropia; e de 2006 a 2016 ― a nova filantropia.

A filantropia “tradicional”

Nesse primeiro período de análise das edições da Mensagem da Apae (1974 a 1990), constatamos o envolvimento de iniciativas de base vinculadas ao cuidado que a população com deficiência demandava. Essa valorização se expressou, por exemplo, em matéria divulgada em comemoração aos 20 anos de existência das Apaes, na qual a tônica residiu na divulgação do apoio recebido por parte dos familiares e amigos, o que nos mostra a força do cuidar, do proteger os filhos com deficiência, a filantropia caritativa embutida nas ações em prol da pessoa com deficiência (FENAPAES, 1982).

A filantropia se manifestava em iniciativas de organização de feiras como a “Feira da Bondade”, promovida pela Apae de São Paulo, e tantas outras realizadas pelo país que, de um lado, buscavam subvenção de contribuintes individuais, de caráter ligado à fraternidade para aqueles que não possuíam condições de se autossustentarem, e, de outro, apelavam à caridade cristã, que envolvia boa parte da sociedade brasileira por meio de iniciativas como as feiras para vendas de produtos a baixo custo e pelos serviços de voluntariado.

Sobre esse assunto, D’Antino (2013) coloca que os recursos financeiros recebidos em feiras e campanhas promocionais tinham fortes apelos emocionais ao sentimento humanitário da comunidade, “vinculados diretamente à imagem de ‘impotência’ produzida e impressa no filho deficiente” (D’ANTINO, 2013, p. 67), como se a dinâmica de funcionamento das instituições estivesse atrelada à condição do filho deficiente “como ‘produtor de bens de consumo’ (a deficiência se torna mercadoria); vende-se ou troca-se ideal de bem por contribuição financeira à instituição” (D’ANTINO, 2013, p. 67).

Outra estratégia de mobilização da comunidade foi o voluntariado, uma atuação relevante para as unidades das Apaes e determinante para os princípios de filantropia como uma representação de “amor ao próximo”, doação e caridade.

De acordo com Coutinho (2008, p. 14), “o voluntarismo é mais para as elites dedicadas às causas sociais e aos pobres que, sem alternativa de sobrevivência, doam seu tempo-livre à causa”. Para a autora, o voluntariado é uma forma de o Estado economizar, tornando mais barata a ação social, pautada na relação custo/benefício, com uma avaliação positiva pela sociedade, pelo Estado, pelo mercado e pelos organismos internacionais (COUTINHO, 2008).

A relação entre a filantropia e a fé religiosa também é revelada nas edições da Mensagem da Apae, recebendo destaque inicialmente por representantes das unidades institucionais e depois pela Fenapaes. As instituições de atendimento eram apontadas como espaços “abençoados”, espaços de amor e de caridade.

Escorsim (2008) nos ajuda a refletir acerca da filantropia e da religião. A autora considera que a filantropia de ajuda ao outro e, como prática social, foi historicamente referendada pela Igreja Católica, que “alicerçou as condutas morais de seus seguidores na caridade e amor ao próximo, ainda que num contexto europeu dividido por estamentos sociais rígidos, determinantes da ocupação das classes naquelas sociedades” (ESCORSIM, 2008, p. 1). Na sociedade industrial, no capitalismo como produtor de desigualdades brutais, no antagonismo de classe entre trabalho e produção, a filantropia assume outra roupagem, como forma de consciência social de modo individual.

A propriedade privada dos meios de produção e a mercantilização como substrato da sociedade capitalista passaram a determinar o lugar social daqueles trabalhadores inseridos no processo produtivo, dos quais se extraía a mais-valia, e daqueles cuja força de trabalho não interessava imediatamente ao capital e que, portanto, cumpriam a função de exército industrial de reserva. “A estes relegados do processo produtivo, restavam apenas a caridade, a benemerência, e a filantropia, como resposta às suas indigências” (ESCORSIM, 2008, p.1).

Segundo D’Antino (2013), as instituições privadas de caráter filantrópico-assistencial estão sustentadas em dois pilares: “o poder e a filantropia ― entendidos como forças que se movem em direções à manutenção do status quo institucional” (D’ANTINO, 2013, p. 56). Para a autora, as instituições especializadas dessa natureza, como as Apaes, têm “características advindas do caráter paternalista e de benemerência, expresso na prática institucional, que privilegia os ‘cuidados’ e a ‘assistência’ à clientela” (D’ANTINO, 2013, p. 13) e não o ensino, a educação diretamente.

