http://dx.doi.org/10.5902/1984686X41104

 

Democratização da escola e processos escolares inclusivos: a potência da trama narrativa currículo e Atendimento Educacional Especializado nos cotidianos1

Democratization of school and inclusive school processes: the power of the narrative plot curriculum and Specialized Educational Care in the everyday1

Democratización de la escuela y procesos de inclusión escolar: el poder de la trama narrativa currícular y la Atención Educativa Especializada en lo cotidiano1

 

Clarissa Haas

Professora doutora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.

cla.haas@hotmail.com

ORCID – https://orcid.org/0000-0002-8526-7200

 

Claudio Roberto Baptista

Professor doutor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

baptistacaronti@yahoo.com.br

ORCID - https://orcid.org/0000-0001-6673-4574

 

Recebido em 12 de novembro de 2018

Aprovado em 13 de novembro de 2019

Publicado em 12 de dezembro de 2019

 

 

RESUMO

No presente estudo abordamos a democratização da escola por meio da defesa do direito à aprendizagem dos estudantes público-alvo da educação especial. Entendemos que a garantia efetiva desse direito pode ser viabilizada a partir da trama narrativa entre currículo e Atendimento Educacional Especializado, dispositivo pedagógico central para a inclusão escolar dos estudantes com deficiência na escola. A abordagem de currículo realizada aproxima-se dos estudos do cotidiano, de modo que o caminho metodológico privilegiado busca nas narrativas do cotidiano os elementos para discutir a política da educação especial na perspectiva da educação inclusiva em ação. Sustenta-se que o Atendimento Educacional Especializado no interior da escola comum pode operar para reinvenção do currículo, em relação de unidade entre a educação geral e especializada. Desse modo, compreende-se que a análise das tramas narrativas entre currículo e Atendimento Educacional Especializado disparada pelos cotidianos constituem-se como ferramentas político-pedagógicas para o fortalecimento do direito à aprendizagem desse público e, consequentemente, para a (auto) formação docente.

Palavras-chave: Currículo; Atendimento Educacional Especializado; Narrativa.

 

 

ABSTRACT

In the present study we approach the democratization of the school through the defense of the learning right of special education students. We understand that the effective guarantee of this right can be made possible from the narrative plot that intertwines the curriculum and the Specialized Educational Services, which is a central pedagogical device for the inclusion of students with disabilities in school. The curriculum approach comes close to everyday studies, in a way that the privileged methodological path seeks in the daily narratives for the elements to discuss the politics of special education from the perspective of inclusive education in action. It is sustained that the Specialized Educational Service within the common school can operate for the curriculum reinvention, in a unitary respect between general and specialized education. Thus, it is understandable that the analysis of narrative plots between the curriculum and the Specialized Educational Services triggered by the everyday are political-pedagogical tools for the strengthening of this audience's right to learning, and consequently, for the teacher's (self)training.

Keywords: Curriculum; Specialized Educational Service; Narrative.

 

RESUMEN

En el presente estudio abordamos la democratización de la escuela por medio de la defensa del derecho de aprendizaje de los estudiantes que precisan de una educación especial. Entendemos que garantizar este derecho puede ser posible a través de la trama narrativa entre el currículo y la Atención Educativa Especializada, como dispositivo pedagógico central para la inclusión escolar de los estudiantes con necesidades educativas especiales. El enfoque curricular realizado se aproxima a los estudios de la vida cotidiana, de manera que el camino metodológico seleccionado indaga a partir de las narrativas discutir la política de educación especial en la perspectiva de la educación inclusiva. Se argumenta que la Atención Educativa Especializada dentro de la escuela común puede intervenir en la reinvención del currículo en relación con la educación general y la educación especializada. En consecuencia, se entiende que el análisis de las tramas narrativas entre el currículo y la Atención Educativa Especializada generadas por lo cotidiano, contribuye en la construcción de herramientas político-pedagógicas que fortalecen el derecho al aprendizaje de esta población, así como la formación de (auto) maestros.

Palabras clave: Currículo; Atención Educativa Especializada; Narrativa.

 

Introdução

O direito à educação envolve o fortalecimento da perspectiva da educação inclusiva, como princípio, meio e fim do trabalho educativo, construindo as condições de acesso, permanência e sucesso na escola de todos os estudantes. Embora o público da educação inclusiva envolva uma amplitude de grupos considerados socialmente vulneráveis na efetivação da educação formal ou escolar - direito social e fundamental da cidadania -, nosso direcionamento nesse estudo é o acesso ao conhecimento escolar pelos sujeitos considerados público-alvo2 da educação especial.

O Censo Escolar da Educação Básica elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) aponta um crescimento de mais de 6,5 vezes no número de estudantes com deficiência3 incluídos nas escolas comuns no intervalo de tempo de 2005-2015, o que em números significa o aumento de 262.243 para 750.983 matrículas. Todavia, permanece como desafio garantir a efetiva escolarização desses estudantes, isto é, a garantia que seus percursos formativos resguardem o direito à aprendizagem.

Entendemos que essa garantia é possível por meio da trama narrativa dos dispositivos currículo e Atendimento Educacional Especializado4 (AEE). Tratamos currículo, a partir dos estudos do cotidiano, como a rede de relações cotidianas, saberes e fazeres dos sujeitos cotidianos escolares (FERRAÇO, 2007; OLIVEIRA, ALVES, 2001; OLIVEIRA, 2012). Descrevemos o Atendimento Educacional Especializado (AEE) como o dispositivo pedagógico central para a implementação da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva na escola de ensino comum brasileira.

A abordagem metodológica do estudo baseia-se na narrativa de cenas do cotidiano escolar, considerando a pista de Certeau (2012) de que o conto oferece ao discurso científico um modelo e não apenas objetos textuais a tratar; é um “saber-dizer” ajustado ao seu objeto. Nossa pretensão foi dar ênfase à potência dos cotidianos e dos sujeitos que são atuantes nesse espaço como partícipes, autores e reformuladores das políticas em implementação.

Portanto, no presente trabalho, abordamos a relação entre Currículo e Atendimento Educacional Especializado, considerando a materialização e a re(interpretação) das normativas e orientações da política de inclusão escolar brasileira pelos cotidianos como a política em ação.

