http://dx.doi.org/10.5902/1984686X42075
Ações de políticas públicas da educação especial nas escolas indígenas acreanas
Public policy actions for special education in indigenous schools in Acre
Acciones de políticas públicas sobre educación especial en las escuelas indígenas del estado de Acre
Geisa Cristina Batista1
Doutoranda na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.
geisa.unir@gmail.com
ORCID – https://orcid.org/0000-0002-0657-7252
Maria da Piedade Resende da Costa
Professora doutora na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.
mariadapiedadecostac@gmail.com
ORCID – https://orcid.org/0000-0002-7420-5602
Fátima Elisabeth Denari
Professora doutora na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.
ORCID – https://orcid.org/0000-0001-9248-6359
Recebido em 28 de janeiro 2020
Aprovado em 15 de julho de 2020
Publicado em 21 de agosto de 2020
RESUMO
O direito à educação de crianças indígenas em situação de deficiência foi resguardado no Brasil, por meio de acordos internacionais, a partir de 2007. Nesse sentido, esta pesquisa objetivou identificar se e como ocorriam as inter-relações entre a Educação Especial e a Educação Escolar Indígena, nas ações de políticas públicas do Acre. Trata-se de pesquisa qualitativa, do tipo exploratória, com abordagem de análise por meio do ciclo de políticas. Três gestores estaduais participaram. O corpus foi constituído por entrevistas e legislações. Os resultados demonstraram o desafio da operacionalização da legislação, devido as peculiaridades geográficas, climáticas e culturais. A disseminação da Política de Educação Especial em discussões interculturais seria viabilizada durante outros processos formativos docentes. Concluiu-se que a Educação Especial não havia conseguido discutir suas ações nas escolas indígenas, na sua totalidade e que as inter-relações entre a Educação Especial e a Educação Escolar Indígena estavam em processo inicial, devido à mudança de Governo. Para futuras pesquisas, sugere-se de um lado investigar as formas apropriadas de como implantar um Sistema de Ensino específico para escolas indígenas, já que consta essa possibilidade na legislação nacional e, de outro lado, analisar os projetos políticos pedagógicos para identificar possíveis ações de Educação Especial.
Palavras-chave: Educação Especial; educação escolar indígena; políticas públicas.
ABSTRACT
The right to education for indigenous children in situation of disability was safeguarded in Brazil, through international agreements, starting in 2007. In this sense, this research aimed to identify if and how occured the interrelations between Special Education and Indigenous School Education, in public policy actions from Acre. It is a qualitative, exploratory research, with an approach of critical analysis through policy cycle. Three state managers participated. The corpus was constituted by interviews and legislation. The results showed the challenge of operationalization of the legislation due to geographical, climatic and cultural peculiarities. The dissemination of Special Education Policy in intercultural discussions will be viable during other teaching training processes. It was concluded that Special Education had not been able to discuss its actions in indigenous schools, in its entirety; the interrelations between Special Education and Indigenous School Education were in initial process, due to government change. For future research, it is suggested, on the one hand, to investigate the appropriate ways on how to implement a specific Education System for indigenous schools, since this possibility appears in the national legislation and, on the other hand, to analyze the pedagogical political projects to identify possible actions of Special education.
Keywords: Special Education; indigenous school education; public policy.
RESUMEN
El derecho a la educación de niños indígenas en situación de discapacidad, fue protegido en Brasil con acuerdos internacionales, desde el año 2007. Así, esta investigación tuvo como objetivo identificar cuáles eran y cómo ocurrían las interrelaciones entre la Educación Especial y la Educación Escolar Indígena dentro de las acciones de política pública en el estado de Acre. Se trata de un estudio cualitativo, exploratorio, con abordaje de análisis del ciclo de políticas. Participaron tres gestores estaduales. El corpus fue constituido por entrevistas y revisión de leyes. Los resultados demostraron el desafío de implementar la legislación debido a las peculiaridades geográficas, climáticas y culturales. La diseminación de la política de Educación Especial en discusiones interculturales será visibilizada durante otros procesos de formación docente. Se concluye que la Educación Especial no había conseguido discutir sus acciones en todas las escuelas indígenas; las interrelaciones entre la Educación Especial y la Educación Escolar Indígena estaban en un proceso inicial debido a los cambios de gobierno. Para futuras investigaciones, se sugiere, por un lado, investigar las formas apropiadas de cómo implementar un Sistema Educativo específico para las escuelas indígenas, ya que esta posibilidad aparece en la legislación nacional y, por otro lado, analizar los proyectos políticos pedagógicos para identificar posibles acciones de Educación especial.
Palabras clave: Educación Especial; educación escolar indígena; políticas públicas.
Introdução
A Educação Escolar Indígena e a Educação Especial, no Brasil, estão marcadas, no processo de Políticas Educacionais, por questões vinculadas a identidades e diferenças, sendo que o acesso aos bens sociais vem sendo conquistado, paulatinamente, por meio de seus grupos representativos.
Atentos a questões ligadas às Políticas Públicas Nacionais da Educação, os professores e as lideranças indígenas têm efetivado debates sobre o futuro de seus povos e as ações dessas políticas, que possam impactar suas comunidades. Autocríticas têm sido constantes em seus trabalhos, no sentido de apontar se as ações dessas políticas educacionais tendem a reproduzir a escola do passado, cujo objetivo era “integrá-los à ‘comunhão nacional’” (DALMOLIN, 2004, p. 392).
Compreende-se que a Educação Escolar Indígena, pautada nas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2012b), vem legitimar os anseios dos povos indígenas no Brasil, no que concerne a efetivar suas culturas, dentre elas, suas línguas e os modos de apropriação dos seus saberes. Entretanto, é importante registrar que podem coexistir tipos de educação escolar que propiciam a criação de relações dicotômicas entre um sistema de ensino imposto e os movimentos sociais que representam os grupos que foram marginalizados ao longo da história.
