EDITORIAL DOSSIÊ - DIREITOS LINGUÍSTICOS DOS SURDOS: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS INCLUSIVAS

 

           

É com satisfação que apresentamos o Dossiê intitulado DIREITOS LINGUÍSTICOS DOS SURDOS: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS INCLUSIVAS”, constituído de treze artigos inéditos que apresentam discussões e análises pertinentes à área da educação de surdos, buscando enfatizar como critério organizativo das publicações justamente os dois vetores usualmente tomados por objeto de análise nas políticas educacionais: concepções e práticas.

Passadas quase duas décadas do reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como língua cooficial das comunidades surdas brasileiras, pela Lei Federal 10.436/2002, e sedimentadas inúmeras ações e experiências denominadas “inclusivas” para surdos, persiste a reivindicação pela defesa dos direitos linguísticos dos surdos, materializada nas demandas do movimento surdo brasileiro, em uníssono com estudos e investigações acadêmicas que mobilizam a  escrita de dissertações e teses com essa especificidade temática.

No reconhecido cenário de multilinguismo brasileiro, lideranças surdas e seus aliados, pesquisadores e profissionais bilíngues da área, que empunham bandeiras políticas matizadas em diferentes colorações ideológicas reivindicam, desde os anos 1990, uma pauta unitária: a condição de que os surdos brasileiros sinalizantes da Libras integram um grupo cultural e linguístico minoritário.

No artigo “Associação de Surdos de São Paulo e a defesa pelos direitos linguísticos dos surdos”, Natalia Francisca Frazão e Ana Claudia Balieiro Lodi rememoram esse momento que mobilizou lutas nacionais da comunidade surda, registrando o processo histórico das ações da Associação de Surdos de São Paulo (ASSP), cuja gênese se deu nos anos 1950 e contribuiu para a luta nacional do reconhecimento dos direitos linguísticos dos surdos, que se materializa em conquistas legais como o Decreto Federal 5626/2005.

Especificamente sobre esse fundamento que ocupa centralidade no cenário legislativo da política educacional para surdos nacional, Larissa Bassi Piconi analisa a interseção entre políticas linguísticas e políticas educacionais para surdos, demonstrando as diferentes abordagens e significados em disputa nos campos da educação bilíngue e educação inclusiva no artigo “A educação dos surdos como domínio fundamental das políticas de linguagem para a língua de sinais brasileira: Decreto nº 5.626 / 05 em foco”.

 A pauta política da defesa da Libras unificada no movimento surdo nacional confluiu para a compreensão da língua de sinais não apenas como um sistema linguístico de estatuto natural no campo da ciência, mas, sobretudo, como a produção de expressão de uma identidade cultural coletiva das comunidades surdas nacionais. O campo dos Estudos Surdos em Educação materializou as contribuições teóricas necessárias a essa compreensão histórico-cultural dos surdos como membros de um coletivo que partilham experiências comuns marcadas pela opressão linguística e cultural, que demarcou os últimos cem anos assentados na educação linguística sob bases oralistas. Aprofundam reflexões nesse sentido, três publicações aqui organizadas: “Deafhood: um conceito em formação no campo dos Estudos Surdos no Brasil”, em que Sueli Fernandes e Francisco Martins Lopes Terceiro debatem o conceito de deafhood como ferramenta conceitual para refletir sobre relações de poder envolvendo surdos e ouvintes, operando nos deslocamentos discursivos que mobilizam o campo dos Estudos Surdos e fortalecendo a luta política por garantia de direitos linguísticos aos surdos no contexto nacional; o debate sobre ethos surdo que funda a experiência do ser surdo, sob as reflexões de Pedro Angelo Pagni e Vanessa Regina de Oliveira Martins, capturando a surdez em sua potencialidade afirmativa e singular que se materializa em “línguas/corpos” no artigo “Corpo e expressividade como marcas constitutivas da diferença ou do ethos surdo”; e “Escritas em português por surdos(as) como práticas de translinguajamentos em contextos de transmodalidade”, em que os processos de translinguajamento e transmodalidade envolvidos no trânsito das diferenças entre línguas e modalidades (Libras e português) tem concepções e ideologias linguísticas coloniais subjacentes à subalternização social da comunidade surda problematizadas por de Hildomar José de Lima e Tânia Ferreira Rezende.

Balizada no princípio de que as línguas e os seus usos constituem o alicerce do desenvolvimento humano e do seu agir social, esses estudos fundamentam os movimentos das minorias linguísticas, os quais tem exercido pressão no desenvolvimento de políticas linguísticas promotoras do reconhecimento das diferenças culturais, sociais e linguísticas dos surdos brasileiros. Essa compreensão pressupõe a garantia de que seus direitos humanos envolvem a efetivação de políticas de estado que assegurem o acesso e o uso público e privado da Libras como língua materna de identificação cultural, desde a primeiríssima infância, além do acesso ao português na modalidade escrita como segunda língua.

Os desdobramentos dos direitos linguísticos que devem ser objeto de atenção governamental no contexto da política nacional de educação inclusiva está registrado no documento “Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa”, cuja redação derivou dos debates e reflexões realizadas pelo Grupo de Trabalho formado por pesquisadores surdos e ouvintes da educação bilíngue, lideranças surdas nacionais representantes da Feneis e gestores da política de educação inclusiva do MEC, na gestão da Presidenta Dilma Roussef (Portaria Ministerial nº 1.060/2013 e nº 91/2013 do MEC/SECADI), cujo objetivo foi discutir e sistematizar subsídios teóricos, conceituais e metodológicos necessários à implementação da política linguística de educação bilíngue para surdos no sistema educacional brasileiro.