Currículo e Atendimento Educacional Especializado

Em estudos anteriores, destacamos a relação entre currículo e Atendimento Educacional Especializado por meio da produção acadêmica brasileira e dos documentos oficiais das políticas públicas nacionais (HAAS; BAPTISTA, 2014), afirmando o “papel complementar” do AEE e a nomeação “acessibilidade curricular” como a descrição mais recente nos documentos oficiais e sintônica com a defesa do direito à aprendizagem dos estudantes com deficiência. No presente estudo, embora reconheçamos a potência da nomeação “complementar” e a sua intencionalidade ao delimitar o AEE como uma ação que se distancia do histórico da área associado à segregação em classes\escolas especiais, interrogamo-nos acerca de seus desdobramentos nos cotidianos escolares.

Buscamos aporte em Bateson (1986) e em narrativas do cotidiano para discutir hipóteses que percebemos atreladas a essa nomeação. Bateson (1986, p. 68), ao discutir as sequências lógicas causais, afirma que “o pensamento linear sempre gerará a falácia teleológica (que o fim determina o processo) ou o mito de um órgão controlador do sobrenatural”.

Ao buscarmos estabelecer a relação entre currículo e o papel de complementaridade do Atendimento Educacional Especializado, as observações das histórias que vêm se instituindo nos cotidianos escolares têm demonstrado que a forma de ler essa relação, em grande parte, vincula-se à descrição feita por Bateson (1986) sobre o pensamento lógico causal, pois se espera que a ação do AEE “complemente”, prioritariamente, as defasagens do estudante com deficiência. O olhar continua focado no sujeito, ao invés de ser na relação pedagógica, produzindo efeitos de supervalorização da ação “especial” perante os profissionais do “ensino comum”. Todavia, percebemos que a ação pedagógica do AEE não produz “efeitos” restritos à “causa” (sujeito com deficiência) que, em geral, motivou sua ação. Ao contrário, pode mobilizar o sistema (currículo da escola) em proporções mais amplas e não previstas. “O que ocorre é que, quando os sistemas causais se tornam circulares, uma alteração em qualquer parte do círculo pode ser encarada como uma causa para sua mudança” (BATESON, 1986, p. 68).

Nesse sentido, consideramos que merece investimento e aprofundamento a descrição em que a Educação Especial, por meio do Atendimento Educacional Especializado – serviço de educação especial prioritário na configuração da política brasileira de inclusão escolar –, opera em relação de unidade com o currículo praticado na escola em que se insere. A partir do pensamento sistêmico, o conceito de unidade envolve um todo complexo que, ao ser analisado em partes, não perde sua complexidade, pois cada parte também pode ser analisada como um “todo”, no sentido de possuir características e especificidades que mobilizam a formação de ajustes originais e, inclusive, imprevisíveis.

Tomando o currículo como unidade, a complementariedade entre o AEE e o ensino comum é mútua, podendo gerar a reorganização da unidade. Encontramos possibilidades para essa leitura “unitária” nos próprios documentos normativos da política de educação especial, à medida que se colocam como dispositivos que buscam organizar premissas gerais, mas não definem todas as múltiplas possibilidades e ajustes que poderão ser construídos no cotidiano da escola. O comportamento recursivo, como próprio da ontogenia humana, provoca retomar os documentos normativos nacionais, nas passagens que propõem o “acesso ao currículo” como atribuição do Atendimento Educacional Especializado. Reconhecemos que, nos documentos, podemos incorrer no risco dessa palavra ser lida no sentido estrito como “acesso ao conteúdo escolar”, o que, por sinal, já seria um grande passo, pois valida o reconhecimento de que os estudantes com deficiência estão na escola para ter acesso ao conhecimento. Contudo, para construirmos uma relação de unidade entre currículo e educação especial, precisamos nos apoiar em leituras mais amplas de currículo, como redes de saberes e fazeres dos sujeitos cotidianos, a propósito dos estudos do cotidiano.

Dentre as atribuições do professor especializado, artigo 13, VIII, Res. CNE\CEB 04\2009 (BRASIL, 2009), destacamos a palavra “articulação” como uma possibilidade de uma leitura de currículo mais ampla. Entendemos que está implícito, no emprego desse termo, a ideia de currículo como “rede” entre uma didática tratada como comum e aquela reconhecida como especializada, portanto, a educação especial, concebida como ação pedagógica na configuração do AEE sugere indicativos para a reinvenção das formas e modos de ler currículo na escola, a qual só é possível por meio de processos pedagógicos compartilhados mutuamente pelo professor do ensino comum e pelo professor especializado, de modo que o professor do ensino comum não “esvazie” seus saberes, com expectativas excessivas e de transferência de sua ação pedagógica ao professor especializado.

Ampliando a reflexão por meio de “contos pedagógicos”

Pretendemos seguir elaborando leituras acerca da “articulação” entre o currículo e a educação especial, dando ênfase ao tom do relato ou da narrativa. Conforme Certeau (2012):

 Existe com certeza um conteúdo do relato, mas pertence, ele também, à arte de fazer um golpe: ele é desvio por um passado (“no outro dia”, “outrora”) ou por uma citação (uma “sentença”, um “dito”, um “provérbio”), para aproveitar uma ocasião e modificar um equilíbrio por uma surpresa. (....) O discurso produz então efeitos, não objetos. É narração, não descrição. É uma arte do dizer. (CERTEAU, 2012, p. 142).

Assim, compõem essa seção, breves contos pedagógicos ou narrativas que nascem das questões colhidas no cotidiano como “ocasião” e nos auxiliam no sentido de produzir o terreno propício para as “táticas”, com intuito de provocar o debate e o amadurecimento das nossas ferramentas de leitura no âmbito profissional e da pesquisa sobre o Atendimento Educacional Especializado e o currículo escolar. Essas histórias não têm preocupação com a precisão cronológica. Em geral, inscrevem-se no tempo do “hoje”, nas urgências que identificamos como vozes ecoantes na discussão entre currículo e Atendimento Educacional Especializado. Da mesma forma, não têm a pretensão de fidelidade com o vivido pela via direta, ou seja, pelos próprios pesquisadores.

Embora, a maioria das histórias tenha sido significada nas vivências profissionais de um dos autores desse estudo, algumas também anunciam a possibilidade de imaginar contextos a partir da escuta das experiências vivenciadas pelo outro. Por isso, optamos por colocar essas histórias subscritas na identidade de uma personagem literária que possa representar todas essas múltiplas vozes ecoantes nos processos formativos. Buscamos na contadora de filmes, personagem principal de uma obra de Hernán Rivera Letelier (2013) e de um excerto do texto no qual é referido um pensamento da personagem mencionada:

Certa vez li por aí, ou vi num filme, que quando os judeus eram levados pelos alemães naqueles vagões fechados, de transportar gado - com apenas uma ranhura na parte alta para que entrasse um pouco de ar-, enquanto iam atravessando campos com cheiro de capim úmido, escolhiam o narrador entre eles e, subindo-o em seus ombros, o elevavam até a ranhura para que fosse descrevendo a paisagem e contando o que via conforme o trem avançava. Eu agora estou convencida de que entre eles deve ter havido muitos que preferiam imaginar as maravilhas contadas pelo companheiro a ter o privilégio de olhar pela ranhura. (LETELIER, 2013, p. 75/76).