Para dar sustentabilidade a esses princípios de que os povos indígenas devam articular seus próprios Projetos Político-Pedagógicos (PPP) e ensinar na língua cultural, as Leis do Estado do Acre nº 3466 (ACRE, 2018b) e nº 3467/2018 (ACRE, 2018c) dispõem sobre a gestão democrática intercultural na educação escolar indígena e sobre a regulamentação das escolas e professores indígenas mantidos pelo poder público, respectivamente. Há uma expectativa, por parte dos pesquisadores da área e dos povos indígenas do Estado, quanto a sua operacionalização, pois há quase vinte anos os movimentos em prol dos povos indígenas pleiteavam por garantias dentro do Sistema Público de Ensino.
No tocante à Educação Especial, foram publicados, no Diário Oficial do Estado do Acre, em 2018, respectivamente, a Instrução Normativa SEE2 nº 001/2018 (ACRE, 2018d) e a Resolução CEE/AC3 nº 277/2017 (ACRE, 2018a). A primeira normatiza o atendimento da modalidade nas escolas e a última altera a Resolução CEE/AC nº 166/2013, estabelecendo normas para o atendimento nas Escolas Estaduais de Educação Básica. Esse cenário contribui para as reflexões sobre a Educação Especial e a Inclusão Escolar de estudantes residentes nas terras indígenas acreanas.
Inter-relacionando-se a Educação Escolar Indígena à Educação Especial, pode-se ponderar que devem ser contempladas questões contextuais e culturais dos processos educacionais, pois
[...] há que se contemplar um contexto escolar fundamentado em análise que atenda à história institucional, às condições sociopolíticas e culturais e que permita visualizar o ponto inicial da transformação e de como os atores e a dinâmica institucional criam condições que podem favorecer ou desfavorecer tal mudança. (DENARI, 2008, p. 37-38)
Para implantar ações de políticas públicas sobre inclusão escolar da Educação Especial, as escolas indígenas precisam ser contempladas em contextos que respeitem suas histórias, condições geográficas e sociopolíticas, além de que o diálogo entre governo e lideranças indígenas, que estão à frente da gestão dessas escolas, deve estar baseado nas relações interculturais, nas quais haja respeito às diferenças existentes nas bases de pensamentos e de conhecimentos referentes à condução dos processos inclusivos escolares.
Na expectativa de vislumbrar ações que inter-relacionassem a Educação Escolar Indígena à Educação Especial, no contexto das Políticas Públicas Educacionais, foi realizada uma pesquisa no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), utilizando-se as palavras-chave Educação Especial AND Inclusão Escolar Indígena AND Políticas Públicas Educacionais. Catorze pesquisas foram localizadas, dentre as quais seis registraram a prática das políticas públicas de Educação Especial nas escolas. As restantes trataram sobre outros temas de processos inclusivos.
Os temas versaram sobre formação docente e elaboração de material pedagógico na língua indígena para prevenção de deficiência (BURATTO, 2010); inclusão e comunicação de crianças surdas indígenas (LIMA, 2013); identificação e gestão escolar de crianças indígenas com deficiência visual (SÁ, 2011); avaliação da visão e do desenvolvimento global de crianças com paralisia cerebral nas escolas indígenas (SILVA, 2016); políticas públicas direcionadas aos indígenas que apresentavam necessidades especiais no Estado de Rondônia (VENERE, 2005); e o paradigma da inclusão no curso de Pedagogia do Instituto Federal do Pará (SANTOS, 2012).
Ressalta-se a pesquisa de Silva (2014) porque tratou de aspectos ligados ao diálogo com o poder público. De acordo com suas discussões, os estudantes indígenas, em situação de deficiência, passaram a frequentar as escolas indígenas devido à obrigatoriedade do cumprimento da legislação brasileira e ao diálogo intercultural estabelecido entre as lideranças indígenas e os representantes do sistema público de ensino. Durante a formação docente que o autor empreendeu junto aos professores indígenas, temas sobre as políticas públicas para o Atendimento Educacional Especializado (AEE) foram destacados, sendo proposto que as mesmas fossem contextualizadas e diferenciadas para esse público. Os obstáculos evidenciados foram quanto a ausência de: espaços físicos, língua de sinais e materiais didático-pedagógicos indígenas, avaliação diagnóstica e formação específica.
Em síntese, foi possível verificar que as preocupações, contidas nas teses e dissertações pesquisadas, diziam respeito à visão dos educadores na prática educativa das escolas; mas não apontaram para discussões junto aos gestores estaduais da Educação Especial e da Educação Escolar Indígena, no sentido de ampliar o debate sobre a política educacional. Não foram encontradas também discussões quanto à interpretação dos textos legais que a compunham.
Há elementos importantes, a serem investigados ainda tais como: a intencionalidade da educação, a legislação, os discursos políticos e as interpretações das políticas durante suas execuções. Tais elementos podem ser analisados e discutidos à luz do referencial de análise crítica criado por Ball e colaboradores (MAINARDES, 2006; MAINARDES; ESTREMEL, 2015; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016).
Políticas educacionais são formadas por textos, tais como legislações, além das estratégias nacionais e dos processos discursivos. Tais elementos constituintes são configurados de forma complexa. Suas ações atingem diretamente os professores, que as implementam de acordo com suas utilidades. Nessa perspectiva, elas são percebidas como textos, mas também como discursos. Os primeiros enfatizam o controle e os segundos, os limites (MAINARDES, 2006; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016).
Seguindo os pressupostos desses pesquisadores, compreende-se que, por meio da análise crítica das legislações e dos discursos das autoridades representativas, é possível identificar a configuração dos interesses políticos dos diversos segmentos sociais, bem como a utilização que fazem dos textos e discursos nos respectivos contextos.
Por não ter identificado a visão política, por meio de consulta direta, dos representantes governamentais estaduais da Educação Especial e da Educação Escolar Indígena, entende-se que existe uma lacuna, nesse aspecto, nas pesquisas sobre políticas. Nesse sentido, é relevante ouvir a voz dos representantes governamentais quanto à existência de inter-relações das ações de políticas públicas que englobem as modalidades que se pretendem compreender e contextualizá-las com os textos legais atinentes.