A profissionalização da filantropia

A partir dos anos de 1990 até 2006, a Fenapaes iniciou um processo de profissionalização da filantropia. É o que constatamos a partir da leitura nas edições da Mensagem da Apae que evidenciaram a busca por autofinanciamento e disputa pelo recurso público vinculado à educação.

Segundo Lanna Júnior (2010), até a promulgação da Constituição de 1988, a Educação Especial estava ligada ao Ministério da Educação e Cultura, por meio do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), e as associações filantrópicas e assistenciais não discutiam direitos das pessoas com deficiência, mas sim, a sua tutela (LANNA JÚNIOR, 2010). Com as mudanças ocorridas nessa década, impôs-se uma reorganização às instituições privadas de caráter filantrópico-assistencial, como as Apaes.

Nesse contexto, a profissionalização da filantropia pela Fenapaes ocorreu principalmente na busca de envolvimento empresarial, com mensagens de valorização à ajuda “não no sentido comercial, mas no sentido filantrópico e no sentido social” (FENAPAES, 1981, p. 4). A mensagem divulgada pelos apoiadores (pessoas físicas e jurídicas) da “causa apaeana” se concentrava em elementos emocionais, especialmente nos sentimentos de solidariedade e compaixão. A proposta era associar a imagem institucional de caráter assistencial-filantrópico e a das pessoas com deficiência à empresa patrocinadora (D’ANTINO, 2013).

Para D’Antino (2013, p. 153), a principal propaganda era pela “causa da deficiência”, que oculta a mobilização ao direito a saúde, assistência e educação das pessoas com deficiência; “aliás, esse sentimento humanitário, vinculado a valores afeitos ao espírito cristão, vem sendo veiculado pelos diversos meios de comunicação de que dispõem as instituições” (D’ANTINO, 2013, p. 156).

D’Antino (2013) analisou o papel dos sujeitos com deficiência intelectual atendidos nas instituições das Apaes e a relação com a filantropia, considerando que os alunos são capazes de conseguir sensibilizar a comunidade pelo apelo emocional em nome da sua condição de deficiência. Segundo a autora, o objetivo institucional é manter esses sujeitos na condição de “incapazes/capazes” em atendimento segregado (D’ANTINO, 2013).

Conforme Carvalho (2008), o Estado se apropriou da prática assistencial como expressão da benemerência, deslocando para a seara das instituições privadas as ações assistenciais. “Ao Poder Público caberia somente catalisar e direcionar os esforços de solidariedade social da sociedade civil” (CARVALHO, 2008, p. 12).

Na Educação Especial, as instituições privadas assistenciais assumiram a educação das pessoas com deficiência intelectual e múltipla desde o início, diferentemente de como ocorreu na educação regular, não como forma de omissão do Estado, mas como uma negociação do público para o atendimento, um “adiantamento” das proposições de publicização do projeto de reforma do Estado de 1995. Bueno e Kassar (2005) corroboram esse entendimento quando afirmam que, “de certa forma, a história da educação especial seria ‘exemplar’ e mesmo ‘antecipadora’ do processo de publicização proposto pelo governo federal a partir da reforma do Estado” (BUENO; KASSAR apud PERONI, 2009, p. 2).

As reformas políticas e administrativas da década de 1990 consolidaram a transferência da educação especial para as instituições não-governamentais (ONGs)2 do “terceiro setor”3, como as Apaes, reconfigurando a sua posição no Estado (PERONI, 2009).

Com isso, a sociedade civil foi chamada a participar da execução das políticas sociais como uma forma de diminuição dos gastos públicos e como estratégia de repasse das políticas sociais aos organismos não governamentais do “terceiro setor”. Para Fontes (2010), essa relação obscurece a relação entre público e privado, pois esconde a contraposição fundamental que se expressa na relação entre público (governo) e privado (empresa), servindo ainda para amenizar os conflitos sociais e sensibilizar a sociedade por meio da filantropia.

A nova filantropia e o “terceiro setor”

A partir das reformas de 1990 e da participação da sociedade civil de modo efetivo na execução das políticas sociais, já consolidada na Educação Especial, a Fenapaes divulgou uma nova reorganização institucional, com sua marca passando a ser vinculada a uma gestão administrativa “bem-sucedida”. Na revista Mensagem da Apae de 2006 ― ano que delimitamos para iniciar a discussão a respeito da nova filantropia ― as matérias evidenciam as mudanças estruturais na Fenapaes e a reorganização administrativa na busca de um planejamento estratégico de sustentabilidade para obter autonomia e independência institucional.