Portanto, “A contadora Kairós5 é a personagem-metáfora que empresta sua voz aos contos e, simultaneamente, reforça a aposta na potência da narrativa, como campo de imaginação de possíveis, e logo, como recurso de (auto) formação pedagógica. A seguir, apresentamos quatro narrativas curtas, tratadas nesse estudo, como “contos pedagógicos”.

Estudantes do 1º ano do Ensino Fundamental e avaliação inicial no AEE

A contadora Kairós: Escuto a professora do Atendimento Educacional Especializado e sua fala intrigada com a expressiva lista de estudantes encaminhados do primeiro ano do ensino fundamental para avaliação inicial. Quais serão as motivações? Os registros das professoras vão chegando, e ela percebe que se repete como justificativa a troca de letras e o desconhecimento de todo o alfabeto pelas crianças de seis anos, estudantes do 1º ano, parecendo haver expectativas do grupo docente quanto ao papel preparatório à alfabetização do currículo da educação infantil.

A professora do AEE narra que vive um processo mútuo de familiarização e de estranhamento com a rigidez dos rituais escolares estabelecidos, que por sua vez, provocam uma espécie de cisão entre as etapas da educação infantil e ensino fundamental.

Despontam como perguntas importantes: O que é considerado para essa escola currículo do 1º ano do ensino fundamental? A dificuldade será das crianças ou daqueles que delimitaram a alfabetização, como objetivo esperado no 1º ano do ensino fundamental?

Também são motivos de muitos pedidos para avaliação inicial do AEE os estudantes que não executam com a eficiência esperada algumas das atividades clássicas da escola, tais como, as cópias das lições do quadro com uma caligrafia bem desenhada ou que dão indícios de um comportamento desconectado em relação à atenção esperada na figura do docente e passam a ser descritos como muito “lentos”. Como tornar tempo pedagógico aquele tempo que toma urgência e torna o currículo uma “corrida” e seleciona os “aptos”?

“Tenho uma aluna analfabeta nos anos finais da EJA” no AEE

A contadora Kairós: Hoje estive escutando uma palestra para um grupo de professores sobre atendimento educacional especializado e práticas pedagógicas inclusivas.

A palestra começa em tom de conversa. A pergunta em tom prescritivo vem de uma professora de EJA - Anos finais: - Tenho uma aluna com deficiência intelectual analfabeta nos anos finais da EJA. Quem tem que alfabetizar ela? O professor de Português ou a professora do AEE? A professora respondeu a pergunta em tom de enigma: Os dois e nenhum. (...) Como assim? Pensei baixinho.... - Essa é uma pergunta muito boa, professora, pois permite mais de uma resposta. É uma pergunta que depende daquilo que a senhora define como alfabetização para um jovem com deficiência, ou melhor, para essa jovem com deficiência que menciona, na relação com o desenho coletivo de uma classe e no desenho individualizado do AEE. Dependendo da sua resposta, eu direi que é uma atribuição dos dois, ou, de nenhum. A narrativa compõe a ocasião para questionarmos os cerceamentos rígidos e binários que estabelecemos na escola, com atribuição de papéis fixos e incomunicáveis. Uma ocasião igualmente para refletirmos: Que significados assumem os vocábulos “complementar/suplementar” como atribuição do AEE no processo de escolarização dos sujeitos da educação especial?

Jovem de 15 anos com deficiência intelectual no 6º ano do ensino fundamental

A contadora Kairós: Em uma escola havia uma aluna chamada Elisa com deficiência intelectual no 6º ano do ensino fundamental, cujo histórico de escolarização inicia com um período de reprovação na escola privada e busca contínua dos profissionais da escola por explicações para seu insucesso dirigida aos profissionais da saúde. Quando pequena, cogitou-se que tinha autismo, depois TDAH (tendo tomado ritalina), mais tarde dislexia. A menina foi transferida por sua família para uma escola pública, onde passou a ter o acompanhamento escolar do AEE, na sua tradução mais simplista, como Sala de Recursos. A professora da Sala de Recursos escreveu no parecer pedagógico da Elisa: “Recomendo a promoção para o ano seguinte...”. A ideia de que ela tinha amparo legal desta sala para ser aprovada se confirmou também nos anos seguintes e ela foi aprovada por sua suposta incapacidade. A menina tornou-se uma jovem que ainda não tem a competência da leitura e da escrita plenamente desenvolvida no 6º ano do ensino fundamental.

A nova professora do AEE conheceu a jovem, transcorridos dois meses letivos do 6º ano do ensino fundamental. A jovem ambientada com os rituais que envolviam apenas a professora unidocente até o quinto ano estranhou demais a organização por disciplinas e as mudanças sucessivas de professores em uma mesma manhã de aula. Saia da sala para chorar no corredor negando-se a ingressar na aula. Deste ponto em diante, a história é muito parecida com as histórias já narradas. Tornar essa jovem uma aluna, vinculando e comprometendo todos os professores com sua escolarização foi uma tarefa árdua. Sustentar para os professores, desacreditados das capacidades da jovem, que uma estudante com deficiência intelectual e não alfabetizada plenamente poderia participar da aula e elaborar aprendizados, muitas vezes, foi uma fala inócua que exigiu encontrar alternativas para abordar a questão pelas “bordas”.