No cenário estadual do Acre, há uma configuração política para a análise, que se refere à publicação de legislações estaduais recentes, em 2018, tanto para a Educação Especial quanto para a Educação Escolar Indígena. Deste modo, problematiza-se como estão sendo efetivadas as inter-relações entre as Políticas Públicas da Educação Especial e da Educação Escolar Indígena, no sentido de assegurar os direitos daqueles que dependem de suas aplicações, articulando-se com a interculturalidade, essencial na gestão das escolas indígenas. Desta forma, o objetivo geral desta pesquisa foi identificar se e como ocorrem as inter-relações entre a Educação Especial e a Educação Escolar Indígena nas ações de políticas públicas do Acre.
Método
Trata-se de pesquisa qualitativa, do tipo exploratória, adotando-se a abordagem de análise crítica das políticas educacionais, por meio do ciclo de políticas, instituída por Ball e colaboradores (MAINARDES, 2006; MAINARDES; ESTREMEL, 2015; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), que se apoia em cinco contextos, descritos no quadro 1. Não se considerou antagônica a junção da pesquisa exploratória com a abordagem de análise crítica das políticas educacionais, porque, embora se analise dentro dos contextos pré-estabelecidos do ciclo de políticas, as variáveis são, ainda, desconhecidas.
Quadro 1 – Contextos do ciclo de políticas
CONTEXTOS |
TEMAS |
de influência
|
- discursos políticos sobre educação e formulação das políticas - embates e disputas para a definição das finalidades educacionais |
da produção de textos |
- momento da produção do texto legal |
da prática |
- interpretação, recriação, produção dos efeitos representativos de mudanças e transformações |
dos resultados ou efeitos |
- trata da justiça, igualdade e liberdade individual, podendo ser evidenciados nos currículos e avaliações, por exemplo |
das estratégias políticas |
- identifica as atividades sociais e políticas para lidar com as desigualdades criadas e reproduzidas pela política investigada |
Fonte: Mainardes; Estremel (2015).
A escolha do Estado do Acre justifica-se, de um lado, pela especificidade cultural dos indígenas quanto à percepção da pessoa que apresenta a condição de deficiência e, de outro, pela observação de que certas ações de metas das políticas públicas nacionais podem estar colaborando para a permanência de estudantes da Educação Especial nas escolas indígenas. Um exemplo observado, durante a prática da docência de uma das autoras, no interior do Estado, seria o Benefício de Prestação Continuada (BPC), disponibilizado a uma família que dispõe de uma criança em situação de deficiência, pertencente a determinado povo indígena. Tal etnia não apresentava, ao longo de sua história, pessoas em situação de deficiência, por questões culturais.
Outra situação relevante refere-se a publicações de duas leis específicas para a Educação Escolar Indígena, efetivadas em dezembro de 2018, no final do mandato de quase vinte anos de governo do Partido dos Trabalhadores, no Estado, que já conhecia o resultado das eleições para o quadriênio 2019/2022. Foram anos de luta dos povos indígenas para aprovação de seus direitos e estes só foram efetivados no final de um mandato que não se faria presente para operacionalizar tais legislações, despertando certa curiosidade nos pesquisadores da área.
O cenário escolar do Estado do Acre demonstra que, dos seus 22 Municípios, 12 dispõem de escolas indígenas, totalizando 8.537 estudantes matriculados em 2019 (BRASIL, 2019b). Nove, dentre os 12 Municípios, apresentam escolas indígenas com 92 matrículas de estudantes da modalidade de Educação Especial, sendo que 78 estão localizados na Rede Estadual de Ensino. Os níveis e modalidades de ensino que dispõem de matrículas da Educação Especial são os seguintes: Ensino Fundamental Comum (n=87), Ensino Médio Comum (n=04) e Ensino Fundamental – Educação de Jovens e Adultos (n=01) (BRASIL, 2019a). Essa distribuição maior, na Rede Estadual de Ensino, é também um dos fatores que nortearam a realização desta pesquisa no âmbito do Governo Estadual.
Trata-se de uma questão qualitativa ímpar, quando se observa a história vista na percepção dos próprios indígenas. Kaxinawá (et al., 199-) apresenta um quadro comparativo da história dos índios, desde a chegada às regiões dos rios Juruá e Purus, designada como Tempo das Malocas até o Tempo do Governo dos Índios, quando foi possibilitada a demarcação de terras e a organização social, inclusive, com professores escolhidos e avaliados pelas próprias comunidades. Entretanto, o estágio anterior foi marcado por extermínio, o que justifica o número de matrículas abaixo do que, talvez, pudesse ser considerado relevante quantitativamente.
Os procedimentos de coletas de dados foram entrevistas semiestruturadas presenciais, por meio de gravações de áudios, com o auxílio do Notebook. Os roteiros das entrevistas foram encaminhados à assessoria do gabinete da Secretaria de Estado de Educação e Esporte do Acre SEE/AC, a pedido, antes de sua realização.
A seleção de três participantes deu-se em função dos cargos estratégicos de lideranças exercidos, no momento da pesquisa, cujas características constam no quadro 2, sendo os nomes fictícios, conforme a ética.
Quadro 2 – Caracterização das participantes da SEE/AC
PARTICIPANTE |
NOME |
FORMAÇÃO |
CARREIRA (anos) |
CARGO (meses) |
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL |
|
INICIAL |
CONTINUADA |
|||||
Diretora de Ensino |
Alice |
Letras |
Não informado |
15 |
6 |
Educação Básica |
Chefe Educação Especial |
Clara |
Pedagogia |
Ed. Inclusiva Gestão Escolar |
27 |
6 |
Educação Especial |
Diretora Adjunta Educ. Escolar Indígena |
Iká |
Pedagogia |
Não Informado |
30 |
6 |
Alfabetização/Ed. Inclusiva e Especial |
Fonte: As autoras. Extraído das entrevistas (2019).
Conhecimentos sobre Educação Especial são observados tanto nos processos formativos quanto nos experienciais das representantes da Educação Especial e Educação Escolar Indígena.