Essas medidas foram anunciadas na seção “Palavra do Presidente” na edição nº 94, de 2007, pelo presidente da Fenapaes, Eduardo Barbosa, divulgando que, em 2006, “muitos foram os investimentos, tanto em pessoal quanto em recursos físicos necessários para reestruturarmos a Federação Nacional das Apaes” (BARBOSA, 2007, p. 4) ― uma reestruturação visando potencializar a capacidade gerencial-administrativa e de sustentabilidade dos serviços das Apaes.

A partir desse período, a Fenapaes foi se reposicionando como instituição do “terceiro setor”, em busca de uma sustentabilidade financeira e de autonomia nas suas ações, passando a configurar-se como uma rede de instituição privada na área da Educação Especial voltada para o mercado.

De acordo com Montaño (2008), os encaminhamentos do poder público nas áreas da educação, serviço social e saúde foram sendo redirecionados para o viés da filantropia, de terceirização dos serviços, de privatização. Na educação, a transferência para as instituições privadas e para as organizações não-governamentais foi intensificada, especialmente a partir dos anos de 1990. Com isso, o governo acatou proposição do “terceiro setor” para a educação pública estatal, segundo a qual o Estado diminuiu a sua função pública e ampliou a sua função privada (MONTAÑO, 2008).

A área da Educação Especial se diferencia porque desde a sua criação foi predominantemente ocupada pelas instituições privadas de caráter filantrópico-assistencial que se configuraram como ONGs. A transferência de recurso público estatal para essas instituições se caracterizou, ao longo do tempo, como forma de publicização. Com os encaminhamentos das políticas neoliberais, o que se distinguiu foi a regulamentação dessas instituições pela nova filantropia, como “terceiro setor”, consolidando o papel das instituições privadas assistenciais que já assumiam esse papel.

O “terceiro setor” desenvolve um papel ideológico claramente funcional aos interesses do capital no processo de reestruturação neoliberal, no caso, promovendo a reversão dos direitos de cidadania por serviços e políticas sociais e assistenciais universais, não contratualistas e de qualidade, desenvolvidas pelo Estado e financiadas num sistema de solidariedade universal compulsória (MONTAÑO, 2010, p.19)

De acordo com Montaño, o projeto neoliberal de “terceiro setor” retira a responsabilidade do Estado pelos serviços e políticas sociais financiados pelo governo estatal e pela iniciativa privada e autorresponsabiliza os beneficiários e a ação filantrópica pela gestão da política social. Assim, a “resposta às necessidades sociais deixa de ser uma responsabilidade de todos [...] e um direito do cidadão, e passa agora, sob a égide neoliberal, a ser uma opção do voluntário que ajuda o próximo” (MONTAÑO, 2010, p. 22), especialmente pela benemerência caritativa.

Em relação ao movimento apaeano, o projeto neoliberal de “terceiro setor” não modificou a sua atuação social; ao contrário, consolidou a ação da Fenapaes, desobrigou o Estado de financiamento das atividades na área e impôs uma reorganização institucional voltada para a sustentabilidade.

Em nome dessa nova configuração de filantropia, a Fenapaes foi se adequando ao novo modelo, profissionalizando-se a cada gestão administrativa, alterando o seu estatuto e ampliando o controle sobre as filiadas (JANNUZZI; CAIADO, 2013). A Federação se preocupou com a identificação do movimento apaeano e patenteou a marca Apae (SILVA, 1995), definindo uma padronização do símbolo, da bandeira para ser utilizada por todas as filiadas, como também o protocolo oficial dos eventos, o envio de planejamentos e relatórios de forma sistemática (JANNUZZI; CAIADO, 2013), criando uma unidade institucional e uma rede de atendimento.

A marca da Apae, a figura da flor margarida, com pétalas brancas, ladeadas por duas mãos em perfil, uma em posição de amparo e a outra, de orientação (SILVA, 2017), demonstra o apelo ao cuidado, à filantropia e ao atendimento caritativo. Segundo Silva (2017), as mãos representam, de um lado, o dever de cuidar pela vida da pessoa com deficiência e, de outro, a atuação das Apaes na prestação de serviços na área.

A defesa de uma marca e de um símbolo forte evidencia o direcionamento na causa apaeana de unificação da marca em nome da filantropia e da benemerência. Os princípios ligados à “causa apaeana”, à “causa do deficiente”, repetiram-se e se fortaleceram ao longo do período analisado, assim como as proposições de trabalho voluntário.

O voluntariado, segundo os fundamentos da nova filantropia do “terceiro setor”, reconfigurou-se, envolvendo não somente membros da elite e da classe média, mas ― como amplamente valorizado pelos organismos multilaterais ―, também a proposição de prestação de serviço à comunidade como forma de apaziguar as desigualdades sociais e de desonerar o Estado.