Nas falas com os professores, alguns não deixavam de lado o tom acusatório e queixoso: “Como esta guria ingressou no 6º ano sem saber nada? Ela tem amparo da Sala de Recursos? Nós vamos ter que aprová-la no final do ano? O que essa guria tem que não aprende? Qual a idade mental dessa guria?” A professora do AEE respondia a cada uma das perguntas, selecionando as palavras apropriadas para sensibilizar os professores: - Ela ingressou no o 6º ano com poucos aprendizados por negligência de todos nós. Por uma cultura da escola que empurra para amanhã o que podemos fazer hoje. - Elisa não tem “amparo” da sala de recursos para ser dispensada de uma avaliação final. Ela tem direito ao apoio do AEE e um dos lugares que esse apoio pode ser exercido é na Sala de Recursos. Não podemos antecipar os resultados do final do ano quanto à aprovação ou reprovação. Nossa escola é seriada e as normas regimentais valem para todos os alunos. Por outro lado, teremos que ser coerentes na avaliação dos progressos da aluna, pautando em paralelo, a avaliação das estratégias e apoios que oportunizamos a ela. - Ela não aprende do modo como a escola acostumou-se a esperar que os estudantes aprendam. Ela aprende de outras formas e teremos que descobrir que formas são essas. Meu trabalho também será orientá-los sobre itinerários que poderemos construir juntos para que a aluna possa compreender os conteúdos. - Idade mental é uma “medida” inventada a partir de alguns testes da psicologia e que não informa nada para o nosso trabalho pedagógico e para os objetivos que teremos que traçar conjuntamente entre atendimento educacional especializado e sala de aula.

A professora do AEE compartilhou o plano de atendimento educacional especializado com os professores, o qual incluiu orientações sobre os estilos de aprendizagem da aluna e condutas pedagógicas que poderiam ser realizadas por eles para facilitar os aprendizados escolares da Elisa. Ela percebeu que as perguntas foram diminuindo e, otimista, leu esse silenciamento como um indício positivo. Os professores estão mais tranquilos e compreenderam o papel do AEE e a sua própria responsabilidade com a escolarização da jovem. Em parte. O tempo encarregou-se de mostrar que o silenciamento de alguns professores representou a escolha por negligenciar a presença da aluna em sala de aula. A professora do AEE entende que “o ponto de partida é a ética da escolha” (EIZIRIK, 2011, p.74), como condição vital. Toda ação ou omissão implica em uma escolha dentre domínios que nem sempre são amplos, mas são sempre possíveis.

Dessa forma, a professora prosseguiu propondo outras táticas para aproximar-se dos professores. Sua principal tática foi instrumentalizar a aluna para instigar os professores a lhe auxiliar mais em sala de aula. Estabeleceu com a aluna que um dos encontros semanais na sala de recursos envolveria o tratamento metacognitivo dos conteúdos trabalhados em aula junto com a estudante, no turno oposto, ensinando a ela como elaborar um esquema, um roteiro de estudo sobre um determinado assunto aprendido em aula, traduzindo os capítulos dos livros didáticos de assuntos destacados pelos professores como importantes em esquemas visuais com apoio da comunicação alternativa e propondo que a aluna levasse para a sala de aula como material de consulta, motivando-a a mostrar para a professora “o jeito” que ela poderia aprender melhor o conteúdo. A aluna tinha uma grande responsabilidade nesse processo, pois tinha que identificar semanalmente os conteúdos de sua maior dificuldade e trazer para o AEE, já que a professora não conseguia contar com esse canal de comunicação aberto com todos os professores. A tática, algumas vezes, era subvertida pela própria aluna que trazia por semanas consecutivas algum conteúdo que havia assimilado e queria mostrar para a professora do AEE o seu bom desempenho.

Perante as dificuldades de assimilação e compreensão dos conceitos apresentados pela aluna, bem como de transferir seus aprendizados para uma situação nova, a professora compreendeu que seria mais acessível à estudante auxiliá-la a desenvolver sua capacidade de síntese, reflexão e compreensão, bem como, aprimorar seu processo de alfabetização nas habilidades de leitura e escrita, elaborando os próprios conteúdos curriculares como ferramentas de trabalho. Teria sido muito relevante para o trabalho pedagógico ter estabelecido uma comunicação efetiva com todos os professores, em busca da vinculação do grupo docente com a avaliação formativa do desempenho da aluna. Todavia, essa lacuna não foi condição paralisante da função do AEE.

A professora do AEE afirma que se preocupa com o futuro. Precisa avançar nas táticas de comunicação com os professores. Pensa que no momento em que esses alunos ingressarem no ensino médio e estiverem submetidos ao aprendizado de linguagens muito específicas, as quais não domina (tais como química, física), as funções do AEE serão ainda mais dependentes da articulação com os professores dos componentes curriculares. Como indagação para persistir na reflexão: O conteúdo curricular pode ser tomado como ferramenta de trabalho do AEE? Como estabelecer uma linha tênue que distingue o AEE do reforço escolar e das atribuições do professor de sala de aula?

O AEE no Projeto Político Pedagógico da Escola

A contadora Kairós: O momento é de reunião pedagógica e de elaboração coletiva do texto do projeto político pedagógico. O primeiro roteiro do texto foi escrito pela equipe de supervisão pedagógica e em plenária todos os professores avaliam o teor do texto. Foi solicitado à professora do AEE escrever um capítulo sobre a Educação Especial para fazer parte do PPP. É a primeira vez que o AEE constará no documento. No momento de apreciação do texto em plenária, a professora redatora do capítulo percebe que ele foi incluído na parte dos setores de gestão da escola. A professora sente a falta do destaque à educação especial no capítulo que menciona as etapas e modalidades de ensino ofertadas pela escola e solicita a inclusão de um parágrafo apontando para o caráter de modalidade transversal à educação nessa seção. Os pensamentos contrários surgem e a questão, aparentemente simples, levantada pela professora gera polêmica.

O grupo contrário à inclusão da educação especial como modalidade mostrava desconhecimento da relação entre educação especial e Atendimento Educacional Especializado, associando o termo educação especial às classes especiais e dizendo que essa escrita abriria brechas para o retorno dessas classes na escola. Depois de muita discussão e consulta ao texto da lei para demonstrar aos professores a descrição de educação especial como modalidade de ensino, a questão é aparentemente pacificada. O prolongado debate, gerado a partir de uma questão conceitual, convoca a pensar sobre os sentidos contraditórios do AEE que habitam esse coletivo.

Uma das descrições do AEE que circulam neste cotidiano parece ser aquela que o considera como um serviço ou setor pedagógico, que por sua vez, não pode ser descrito lado a lado com a organização curricular dos processos de ensino-aprendizagem, em níveis e modalidades de ensino. Essa tradução das funções do AEE é saber-reflexão para compreender o distanciamento entre currículo e educação especial na escola. Auxilia a identificar o papel desse dispositivo no espaço em que está circunscrito. Além da relação com o espaço de intervenção é importante pensar sobre a relação do AEE com o tempo escolar.