As entrevistas ocorreram durante o mês de julho de 2019 e de forma presencial nas dependências da SEE/AC e da Universidade Federal do Acre (UFAC). Neste último local, por solicitação de uma das entrevistadas, por comodidade da mesma. O tempo de duração oscilou entre trinta e sessenta minutos. Tais entrevistas foram transcritas e enviadas às participantes, por e-mail, para validações.
Além de entrevistas, como procedimentos de coletas de dados, adotou-se também pesquisas bibliográficas das legislações estaduais, pertinentes às modalidades de Educação Especial e de Educação Escolar Indígena, publicadas em Diário Oficial do Estado do Acre, no ano de 2018, a saber: Resolução CEE/AC nº 277/2017 (ACRE, 2018a); Instrução Normativa SEE nº 01/2018 (ACRE, 2018d); Lei nº 3466/2018 (ACRE, 2018b) e Lei nº 3467/2018 (ACRE, 2018c). As primeiras referem-se à Educação Especial e as últimas à Educação Escolar Indígena. Esses procedimentos respaldaram-se no entendimento de que as legislações que regem um Sistema de Ensino compõem os contextos do ciclo de políticas. Nesse sentido, tais legislações foram levadas à discussão, durante as análises, especialmente no contexto de produção de textos.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, sob CAAE: 15901519.3.0000.5504.
Resultados e discussão
Os resultados são apresentados de acordo com os contextos de influência, da produção de textos, da prática, dos resultados ou efeitos e das estratégias políticas.
Contexto de influência
Considerando-se que o contexto de influência refere-se a discursos políticos sobre educação, quais seriam os embates e as disputas para a definição das finalidades da escola? É possível identificar que em relação às ações para as escolas indígenas, há algumas condições limitantes:
Alice: Agora, quando nós vamos para a Educação Indígena, relacionada com a Educação Especial, nós não temos ainda o que se espera em relação a avanços no atendimento. Primeiro porque nós temos uma limitação. Que limitação é essa? Em relação ao acesso a essas escolas.
Clara: A gente não tem essa equipe para trabalhar com indígenas.
Compreende-se que as gestoras estão em fase inicial de gestão estadual e têm boas intenções. Nota-se, entretanto, que existem limitações para a execução das ações de Educação Especial, nas escolas indígenas, devido a dificuldades de deslocamento até tais comunidades.
Os fatores culturais merecem destaque, também: “A Educação Especial, como a Educação Escolar Indígena ela é diferenciada porque cada povo tem sua visão da criança especial” (Iká).
Além dos aspectos específicos culturais, há a questão da forma como a educação escolar foi instalada, com seus respectivos propósitos: “Em alguns povos, como o meu, Puyanawa, a escola entrou para alfabetizar o povo com vista no voto dos mesmos. [...] Hoje que se começa a falar em educação escolar indígena de qualidade” (Iká).
Nesse sentido, a aquisição da língua portuguesa por indígenas é fator preponderante para a implantação ou não de ações conjugadas de educação escolar indígena, nas aldeias, devido a questões comunicacionais. Entretanto, quanto maior o contato dos indígenas com os não indígenas, mais vulneráveis ficam no tocante ao uso de suas línguas maternas:
Iká: Quando o coronel Mâncio Lima chegou, para dominar o povo, ele teve que matar todos os guerreiros [...]. Então ele proibiu. Era proibido falar a gíria. Se teimasse, aí eles já faziam uma torturinha, furava debaixo da unha que era para não falar a língua. Só podia falar no português.
Essas condições históricas apontam os problemas de aculturação pelos quais os povos indígenas passaram, no Acre, que os tornaram próximos ou mais distantes das ações de políticas públicas educacionais:
Iká: As famílias indígenas foram dispersas em decorrência dos seringais e a organização em aldeamento não ocorreu em todos os povos ao mesmo tempo. Assim, temos diferenças de nível de ensino, da fala em português e quanto menos eles falam o português, mais difícil ocorrer a Educação Escolar, porque não somos falantes da língua deles.
Embora se considere todas essas questões históricas, que tornaram as comunidades indígenas diferenciadas, há uma intenção de disponibilizar ações conjugadas, em rede, para que se atinjam os objetivos educacionais:
Alice: Estamos desenvolvendo, na rede, instrumentos para uma política educacional em rede, tanto na educação escolar indígena, quanto na educação especial [...]. A educação indígena junto com a EJA4 para formação dos professores indígenas.
No que tange a parcerias e inter-relações entre a Educação Especial e a Educação Escolar Indígena: “A gente ainda não iniciou essa parceria, mas a gente já está articulando essa parceria” (Clara).
Nesse contexto, os povos indígenas apresentavam visões distintas quanto à Educação Especial em suas escolas:
Iká: Na época das malocas, na maioria das aldeias, as crianças especiais eram sacrificadas, daí a gente pode perceber a dificuldade que é, hoje, introduzir um atendimento. Porque, primeiro, temos que compreender qual a visão que é do povo, a partir da visão, desenvolvermos um trabalho de inclusão da criança especial.
Embora haja toda uma situação diferenciada para o acesso às escolas indígenas, observa-se que a equipe de Educação Especial apresenta a intencionalidade para dar o suporte de acessibilidade aos estudantes da modalidade. Importante destacar a esse respeito:
Iká: E nós estamos na fase de quando vamos fazer as formações, cuidadosamente pesquisar, fazer a consulta porque só podemos introduzir o atendimento, se as lideranças disserem “nós queremos”, “nós aceitamos”. Porque, na realidade não podemos dizer “vocês devem atender, tem que pôr na escola” porque na realidade essas crianças nem estão na escola. E aí a gente não pode impor. Tem que ter essa mudança interna na comunidade. Igual os Nukini e Katukina que disseram “queremos, precisamos”.
Fundamental que as lideranças indígenas e suas comunidades decidem os procedimentos a serem adotados em suas escolas de forma dialógica. É compreensível que haja apenas algumas escolas que intencionaram um modelo inclusivo, no qual a Educação Especial fora ativada.