Assim, o objetivo de desonerar o Estado e retirar a responsabilidade de intercessão na “questão social”, transferindo-a para o “terceiro setor”, não se originou por motivos de eficiência dos serviços no setor privado, como anunciado pelo Estado, e nem por razões financeiras. Para Montaño (2010), o motivo

é fundamentalmente político-ideológico: retirar e esvaziar a dimensão de direito universal do cidadão em relação a políticas sociais (estatais) de qualidade; criar uma cultura de autoculpa pelas mazelas que afetam a população, e de auto-ajuda e ajuda mútua para o seu enfretamento; desonerar o capital de tais responsabilidades, criando, por um lado, uma imagem de transferência de responsabilidades e, por outro, a partir da precarização e focalização (não-universalização) da ação social e do “terceiro setor”, uma nova e abundante demanda lucrativa para o setor empresarial (MONTAÑO, 2010, p. 23).

Segundo Peroni (2008), a sociedade civil é chamada a participar da execução das políticas e não da fiscalização, diminuindo a sua participação no controle social, nos conselhos e na fiscalização dos gastos públicos. A adesão da sociedade civil à execução das políticas sociais resulta em uma participação acrítica nos encaminhamentos das políticas econômicas neoliberais (PERONI, 2008).

Grande parte das entidades sem fins lucrativos de utilidade pública, segundo Fontes (2010), está sob a responsabilidade da classe empresarial (fundações, institutos) ou é por ela financiada (ONGs) com repasse de recursos alardeado como compromisso social dos empresários, mas que serve, fundamentalmente, para amenizar os conflitos sociais e sensibilizar a sociedade em nome da filantropia.

A filantropia tem a sua própria lógica e atende interesses específicos, nem sempre coincidentes com os de seus beneficiários. Seus compromissos estão ligados à manutenção da ordem, da contenção social (UHLE, 1992). Desse modo, a filantropia, na ordem do Estado neoliberal, busca a conciliação de classe pela caridade, sem resolver as diferenças econômicas e sociais.

Bueno (2004, p. 109) salienta que o caráter assistencialista perpassa “toda a história da educação especial em nosso país”, com um caráter de uma política de benevolência, de “favor”, de “proteção” a uma parcela da população desassistida das políticas sociais (BUENO, 2004). Ao abordar esse assunto, D’Antino (2013, p. 50) confirma que a atuação da Educação Especial é “tradicionalmente marcada pelo assistencialismo, [que,] tendo como palavras-chave a caridade, benemerência e filantropia, fez dessas associações o veículo de manutenção desses valores, por meio dos constantes apelos à ‘consciência cristã’ das pessoas”.

Enfim, apesar de modificações nas formas pelas quais a filantropia foi se expressando nas ações das Apaes, inicialmente de maneira mais tradicional, com iniciativas individuais de apelo à fraternidade e à caridade cristã por meio de eventos localizados, e depois, por uma filantropia profissional, capitaneada pela Fenapaes, com um esquema mais organizado para assumir os serviços da educação especial, o essencial permaneceu: o Estado continuou terceirizando os serviços de educação especial para as entidades privado-filantrópicas, desresponsabilizando-se pela educação de parcela da população considerada improdutiva para o capital e esta, ficando à mercê da caridade e da benemerência.

Considerações finais

Verificamos, com este estudo, que a filantropia e a caridade vêm acompanhando a Educação Especial no Brasil desde os seus primórdios. A educação das pessoas com deficiência começou em instituições privadas criadas para o atendimento de um público que não se encaixava no ensino oficial brasileiro (RAFANTE; LOPES, 2009).

O modelo de atendimento às pessoas com deficiência, especialmente as com diagnóstico de deficiência intelectual e múltipla, deu-se em instituições privado-filantrópicas, com aval das políticas governamentais na área da Educação. Esse atendimento não se dirigiu somente aos filhos dos pais de classe média e alta, mas de toda a população que não contribuiria para o desenvolvimento econômico do país, em razão de suas limitações inerentes, e, portanto, objeto da benemerência e da ajuda aos desvalidos.

Os princípios de filantropia e da caridade constituíram e constituem uma vertente fundamental na Educação Especial no Brasil, desde o início do século XX4, com a criação e proliferação de instituições privadas de caráter filantrópico e assistencial. Para Jannuzzi e Caiado (2013, p. 27), “desde a fundação da primeira unidade [Apae] no Rio de Janeiro, há menção à arrecadação de fundos para auxílio, o que demonstra a persistência entre nós de ligar o atendimento dessa população à caridade”.