O profissional do AEE nesta mesma escola costuma ser muito solicitado para tomada de decisões nos tempos de avaliação final. O resultado ou produto ainda prevalece ao processo. Em um debate que participou com professores dos anos iniciais sobre a avaliação de uma aluna foi indagada se achava que a aluna deveria ser aprovada ou promovida. Intrigada com a pergunta questionou o uso da nomenclatura “promovida”, pois os termos do regimento escolar da escola são “aprovado” ou “reprovado”. A supervisora pedagógica explicou que a escola adotou o termo “promovido” para deixar bem claro para os pais que o seu filho/a estava sendo aprovado para o ano seguinte com dificuldades. Esse termo começou ser usado especialmente na avaliação dos alunos considerados público-alvo da educação especial. A professora se opôs ao termo. Disse que era discriminatório. A escola adota parecer descritivo o que já garante um relato detalhado dos aprendizados e defasagens dos alunos, não sendo necessária essa distinção. Não conseguiu convencer a equipe, mas compreendeu que a normalidade ainda é parâmetro curricular nos processos de avaliação realizados na escola.

Como pergunta-síntese, propomos: Que espaços-tempos o Atendimento Educacional Especializado ocupa na escola? Essas posições e circunstâncias favorecem perceber a trama de unidade entre o currículo e o AEE?

Considerações finais

Nas próximas linhas, dedicamo-nos as reflexões suscitadas pelo ato de selecionar as histórias, compor as imagens-narrativas e visualizá-las, lado a lado, como a montagem de um mosaico, buscando as singularidades e as regularidades entre elas, assim como a abertura de espaço para imaginação de enredos em que o repertório pedagógico à disposição nas imagens-narrativas possa ser aprimorado. Propusemos, como padrão, a finalização de todas as imagens-narrativas com questionamentos, como forma de conciliar metaforicamente a narrativa como uma escrita aberta e sem fim, bem como, de dar ênfase ao que compreendemos, neste momento histórico, como saberes que precisam ser questionados e refletidos, do ponto de vista macro e micropolítico para que possamos avançar em direção à acessibilidade curricular, como meta da inclusão escolar.

O caminho de análise escolhido privilegia a abordagem das questões como espécie de roteiro para a construção de novas questões. Ao propor, neste mesmo percurso, um itinerário de possíveis respostas às questões, trabalhamos com a abordagem de uma Pedagogia como uma ciência de “ações particulares” (MEIRIEU, 2008). Pensamos que essa posição é fundamental para que a Pedagogia possa comunicar que “a distância irredutível entre o dizer e o fazer” (MEIRIEU, 2008) está na sua gênese e é dada pela impossibilidade de repetição de uma experiência e não pela ruptura abissal entre prática e teoria, ciência e didática do cotidiano.

Garimpar respostas para as questões suscitadas pelos cotidianos é uma forma de romper com essas polaridades e, simultaneamente, afirmar que os caminhos já trilhados podem propor novas imagens, fomentando a imaginação criadora e qualificadora das táticas para os contextos escolares que se pensam autopoiéticos (MATURANA; VARELA, 2010).

Colocamos em visibilidade novamente as questões que orientam esse tempo de análise:

- Como tornar tempo pedagógico aquele tempo que toma urgência e torna o currículo uma “corrida” e seleciona os “aptos”?

 - Que significados assumem os vocábulos “complementar/suplementar” como atribuição do AEE no processo de escolarização dos sujeitos da educação especial?

- O conteúdo curricular pode ser tomado como ferramenta de trabalho do AEE? Como estabelecer uma linha tênue que distingue o AEE do reforço escolar e das atribuições do professor de sala de aula?

- Que espaços-tempos o Atendimento Educacional Especializado ocupa na escola? Essas posições e circunstâncias favorecem perceber a trama de unidade entre o currículo e o AEE?

O roteiro de questões anunciadas comunica a articulação entre a educação especial e a educação geral. A primeira questão pode ser facilmente deslocada para o debate da educação geral, pois coloca em evidência a necessidade institucional do debate curricular envolver a todos os agentes da escola. As demais questões aprofundam a análise do Atendimento Educacional Especializado e do currículo.

A primeira história, em termos de trajetória, fala de sujeitos em início de escolarização. Sujeitos com os quais a escola é ainda um pouco mais “tolerante” do que com aqueles sujeitos que já avançaram aos anos finais, sem consolidar as aprendizagens dos conteúdos e/ou objetivos escolares propostos. Os estudantes que, no início de sua escolarização, desafiam os professores e são potenciais sujeitos demandantes de apoios pedagógicos especializados, ainda causam incômodo, perturbação e preocupação dos professores, sendo que dependendo do modo que olharmos para essa indignação, é possível identificar nela a potência de uma faísca de esperança de que esses sujeitos ainda têm tempo de modificarem o curso de suas trajetórias escolares.

A segunda e a terceira história envolvem sujeitos em idade jovem e que já acumulam uma trajetória de fracasso escolar, capaz de justificar algumas condutas de indiferença do cotidiano escolar construídas culturalmente perante eles. Une-se como agravante, ao tempo cronológico dos sujeitos, a estrutura institucional defasada de escola que compartimenta e organiza os níveis e modalidades por disciplinas ou áreas, envolvendo a atuação de um grupo de docentes, sendo cada um responsável por uma parte da estrutura curricular. Essa estrutura, na maior parte das vezes, não propõe a comunicação entre as partes, o que fragiliza o trabalho pedagógico do Atendimento Educacional Especializado e, consequentemente, a acessibilidade curricular do estudante com deficiência.

Neste desenho curricular que envolve vários profissionais, a cultura de “cada um faz uma parte” é responsável por manter a ideia de que nenhum dos professores ou apenas o professor do Atendimento Educacional Especializado, por exemplo, é o responsável pelo desenvolvimento das competências básicas de leitura e escrita, indispensáveis para o aprendizado de qualquer disciplina, quando envolve um estudante que já ultrapassou os anos iniciais do ensino fundamental ou o ciclo de alfabetização, sem apropriar-se plenamente dessas competências. Em duas das histórias, a temática da alfabetização das pessoas jovens e adultas com deficiência está presente. Consideramos que essa temática presta-se muito bem para os propósitos dessa reflexão sobre currículo e educação especial, uma vez que esse é um conteúdo emblemático do ponto de vista dos saberes que a escola reconhece, de modo inquestionável, ao longo do tempo, como sua função precípua.