Contexto da produção de textos
Os textos devem ser lidos com relação ao local de sua produção e ao período de tempo respectivo (MAINARDES, 2006). No Acre, no início de 2018, dois documentos foram publicados sobre Educação Especial: a Resolução CEE nº 277/2017 (ACRE, 2018a) e a Instrução Normativa SEE nº 01/2018 (ACRE, 2018d). Em dezembro desse mesmo ano, as leis nº 3466/2018 (ACRE, 2018b) e 3467/2018 (ACRE, 2018c), sobre Educação Escolar Indígena, foram também publicadas.
Compreende-se que as legislações são produzidas em meio a profundas discussões de diversos grupos representativos e, a despeito de certas lutas, elas podem conter tanto a rigidez das legislações tradicionais quanto respostas para alguns anseios dos segmentos representantes.
Além das produções textuais, os comentários oficiais, formais e informais são considerados neste contexto. Nesse sentido, as autoridades governamentais estão aqui representadas: “A lei de 2018... Nós estamos em fase de ajustes para o atendimento. [...] nem sempre a gente consegue viabilizar tudo o que está na lei [...] (Alice).
Para Ball; Maguire e Braun (2016), a política atende aos interesses pessoais e perpassa pela utilidade que possa representar. O texto controla e o discurso impõe os limites. Assim, observa-se uma intencionalidade no cumprimento da legislação, porém Alice considera as dificuldades para cumpri-la. Entende-se também que, uma vez sujeita à interpretação, a política pode ser recriada, produzindo efeitos representativos de mudanças e transformações, mas que, nesse sentido, apenas “algumas vozes serão ouvidas como legítimas e investidas de autoridade” (MAINARDES, 2006, p.54).
Ika: A lei de gestão do Estado do Acre foi aprovada no final de 2018, tem muitas garantias, uma delas é a indicação dos professores pela própria comunidade. Hoje estamos pensando, para o futuro, em um concurso específico para professores indígenas e para isso, estamos ofertando a formação dos professores indígenas.
O texto, no controle, permite que as próprias comunidades indígenas escolham seus professores; o discurso, no entanto, comunica a intencionalidade de limitar tais escolhas, por meio de concurso público, que, para tanto, há que passar pelo processo formativo de professores, oferecido pelo Governo. A teoria sendo observada na prática.
O ensino, nas escolas indígenas, efetivado por seus próprios representantes corrobora para a recuperação de suas memórias históricas, com a reafirmação de suas identidades e valorização de suas línguas e ciências. O parecer CNE/CEB nº 13/2012 (BRASIL, 2012a) enfatizou essa expectativa, ao dispor sobre os princípios basilares da Educação Escolar Indígena. “A gente segue a Instrução Normativa do Estado de 2018” (Clara).
A representante da Educação Especial destaca o uso da Instrução Normativa nº 01/2018 (ACRE, 2018d), que regulamenta as diretrizes pedagógicas e administrativas para o AEE na Educação Básica. Há também, no entanto, a Resolução CEE/AC nº 277/2017 (ACRE, 2018a), que define os direitos à acessibilidade e oferta das modalidades e níveis de ensino aos estudantes da Educação Especial.
Na legislação mencionada, não se evidenciou texto que se reportasse à especificidade da Educação Escolar Indígena. A Lei Estadual nº 3467/2018 (ACRE, 2018c), entretanto, determina que a SEE promova todas as adequações para o funcionamento de serviços de Educação Especial propícios ao atendimento dos estudantes, nas escolas indígenas, com vistas à inclusão na Educação Básica. Dentre os serviços, constam: diagnósticos, estudos de casos e o Atendimento Educacional Especializado (AEE), por meio da articulação entre o órgão gestor da Educação Especial e da Educação Escolar Indígena.
A Resolução CEE/AC nº 277/2017 (ACRE, 2018a) determina que o AEE atenda estudantes que apresentam os Transtornos Específicos de Aprendizagem, tais como o Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), além da disgrafia, dislexia, disortografia e discalculia, bem como os que demonstram dificuldades de: audição, linguagem oral, leitura, escrita raciocínio, atenção, concentração e habilidade motora. Esse é um diferencial, porque a legislação nacional não inclui esse atendimento, no AEE, embora não o exclua da responsabilidade da Educação Especial.
Para atender ao disposto na Instrução Normativa SEE nº 01/2018 (ACRE, 2018d), quanto à implantação das Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), as equipes gestoras escolares estaduais devem incluir o AEE tanto no PPP quanto no Regimento Interno (RI). Devem informar também a demanda de estudantes, registrada no Censo Escolar e que possui infraestrutura física, para implantar o serviço. Entende-se que tais prerrogativas sejam extensivas às escolas indígenas.
Professores para o AEE e específicos para estudantes surdos, surdocegos e outras dificuldades comunicacionais e comportamentais foram previstos nessa Instrução Normativa da SEE. Percebeu-se, no entanto, que tanto a Instrução Normativa quanto a Resolução Estadual, que versam sobre a Educação Especial, não incluíram um atendimento específico às Escolas indígenas. No que se refere às próprias Leis Estaduais para a gestão das escolas indígenas, mantidas pelo poder público, observou-se regulamentações quanto à implantação de serviços vinculados à Educação Especial.
Depreende-se, portanto, que, na formulação das legislações, não houve inter-relação da Educação Especial para com a Educação Escolar Indígena, enquanto que a Educação Escolar Indígena articulou-se com a Educação Especial para tanto.
Contexto da prática
Por estar sujeita à interpretação, a política educacional, na prática, pode ser recriada, produzindo efeitos representativos de mudanças e transformações. Por outro lado, deve-se observar quais vozes serão revestidas de autoridade para a sua concretude e quais outras serão anuladas, o que pode incorrer na sua inaplicabilidade.
Na prática, os ideários descritos na legislação, dependendo da localização geográfica e das condições climáticas, nem sempre serão concretizados, no sentido de emancipar os cidadãos a que se destinam. A prática, deste modo, tem a ver com a forma como a política será gerida, de acordo com os contextos materiais de pessoal, de instalações e de orçamentos, além dos discursos e políticas diversificados que constituem a escola (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016).