A filantropia passa a ser entendida como antítese ao direito, à cidadania (GARCIA, 1998). Em uma sociedade capitalista, o conceito de cidadania perde o sentido; é antagônico a uma sociedade hierarquizada por classes sociais onde alguns têm mais direitos que outros ― uma sociedade na qual a concessão de direitos pelo Estado está ligada à produção de bens materiais e culturais de forma desigual (GARCIA, 1998).

Nesse antagonismo é que se constitui a filantropia em uma sociedade que produz diferenças sociais: em lados diferentes, a extrema pobreza de grande parte da população com vários problemas sociais, uma classe média que luta para manter um padrão de consumo e uma elite extremamente rica que exibe seus privilégios. Essa diferenciação causa uma convulsão social que gera atitudes vinculadas à filantropia por parte da burguesia (GARCIA, 1998). Nesse sentido, a filantropia é representada por atitudes de ajuda aos desvalidos como forma de “minimizar” as diferenças sociais e os conflitos de classe social.

Gradativamente, as Apaes e a sua Federação Nacional foram assumindo a preponderância do atendimento privado-filantrópico, especialmente no que se refere aos sujeitos com deficiência intelectual. Sua importância social e política foi se solidificando até constituir-se na maior rede privada de Educação Especial do país, razão pela qual pode ser considerada como a expressão mais qualificada da relação entre o público e o privado nesse campo da Educação.

A rede apaeana se reorganizou ao longo do tempo para a manutenção de sua hegemonia na área, entendendo hegemonia como uma forma dirigente de influenciar as políticas, a cultura e a ideologia e, assim, conquistar alianças e dominar, por meio da persuasão e do consenso, os encaminhamentos na Educação Especial.

O Estado educa o consenso por meio de “organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (GRAMSCI, 2014, p. 121). O autor acentua que, “nesta multiplicidade de sociedades particulares, de caráter duplo ― natural e contratual ou voluntário ― uma ou mais prevalece relativamente ou absolutamente, constituindo o aparelho hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil)” (GRAMSCI, 2014, p. 257).

As trajetórias institucionais das Apaes e da Fenapaes demostram que, embora a filantropia tenha sofrido modificações com o decorrer dos tempos, a marca de ajuda aos desvalidos, da caridade e da benemerência permanece. Se antes ela envolvia somente as contribuições individuais coletadas em feiras beneficentes, a partir de 1990 conquistou apoio empresarial, o que oportunizou acordos com grandes empresas para realizar campanhas de arrecadação de recursos.

As Apaes não tardaram a assumir os princípios do que chamamos de “nova filantropia”, articulada a uma reorganização institucional voltada para a aquisição de uma marca forte e a incorporação dos encaminhamentos do “terceiro setor”, com estratégias de sustentabilidade, autonomia e independência institucional.

Em síntese, apesar das modificações nas formas pelas quais a filantropia foi se expressando nas ações das Apaes e na área da Educação Especial, o essencial permaneceu: o Estado continua terceirizando os serviços na área para as entidades privado-filantrópicas, especialmente para os “desvalidos”, como único espaço de atendimento às pessoas com diagnóstico de deficiência intelectual e múltipla ― aspecto divulgado pela própria instituição, ao longo do tempo, como de excelência, cercada de sentimentos caritativos e de benemerência.

Referências

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BARBOSA, Eduardo. Palavra do presidente. Mensagem da Apae, ano 39, n. 94, p. 4, 2007.

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Notas

1 Ver RAFANTE, Heulália Charalo. Helena Antipoff, as sociedades Pestalozzi e a educação especial no Brasil. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.

2 Foi no governo de Fernando Collor de Mello que as instituições assistenciais ganharam o estatuto de organizações não governamentais (MELETTI, 2006).

3 Usamos, em todo o texto, a expressão “terceiro setor” entre aspas por entendermos que esse conceito se baseia em uma visão segmentadora da realidade social, com forte ligação com a reestruturação do capital pelo neoliberalismo, que desresponsabiliza o Estado das questões sociais. Consideramos esse conceito ideológico, “portador da função de encobrir e desarticular o real” (MONTAÑO, 2010, p. 18).

4 Bueno (2004) explica que no período imperial, especificamente no início da segunda metade do século XIX, ocorreram as primeiras iniciativas em relação ao atendimento de crianças com deficiências com a criação de dois institutos imperiais destinados à educação de crianças surdas e cegas que permanecem como únicas até o início do século XX, quando se registrou a disseminação de escolas especiais mantidas por instituições religiosas.

 

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