Outro aspecto que dá um contorno singular às histórias é o fato de que as narrativas que tratam sobre a alfabetização envolvem sujeitos com deficiência intelectual, aqueles em relação aos quais a escola tem mais dificuldade de reconhecer a possibilidade de aprendizagem e a natureza dos apoios que demandam. Na imagem-narrativa em que a professora ouvinte da palestra questiona sobre de quem é a responsabilidade de alfabetizar um estudante com deficiência intelectual na EJA - Anos Finais, a resposta é propositadamente escrita em tom enigmático para que possamos pensar que essa não é uma resposta pontual. Como grande parte dos argumentos desenvolvidos neste artigo, inscritos no campo das incertezas da Pedagogia, é uma resposta relacional. Dentre as respostas possíveis, aquela que se encontra em mais sintonia com as premissas que sustentamos é a que descreve a alfabetização como um processo cultural amplo e que vai além de decodificar o código alfabético. Elaborar um trabalho sistemático de alfabetização, tal qual ocorre nos anos inicias do ensino fundamental, de fato, é uma situação impossível a um professor de sala de aula dos anos finais, pela necessidade de manter o estudante vinculado ao projeto coletivo da turma e pelo próprio tempo do sujeito que é outro, sendo bastante simplista a ideia de “recuperar o tempo perdido”, pela via da manutenção de uma história escolar paralela de diferenciação curricular para esse sujeito.

Observamos que continua fazendo parte do discurso da escola uma leitura linear do tempo curricular, de modo que se entende que existem competências, tais como a alfabetização, que são pré-requisitos para que o sujeito possa se apropriar de outros objetos da cultura. Nessa situação, em específico, que envolve a corresponsabilização pelo processo de alfabetização de uma estudante matriculada na etapa final do ensino fundamental, torna-se elementar a compreensão docente acerca da natureza interdisciplinar do aprimoramento dos processos mentais, das competências de leitura e de escrita associada à aquisição dos conteúdos pertinentes à etapa de escolarização da estudante. A relação articulada entre esses elementos viabiliza um planejamento pedagógico acessível às possibilidades da discente e, simultaneamente, desafiadoras da ampliação das potencialidades da aluna. Em outras palavras, é atribuição de todos os professores transformarem “os conteúdos de aprendizagem em procedimentos de aprendizagem” (MEIRIEU, 1998). O grande desafio é fazer dialogar os saberes dos profissionais do ensino comum e especializado em torno de um objetivo comum, pois a tendência da cultura escolar é diferenciar a atribuição de cada um, por meio de partes que não se comunicam.

Na imagem-narrativa que envolve uma jovem de 15 anos em processo de alfabetização, matriculada nos anos finais, analisa-se a atuação do professor do AEE como o protagonista dos processos de avaliação e identificação junto à estudante quanto as suas hipóteses de construção da leitura e da escrita, por meio de uma ação pedagógica individualizada, com o objetivo de propiciar subsídios teórico-metodológicos para que os professores do ensino comum desenvolvam a sua ação curricular, em adequação às “reais” possibilidades de utilização do código escrito pela estudante Elisa. Com essa ação, o profissional do AEE dá indicativos ao professor dos componentes curriculares (Geografia, História, Ciências, etc.) de que o planejamento pedagógico deve propor meios de tornar o conteúdo uma ferramenta de metarreflexão do processo de alfabetização da estudante. A questão desafiadora passa a ser compreender de que modo um conteúdo que é objeto de estudo de uma área específica (por exemplo, o conteúdo “Mudanças climáticas” relativo à disciplina de Geografia) pode ser alvo de um investimento prévio do docente com foco em torná-lo apropriado ao desenvolvimento de competências interdisciplinares, como a leitura e a escrita. Portanto, a disposição ou a forma de apresentação do conteúdo antes de ser ferramenta de estudo do aluno é ferramenta de estudo do professor, como alguém que é responsável pela sua “lapidação” ou transformação em atividades ou tarefas que envolvam os estudantes com o ato de aprender.

Assim, na hipótese de um aluno que está em processo inicial de leitura, lendo apenas palavras e pequenas frases, a objetividade na disposição da informação, a utilização de estratégias de síntese, tais como o mapa conceitual, a elaboração de um esquema ou de uma ilustração são algumas das muitas formas de transformar um conteúdo em uma atividade coerente com o estágio de leitura e de escrita da estudante e que poderão ser previstas, a partir da busca em conhecer as suas formas de aprender, associada à inventividade docente, sem desvinculá-la do projeto coletivo da turma.

O tratamento docente do conteúdo associado ao seu objetivo e à reflexão acerca das operações mentais que são mobilizadoras dos processos de aprendizagem, por sua vez, são aspectos norteadores da comunicação entre o trabalho do professor do AEE e do professor do ensino comum. Na conjugação desses elementos didáticos, o professor do ensino comum e do AEE colaboram e participam do aprimoramento do processo de alfabetização da estudante em questão, sem a necessidade de negar a construção da leitura e da escrita como compromissos da escola e sem a delegação exclusiva dessa tarefa ao professor do AEE. Essa necessidade contínua de ajustamento ou regulação, entre os sujeitos escolares - aluno e professor - para elaboração dos caminhos didáticos pelo professor, Meirieu (1998) nomeia como gestão da aprendizagem. O autor aborda que os caminhos didáticos para a aprendizagem são estabelecidos a partir da identificação dos “pontos de apoio” dos sujeitos. Citamos Meirieu (1998, p. 40-41) para explicar e ilustrar esse aspecto: "o que se pode esperar, o que se deve procurar é, em primeiro lugar, um ponto de apoio no sujeito, mesmo o mais sutil, um ponto ao qual articular um aporte, onde instalar um mecanismo para ajudar o sujeito a crescer (MEIRIEU, 1998, p. 41).

Identificar os “pontos de apoio” repercute na necessidade de que os caminhos didáticos possam ser flexíveis e reorganizados constantemente, reconhecendo os sutis aprendizados dos estudantes para organizar situações didáticas que, ao mesmo tempo, o sujeito sinta-se capaz de realizar utilizando o que já sabe e não chegue à solução com “economia”. Seria desastroso para a aluna com deficiência intelectual do 6º ano evocada na imagem-narrativa se a professora de Geografia compreendesse que pelo fato da aluna não dominar plenamente a leitura e a escrita ela só poderia ter acesso às representações cartográficas (mapas, por exemplo), ignorando o resto do conteúdo de Geografia. O exemplo, embora seja pitoresco, não está tão distante de algumas práticas que se observam nos contextos escolares onde os professores entendem que simplificar as proposições curriculares, propondo uma lista mínima de objetivos e conteúdos para serem atingidos por esses alunos, é o único caminho possível.