A Instrução Normativa nº 01/2018 prevê estudos de casos, por parte dos profissionais da SEE, para o diagnóstico de estudantes da Educação Especial. Entretanto, uma das entrevistadas, em seu relato, informou:
Clara; A equipe vai, nessa aldeia que tem cinco crianças, em Cruzeiro do Sul, a professora vai fazer o acompanhamento e a gente está iniciando os acompanhamentos e uma das perguntas é “cadê os estudos de casos”? Então, agora, ela está sendo trabalhada para fazer estudos de casos.
Este relato confirma as situações que ocorrem, normalmente, no contexto da prática das políticas públicas educacionais, pois, embora estivessem previstos, os procedimentos indicados não estavam sendo cumpridos, nas escolas indígenas visitadas pela nova equipe gestora, até julho de 2019. “E na Educação Especial, a gente não tem essa equipe para trabalhar com indígenas. Agora que a gente vai se reunir com a equipe da Educação Escolar Indígena, para articular essas ações” (Clara).
É possível observar que, a despeito da existência da legislação estadual indígena, que prevê a articulação entre a Educação Especial e a Educação Escolar Indígena, essa interface está em fase inicial.
O exercício da prática, na modalidade de Educação Especial, está acontecendo em três povos indígenas, conforme relato de uma das participantes:
Iká: Hoje, nós temos três povos que atendem a Educação Especial: os Puyanawa, em Mâncio Lima, que eu não sei ao certo, mas acredito que eles já tenham mais de cinco anos de atendimento especializado. Nós temos também os Nukini, que já tem atendimento especializado, eles não têm a sala de AEE, como os Puyanawa, mas já tem atendimento, e esse ano foi introduzido nos Katukina, da BR-364, em Cruzeiro do Sul, mas eles também não têm a sala de recursos para o atendimento especializado.
Observa-se que as questões são históricas, pois o processo de inclusão da Educação Especial está ocorrendo de forma diferenciada, obedecendo os critérios possíveis e autorizados pelos povos.
Na prática, outros elementos importantes, quando se trata da Educação Especial nas escolas indígenas, são a apresentação da modalidade e a autorização das lideranças, para sua implantação:
Iká: E nós estamos na fase de, quando vamos fazer as formações, cuidadosamente pesquisar, fazer a consulta, porque só podemos introduzir o atendimento, se as lideranças disserem “nós queremos”, “nós aceitamos”. Porque, na realidade, não podemos dizer “vocês devem atender, tem que pôr na escola”. E aí a gente não pode impor. Tem que ter essa mudança interna, na comunidade.
Não se institucionaliza a Educação Especial nas escolas indígenas sem antes fazer um trabalho de conscientização e consulta nas comunidades. O nível e a maturação das articulações entre as equipes governamentais e as lideranças indígenas, respeitando-se ainda as especificidades culturais de cada povo é que beneficiarão essa aproximação. Com essa consciência, a mesma entrevistada relata:
Iká: E a coordenação do Ensino Especial do Acre já entrou em contato conosco. Eles estão querendo implantar, nas aldeias. Eles estavam até achando que era simples, era entrar e colocar, mas estivemos conversando e falando que não era assim, mas que, no momento certo e com informações levantadas e em conjunto, iríamos trabalhar, nessa direção.
É compreensível que as ações em prol do cumprimento da legislação estadual sobre Educação Escolar Indígena estejam em fase inicial, dado o tempo de sua publicação ser inferior a um ano, bem como todas as alterações nas equipes da SEE.
É importante destacar, no entanto, que, a despeito da política de educação especial ser uma orientação dos governos federal e estadual, há toda uma legislação que ampara as lideranças indígenas nos processos decisórios sobre a aplicabilidade das ações de políticas públicas. Sabe-se que, para ocorrer o atendimento da Educação Especial, o mesmo deve constar nos PPP e as matrículas no Censo Escolar, além da informação sobre a disponibilidade infra estrutural para recebimento de mobiliários, equipamentos e materiais pedagógicos do Ministério da Educação (MEC).
Conforme os relatos, é possível identificar o respeito aos aspectos culturais de cada povo e, nesse sentido, as equipes irão adequar-se às especificidades evidenciadas para as abordagens de conscientizações e tomadas de decisões. “A Educação Escolar Indígena no Acre para cada povo teve um tempo diferente, que é o tempo de contato” (Iká).
É possível evidenciar a necessidade de, inicialmente, disseminar as políticas públicas, identificar a visão de cada povo, apresentar propostas e aguardar as discussões comunitárias para iniciar um projeto intercultural. Essa prática coaduna com Silva (2014), a respeito de como introduzir ações de políticas públicas nas escolas indígenas por meio de processos interculturais.
Contexto dos resultados ou efeitos
Sobre esse contexto, pode-se ponderar que há uma dualidade em questão, ou seja, enquanto uma política pública nacional de educação orienta para determinadas ações, com vistas a produzir determinados efeitos, o que, no caso, seria a inclusão qualitativa de pessoas público-alvo da Educação Especial, por outro, há uma liberdade garantida às escolas indígenas para realizar uma gestão baseada em seus preceitos e costumes. Escolas indígenas amparadas pelo poder público precisam de recursos financeiros para sua gestão. Deste modo, embora possam elaborar seus próprios PPP, tomar algumas decisões, com bases culturais, no âmbito da aplicabilidade de leis e resoluções de educação, devem cumpri-las, haja vista serem dependentes, economicamente, dessas instâncias. O modus operandi torna-se igual ao das escolas comuns no que se refere a gestão dos recursos financeiros, humanos e materiais. Na gestão de recursos humanos, por exemplo, a comunidade indígena, atualmente, avalia a competência dos seus professores ao término de cada ano letivo, decidindo se os mesmos permanecerão nessas funções no ano seguinte. Com o advento da formação com vistas ao concurso público essa cultura de gestão de pessoas poderá ser modificada. Um outro exemplo é o número mínimo de matrículas determinado por instâncias superiores para o funcionamento da Educação Infantil, nas escolas. Em 2019, uma aldeia não ofertou esse nível de ensino porque não atingiu o mínimo estabelecido pela SEE/AC, sendo a professora dispensada de suas funções e algumas crianças na faixa-etária correspondente, não estudaram. Um povo que foi exterminado, ao longo de sua história, não tem o mesmo número de matrículas correspondente ao de uma sala de aula comum de escolas localizadas na Zona Urbana.