De fato, necessitamos olhar para as programações dos conteúdos didáticos com mais autoridade pedagógica, identificando para todos os alunos (e não apenas para os estudantes público-alvo da educação especial), quais conteúdos são núcleos estruturantes de outras aprendizagens e quais conteúdos são acessórios e complementares, sem desconsiderar o fato de que, historicamente, a escola tem colocado os estudantes em posição de depositários de informações de curto prazo. Seguindo na análise do conteúdo como uma ferramenta didática importante do currículo, pretendemos problematizar as leituras binárias a respeito do que seja a função complementar/suplementar do AEE que circulam no contexto das práticas. O discurso escolar tem definido que é tarefa da classe comum a escolarização e isso envolveria o aprendizado dos conteúdos correspondentes ao nível/etapa de ensino e é tarefa do AEE auxiliar na organização dos métodos, recursos, estratégias. O ponto de debate que buscamos levantar reside na fixação desses lugares e na separação de elementos didáticos que são inseparáveis (conteúdo e método), resumindo o AEE a uma função meramente instrumental. Essa polaridade é ainda mais agravante no trabalho pedagógico desenvolvido com os estudantes com deficiência intelectual, uma vez que os documentos orientadores do Ministério da Educação estabelecem como um dos componentes do AEE para esses sujeitos:

Estratégias para o desenvolvimento de processos mentais – promoção de atividades que ampliem as estruturas cognitivas facilitadoras da aprendizagem nos mais diversos campos do conhecimento, para o desenvolvimento da autonomia e da independência do estudante frente às diferentes situações no contexto escolar. A ampliação dessas estratégias para o desenvolvimento dos processos mentais possibilita maior interação entre os estudantes, o que promove a construção coletiva de novos saberes na sala de aula comum. (BRASIL, 2014, p. 4)

É possível inferir na cultura escolar, que prevalece no contexto das práticas, a releitura dessa orientação macropolítica por meio de uma interpretação que distingue conteúdo e processo de elaboração mental recomendando que os conteúdos sejam trabalhados em sala de aula e designados “processos mentais” na sala de recursos multifuncionais. Um dos efeitos concretos dessa formulação é a evidência colhida na ação pedagógica de alguns profissionais do AEE, no sentido de que a epistemologia que sustenta a sua prática é centrada na figura do aluno, reduzindo sua atribuição a uma abordagem não diretiva na qual os jogos educativos ou tecnologias digitais acessíveis são considerados recursos para o desenvolvimento das capacidades mentais dos estudantes com deficiências, de modo que a sala de recursos passa a receber a crítica de que é o espaço para o estudante “jogar ou recrear”, esvaziado de nexos com os conteúdos escolares e de uma intencionalidade pedagógica clara com o uso desses recursos. A intenção dessa reflexão não é negar a importância dos jogos educativos, que inclusive fazem parte do Kit distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) como integrante do Programa de implantação das salas de recursos multifuncionais nas escolas e podem ser ferramentas potentes a serviço da aprendizagem, mas colocar em questionamento a utilização desse espaço unicamente para essa finalidade, na qual o recurso (jogo, tecnologia) tem fim em si mesmo e inviabiliza a potência esperada da ação do próprio profissional do AEE.

Observamos, ainda, que a ideia difundida de que o AEE não é reforço escolar tem se constituído como uma antinomia nesse debate, pois de um lado informa que o apoio complementar\suplementar não se refere à ampliação da quantidade das mesmas estratégias já elaboradas em sala de aula, de outro, tem distanciado os conteúdos escolares dos fazeres do AEE. Como Meirieu (1998), entendemos que a aprendizagem dos conteúdos está condicionada ao aprimoramento dos processos mentais e vice-versa:

Nenhum conteúdo existe fora do ato que permite pensá-lo, da mesma forma que nenhuma operação mental pode funcionar no vazio... mesmo que fosse grande a tentação de acreditar que ela funcionaria melhor sem conteúdo, porque teve que ser isolada metodologicamente para melhor ser compreendida (...) Uma aprendizagem é sempre a operação mental e conteúdos. (MEIRIEU, 1998, p. 118).

Deste modo, especialmente nos anos finais e no ensino médio, o AEE realizado como ação na sala de recursos, poderia colaborar mais com os estudantes, prevendo na organização de seus tempos pedagógicos, um espaço em que os conteúdos da sala de aula, sejam utilizados como ferramentas de aprendizagem, tomadas de sentido, na elaboração e na aquisição de novas estruturas cognitivas. É certo que ultrapassar esses binarismos conteúdo x método e conteúdo x operações mentais também implica em avançar na articulação de um planejamento pedagógico cooperativo entre os professores do AEE e da sala de aula. É preciso destacar que o fato de nesse espaço haver uma valorização de um trabalho individualizado, ou em pequenos grupos, não significa que a aprendizagem está centrada unicamente no sujeito aluno, nos seus interesses e desejos espontâneos.

Ampliando essas considerações analíticas, trazemos algumas observações a respeito de questões mais gerais que envolvem a trama curricular que se constitui nos cotidianos. São tramas invisíveis que se constituem na relação pedagógica com os sujeitos considerados público-alvo educação especial. Nessa direção, um aspecto que perpassa praticamente todos os contos da contadora Kairós, e foi igualmente discutido como achado de pesquisas, como ocorre em Vieira (2012), é o fato de que o currículo praticado subjetiva os estudantes como incapazes de aprender, por diversos motivos, entre eles, o diagnóstico clínico.

Nas nomeações, nas descrições sobre a trajetória do sujeito estão sempre presentes as palavras de tom negativo e restritivas das possibilidades do sujeito. Essa prática tende a ser uma barreira significativa que não pode ser desprezada na temática educação especial e currículo. Pode-se considerar como tarefa para o Atendimento Educacional Especializado a ação de propor a acessibilidade curricular, no sentido de desenvolver as condições ambientais favoráveis para que a proposta de acessibilidade curricular contemplada no plano de atendimento educacional especializado seja acolhida pela escola. Ao contrário, os apoios explicitados no plano de AEE do aluno podem se associar ao risco de não resultar em currículo praticado pelos professores da sala de aula. Designar a tarefa de sensibilização dos docentes para o projeto de inclusão escolar ao AEE é uma ação bastante ampla e que perpassa suas fronteiras, à medida que envolve recuperar a identidade do professor como “profissional da aprendizagem” (MEIRIEU, 1998, p. 18).

Também merece destaque o fato de que, em algumas das histórias, o perfil do aluno do AEE não se encaixa com rigorosidade no público-alvo previsto nas diretrizes da educação especial: alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação. Essa escolha foi feita com o propósito de demonstrar que o currículo praticado atualiza a própria diretriz macropolítica. O currículo praticado nem sempre consegue sustentar essa delimitação do perfil, pois parte da premissa de que todo estudante que acessa o serviço precisa de apoio para a reorganização de uma intervenção pedagógica adequada em sala de aula. A negativa de apoiar um aluno encaminhado porque não se “encaixa” no perfil do atendimento proposto pela política de educação especial pode significar impor um “muro” entre o professor desse aluno e o serviço especializado; pode significar o aluno continuar sendo descrito como alguém “fora do padrão” esperado pela escola, e, com isso, o AEE, nesse espaço, poderá incorrer no risco de auxiliar a manter um currículo que estratifica os estudantes. Mesmo que a mencionada lista de encaminhamentos fosse reduzida e específica aos alunos “da educação especial” (situação que a experiência e o movimento de pesquisa nos diferentes cotidianos mostra ser a excepcionalidade), o atendimento ofertado ao aluno público-alvo da educação especial, em “articulação” com o professor do ensino comum, suscita ajustamentos na conduta pedagógica desse professor, com relação a esse estudante e com os demais da sua sala de aula. O AEE “comunica” uma expectativa de invenção de currículo, pois possibilita a construção da comunicação como “desencadeamento mútuo de comportamentos coordenados entre os membros de uma unidade social” (MATURANA; VARELA, 2010, p. 214).

A questão que envolve a delimitação do público-alvo da educação especial também é oportuna para refletirmos sobre os espaços-tempos do AEE dentro do cotidiano escolar. Tornar o AEE próximo do debate do currículo, no sentido da garantia da participação e aproveitamento dos estudantes com deficiência nos processos de aprendizagem, envolve ampliar seus espaços de deslocamento dentro da escola, não se fixando em lugares ou tempos específicos.

As imagens elaboradas por Certeau (2012) a respeito da ocupação de um lugar e de um espaço auxiliam a compor a imagem do Atendimento Educacional Especializado como unitária ao currículo. Certeau (2012) define lugar como uma configuração instantânea de posições e indicativa de estabilidade. Define espaço como um lugar praticado, no qual ocorre uma confluência de operações que o orientam, temporalizam, circunstanciam, levando a operar como uma unidade complexa, cujos arranjos de convivência, ora são contratuais, ora são conflituosos.

Portanto, foi intenção desse estudo propor o deslocamento do AEE como lugar ao AEE como espaço, como forma de propor respostas e tensionar a relação entre currículo e educação especial. As soluções arranjadas em cada uma das narrativas são invenções que nascem justamente da movimentação nesse espaço-tempo, em busca de “pontos de apoio” para os profissionais e pesquisadores da educação especial, na apropriação e atualização da política de educação especial como um processo de aprendizagem. Além disso, entendemos que esses “contos pedagógicos” poderão ser ampliados, atualizados e problematizados pelos próprios leitores, como estratégia de aprendizagem individual ou coletiva.

Com o conjunto de narrativas do cotidiano do Atendimento Educacional Especializado, anunciamos a complexidade existente em cada cotidiano, reconhecendo que essas narrativas podem seguir caminhos imprevisíveis e que, dentro da escola, nas tramas cotidianas, todos esses fios se articulam, de modo que não é possível separar currículo e educação especial ou currículo e atendimento educacional especializado. Nesse sentido, analisa-se o fato de as macropolíticas silenciarem sobre esse tema, o que tem produzindo um debate paralelo sobre currículo, bases curriculares nacionais comuns, atendimento educacional especializado, o qual, por sua vez, permanece compartimentado dentro de espaços institucionais identificados como responsáveis pela gestão da educação.

Com a citação de Carvalho (2009), encerram-se, provisoriamente, as ideias discutidas neste artigo:

A pesquisa com o cotidiano se configura como uma pesquisa de captura de indícios dos “possíveis”, da potencialidade e/ou do agenciamento de um corpo político de outra ordem ou natureza, que para avançar deverá se manifestar buscando viver as situações e, dentro delas, procurando produzir pela criação, experimentação e resistência. (CARVALHO, 2009, p. 32)

As palavras de Carvalho (2009) são ilustrativas dos sentidos da pesquisa com o cotidiano e resumem nossa proposta de elaboração e de análise de fragmentos do cotidiano para fortalecimento da articulação entre Atendimento Educacional Especializado e Currículo na Escola Comum como estratégia política e pedagógica em busca da garantia do direito à educação escolar, defendida como o direito à aprendizagem dos estudantes com deficiência.

Referências

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BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Glossário da Educação Especial 2014. MEC/INEP, 2014. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/educacenso/educacao_especial/2014/glosario_da_educacao_especial.pdf Acesso em: 14 de fevereiro de 2016.

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MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. 8ª edição. São Paulo: Palas Athena, 2010.

MEIRIEU, Philippe. A pedagogia entre o dizer e o fazer A coragem de começar POA: Artmed, 2008.302p.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. O currículo como criação cotidiana. Petrópolis: RJ: DP et Aliii; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

VIEIRA, Alexandro Braga. Currículo e Educação Especial: as ações da escola a partir dos diálogos cotidianos. Vitória, UFES, 2012, 326 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.

Notas finais

1 O presente artigo é decorrente da tese de doutorado de Clarissa Haas, defendida em 2016.

2 Conforme os direcionamentos da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva são público-alvo da Educação Especial: sujeitos com deficiências intelectual/mental, visual, auditiva, física, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e/ou superdotação.

3 Ao longo do texto utilizamos a nomeação “estudantes com deficiência” para se referir a todos os sujeitos que são público-alvo da educação especial. Fazemos essa generalização, uma vez que os estudantes com deficiência representam a proporção maior nas estatísticas educacionais dos estudantes público-alvo da educação especial.

4 Atendimento Educacional Especializado (AEE), conforme o conjunto de orientações e normativas da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, trata-se de serviço de apoio educacional especializado a ser ofertado de modo complementar\suplementar à escolarização nas classes de ensino comum, por professor especializado, sendo que um dos espaços de atuação desse profissional é na sala de recursos multifuncionais.

5 Kairós em grego significa o tempo como ocasião ou momento oportuno.

 

Correspondência

Clarissa Haas – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Caxias do Sul, Rua Avelino Antônio de Souza, n. 1730, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul – Brasil.

CEP: 95043-700

 

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