Seria interessante que os Governos Federal e Estadual liberassem recursos financeiros, diretamente, para as escolas indígenas. Para tanto, seria necessário criar unidades executoras autônomas que prestassem contas, mas que pudessem decidir sua gestão. Embora a legislação federal deixe clara essa independência e autonomia, no âmbito da execução, engessa as ações das escolas indígenas, porque as escolas, amparadas pelo poder público, acabam tendo que cumprir determinados preceitos legais, por meio dos Sistemas de Ensino a que estejam ligadas.
Quais impactos das mudanças nos padrões de acesso e de justiça social (MAINARDES, 2006) seriam possíveis, enquanto o próprio Estado controlar todo o funcionamento das escolas, justamente porque são amparadas, financeiramente, por ele?
Iká: A Educação Escolar Indígena ela é diferenciada porque cada povo tem sua visão da criança especial [...] Os Jaminawa tem um acordo que as crianças só vão para a escola a partir dos 8 anos. Porque na cultura deles até essa idade a criança está aprendendo a sobrevivência.
Se a idade escolar já está estabelecida em determinado povo indígena, se cada povo tem sua visão de criança especial, e ainda se o Estado leva os recursos financeiros e o apoio técnico para a sua operacionalização e impõe regras para o funcionamento das escolas amparadas por ele, como produzir efeitos positivos do ponto de vista dos indígenas e não do sistema imposto?
Iká explica parte da história que culminou nas diferenças atuais:
As famílias indígenas foram dispersas em decorrência dos seringais e a organização em aldeamento não ocorreu em todos os povos ao mesmo tempo. Assim, temos diferenças de nível de ensino, da fala em português e quanto menos eles falam o português, mais difícil ocorrer a Educação Escolar, porque não somos falantes da língua deles.
Enfim, vê-se que o processo dialógico em cada escola indígena precisa ser diferenciado quando o objetivo for o de implantar ações de políticas educacionais. Cada etnia vivenciou, de forma diferente, a aculturação. Essa questão é importante, porque os efeitos desse processo podem ter sido analisados pelas comunidades indígenas como positivos ou negativos. E tais resultados implicarão uma abertura ou fechamento para o trato de algumas questões, principalmente no que concerne à inclusão de estudantes da Educação Especial.
Iká: Por que que existe as diferentes funções do professor indígena? Isso por ser ele o que detém mais conhecimento do português, demandando a ele constantes participações nos movimentos, nos embates políticos, muitas ausências da aldeia por ser esse representante, ficando de mês em viagem. Então o processo de ensino é mais lento, porque o tempo do professor na aldeia com o aluno é menor.
Os professores indígenas dominam bem a língua portuguesa e por esse motivo são constantemente designados como representantes de seus povos em eventos sociais e políticos externos à comunidade indígena. Esse fato merece notoriedade, pois o processo educativo escolar pode ficar prejudicado, pela ausência desses professores, durante o ano letivo, quando viajam, para tratar de assuntos atinentes à comunidade que representam.
O contexto da prática da Educação Especial, junto a crianças indígenas, pode ser verificado na capital do Estado do Acre, quando as famílias migram para as cidades em decorrência de situações conflituosas nas aldeias:
Iká: Tem lugar que está entrando drogas, tá entrando facções, principalmente nas aldeias de fácil acesso. Daí está tendo conflito e muitas famílias estão tendo que se retirar, estão vindo para a cidade. [...] Eu como professora de AEE, atendi crianças indígenas com deficiência no Bairro do Calafate vindas da região de Tarauacá5, todas as crianças da mesma família, com baixa visão, com D.I. e com microcefalia, todos com dificuldade de aprendizagem.
Pode-se ponderar, analisando-se o relato acima, que há indícios de crianças indígenas, moradoras das aldeias, que podem ser público-alvo da Educação Especial. As necessidades de atendimentos surgem na medida em que são detectadas nas avaliações psicopedagógicas realizadas na Zona Urbana.
Contexto das estratégias políticas
Nesse contexto, é importante identificar as atividades políticas e sociais necessárias para tratar das desigualdades reproduzidas ou criadas pela política investigada.
Iká: A Educação Escolar Indígena tem suas especificidades, por exemplo, os Jaminawa tem um acordo que as crianças só vão para a escola a partir dos 8 anos. Porque na cultura deles até essa idade a criança está aprendendo a sobrevivência. A ir para o igarapé, pescar, a ir pro roçado plantar, para ver, não é que ele vai fazer, mas ele acompanha a mãe, [...] eles estão na fase do aprendizado do artesanato, do que eles produzem na comunidade. E os povos falantes da sua língua, as crianças são alfabetizadas nela e só é introduzida a língua portuguesa a partir do 2º ou 3º ano.
Observou-se, por meio de relatos anteriores, a intenção de implantar uma política padronizada em rede. Entretanto, por esse relato é possível observar que cada povo tem uma visão sobre a educação escolar, o qual a introduz de forma peculiar. Esse fator pode dificultar a viabilização de ações de políticas em rede.
Quanto às questões relacionadas ao atendimento de Educação Especial, nas escolas indígenas
Iká: Agora, nessa nova gestão, a equipe da Educação Especial[...] ela entrou em contato comigo e eu conversei com ela que devido essas especificidades teríamos que fazer [...] formação com esses profissionais para eles começar a fazer um trabalho após uma sondagem para ver qual comunidade que quer e qual a visão que eles têm da criança especial, porque muitas nem na escola elas estão. [...] Nós ainda temos aldeia que as crianças com deficiência são sacrificadas e você vai chegar em aldeia que não tem criança com deficiência.
Para tanto, seriam necessárias as alterações nos PPP, os quais, em seis ou sete escolas, segundo um dos relatos, já estavam em fase de elaboração final:
Iká: Estamos trabalhando em cima da construção dos projetos políticos pedagógicos das escolas indígenas. Já, neste ano, vamos concluir uns 6 PPP e continuar os que já havíamos começado e fazendo revisão de outros.
Deste modo, compreende-se que, ao aceitar o atendimento, esses PPP seriam, futuramente, alterados.
Se o Governo Estadual está visando implantar uma política educacional em rede, qual seria a autonomia das escolas indígenas? É certo que, aos moldes não-indígenas, um PPP, para ser elaborado, precisa do apoio técnico da Secretaria de Educação, porque o mesmo precisa ser analisado e aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, segundo a legislação pertinente. Não se vislumbra um projeto para a emancipação, mas sim um ordenamento, aos moldes da legislação da Educação Básica, no qual todas as ações são tecnicamente direcionadas pelo poder público.
De acordo com uma das entrevistadas, os professores não eram concursados, porque precisavam passar por um nivelamento em Matemática e Língua Portuguesa para que pudessem proceder com as provas dos respectivos concursos públicos: “Muitos chegam no Ensino Médio sem saber ler e escrever e então a gente tem adotado algumas medidas para corrigir essas fragilidades” (Alice).
Compreende-se, portanto, que tais ações não vislumbram processos emancipatórios do ponto de vista curricular, nem do ponto de vista legal, haja vista que todos os procedimentos adotados e previstos pelo governo estadual são similares aos adotados para as escolas não indígenas nos aspectos de elaboração e tramitação documental, de disponibilização de recursos financeiros, de formação docente, de aplicação de concurso e de adoção de política educacional em rede.
Um dos relatos, aponta para a existência de crianças com Altas Habilidades/Superdotação (AHSD), cujos desdobramentos ocorreram para além dos muros escolares:
Iká: um índio do povo Nukini, de Mâncio Lima6, que ele chegou no concurso nacional de redação ou era poesia, chegou na fase final [...]. Ele foi longe, ele é alta habilidade nessa área. Os músicos indígenas se destacam e vão para a Europa [...] Outra criança de cinco anos, filha de pai Machinery e mãe de Jaminawa fala as duas línguas dos pais e mais o português e estão ensinando espanhol para ela. Ela mora no Município de Assis Brasil.
O relato acima registra situações sociais específicas do Estado do Acre, nas aldeias indígenas, que fortalecem os ânimos no âmbito da Educação Especial, no que tange à necessidade de investimentos nessa modalidade, pois foi possível constatar a existência de seu público-alvo nas respectivas escolas.
Considerações finais
Trazendo à memória o objetivo desta pesquisa, que intencionou identificar as inter-relações entre a Educação Especial e a Educação Escolar Indígena, no Acre, compreendeu-se que a interface entre as duas modalidades está em processo inicial, devido à formação das equipes ter se dado há menos de um ano, no período da coleta de dados, em decorrência da formação de um novo Governo. Entretanto, foi possível identificar, por meio da equipe de Educação Escolar Indígena, que três povos, a saber, Puyanawa, Nukini e Katukina, já realizavam atendimento em Educação Especial, mas somente o primeiro dispunha de sala apropriada para o AEE. A formação continuada para avaliações diagnósticas destacou-se como necessidade dos professores indígenas.
No contexto de influência, compreendeu-se que o fato da educação escolar ter sido pensada com intenções diferentes, ao longo da história, fundamentou argumentos dos povos indígenas para aceitarem ou rejeitarem a instalação de escolas, amparadas pelo poder público e, consequentemente, ações de Educação Especial.
No contexto da produção de textos, observou-se que a elaboração da legislação para escolas indígenas foi orientada pela legislação disponível da Educação Especial, porém esta última não se utilizou das especificidades das comunidades indígenas para a construção de sua legislação e normas estaduais.
Quanto ao contexto da prática, a legislação não estava sendo cumprida, à risca, por questões adversas, tais como as geográficas e as climáticas, mas também pela diversidade histórica e cultural existente no Estado, que tornava específica cada comunidade indígena em que se pretendia alcançar com ações da Educação Especial.
As duas equipes, de Educação Especial e de Educação Escolar Indígena, apresentavam intenções de aproximação nas ações de políticas educacionais, porém o estreitamento dos laços profissionais para a concreta execução das ações conjuntas e interligadas careciam de ajustes, devido à realidade indígena estadual.
Depreendeu-se, no contexto dos resultados ou efeitos, que as ações prioritárias para as escolas indígenas eram de formação docente em língua portuguesa e matemática. As estratégias para uma possível implantação de atendimentos em Educação Especial ocorreriam na medida em que houvesse uma articulação da Educação Escolar Indígena junto às comunidades com vistas à aproximação da equipe de Educação Especial.
As propostas da Educação Especial seriam divulgadas, ao longo dos processos formativos que a equipe de Educação Escolar Indígena estaria promovendo, em outras áreas. As discussões seriam viabilizadas, por meio de encontros entre os povos afins e os representantes governamentais, para o diálogo intercultural.
Observou-se intenções de profissionais para as inter-relações discutidas. Tais profissionais estavam na fase inicial do processo para a elaboração de planos de ações, com intuito de dialogar com as comunidades indígenas a partir do referencial legal atual. Pode-se perceber a existência de crianças em situação de deficiência e de AHSD em algumas escolas indígenas e nas migrações das famílias para as cidades.
Para futuras pesquisas, sugere-se de um lado investigar as formas apropriadas de como implantar um Sistema de Ensino específico para escolas indígenas, já que consta essa possibilidade na legislação nacional e, de outro lado, analisar os projetos políticos pedagógicos para identificar possíveis ações de Educação Especial.
Referências
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Notas
1 Bolsista CNPq
2 Secretaria de Estado de Educação e Esporte.
3 Conselho Estadual de Educação do Acre.
4 Educação de Jovens e Adultos.
5 Município do Estado do Acre.
6 Município acreano.
Correspondência
Geisa Cristina Batista – Universidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luiz, s/n, São Carlos, São Paulo – Brasil.
CEP: 13565-905
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