Em que pese a importância política e a democrática metodologia de sua produção, dando centralidade à língua de sinais como elemento simbólico constitutivo da formação da consciência subjetiva e social da pessoa surda, inúmeras barreiras ainda se apresentam para que a Libras institua o lugar de referência na produção da cultura humana e nos processos de escolarização nos sistemas públicos de ensino.

Nas escolas municipais e estaduais reais que compõem o sistema público do país, o acesso ao currículo em Libras, via de regra, caminha a passos lentos no Brasil. As práticas escolares que insistem se intitular “bilíngues” acabam tão somente por priorizar a presença de intérpretes em classes comuns, ou de professores sem formação bilíngue adequada.

Rubia Carla Donda da Silva e Sandra Eli Sartoreto Oliveira Martins refletem sobre a falta de unidade na composição, denominações, perfis e modos de atuação dos profissionais especializados que atuam na educação de surdos dos sistemas de ensino nacional no artigo “O ensino em e da Libras: perfis profissionais para oferta da educação bilíngue no Brasil”

A formação de instrutores de Libras: a consolidação das políticas linguísticas na Amazônia Tocantina Waldma Maira Menezes de Oliveira, Ivanilde Apoluceno de Oliveira registros e reflexões sobre as políticas linguísticas na Amazônia Tocantina no tange à formação de instrutores de Libras ensino de Libras nas escolas do Campo e reafirmar as políticas linguísticas no campo das diferenças.

O acesso do estudante surdo em Instituições Federais de Ensino Superior no município de Salvador: o caso da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Elizabeth Reis Teixeira, Nanci Araújo Bento condições de acesso do estudante surdo ao ensino superior, a partir de suas experiências em um curso preparatório no ensino secundário, que repercutem o sucesso/insucesso das políticas educacionais/linguísticas para esta população políticas públicas de acesso e permanência, da produção de conhecimento na área da pedagogia bilíngue, e na formação de recursos humanos que influenciem as práticas educacionais das escolas para a população surda.

Materiais do Ministério de Educação do Brasil: das concepções de linguagem às políticas linguísticas para o ensino de surdos de José Anchieta de Oliveira Bentes e Rita de Nazareth Souza Bentes analisa-se a política linguística do governo federal por meio dos materiais didático-pedagógicos direcionados à formação de professores do ensino de língua para surdos considerando a centralidade que esses materiais ocupam no suporte ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), principal estratégia da política de inclusão para surdos na rede pública de ensino.

As concepções da surdez na voz dos intérpretes de Libras, Luciana Figueiredo de Oliveira e Ivonaldo Leidson Barbosa Lima questionam a inclusão centrada na presença do intérprete em sala de aula, criticando valorização da cultura e da constituição de identidades surdas em detrimento de práticas educativas baseadas ainda no ensino da língua como objeto pronto e acabado e do sujeito como ser passivo nesse processo.

Contrária a essa lógica que impera a submissão/opressão à Libras em relação a língua oficial, confessa esclarecer velhas práticas dificultam e negam a possibilidade que surdos interpelem a supremacia do português, como  via de regra aos que irão se escolarizarem no país.

Surdos intelectualizados, pesquisadores e membros da sociedade civil simpatizante as reivindicações discorrem com frequência, de que modo as Políticas linguísticas da Libras, orientam os anseios da oferta da educação bilíngue e da consolidação de culturas, políticas e práticas inclusivas na escola “regular”, com professores surdos, professores bilíngues e, em último caso, com intérpretes da língua de sinais, qualificados e, devidamente contratados ao exercício da função, se assim o desejarem.

Posto isso, o conjunto que se apresenta neste Dossiê visa alargar a compreensão sobre as decisões políticas, educacionais e linguísticas que operam a lógica dos processos formativos, sociais e educacionais dos quais, os surdos estão inseridos.

A proposta reúne um conjunto de estudos e pesquisas acadêmicas que contemplam o tema dos direitos linguísticos dos estudantes surdos na educação básica e superior, como eixo da abordagem organizativa da publicação, recobrindo reflexões sobre: alteridade surda; políticas linguísticas, movimentos surdos, práticas pedagógicas bilíngues, experiências educacionais inclusivas e formação de profissionais bilíngues.

 Os artigos contemplam resultados de investigações de reconhecidos pesquisadores nacionais vinculados a universidades públicas das cinco regiões brasileiras, sendo: três na região sudeste (USP, UFSCAR e UNESP/SP), três na região nordeste (UFBA/BA, UFPB/PE), três na região norte (UFOPa e UFPA/PA), dois na região sul (UTFPR e UFPR/PR) e um no centro-oeste (UFG/GO).

Das contribuições internacionais com expertise na temática, assinam autores do Uruguai, Portugal e Estados Unidos. Ancorados no campo dos Estudos Surdos em Educação, espera-se que a abordagem da publicação amplie o escopo do debate da inclusão, enfatizando a necessária interface entre políticas linguísticas e educacionais para surdos.

Considerações teóricas sobre a educação de surdos: especial, bilíngue, inclusiva, Leonardo Peluso, apresenta contribuições ao debate que contrapõe educação especial, educação bilíngue e a perspectiva da inclusão de surdos na educação surda no Uruguai.

Crianças surdas, humor e política educacional de Donna Jo Napoli, Rachel Louise Sutton-Spence, problematizam as limitações da “ilusão de inclusão” que assola as escolas brasileiras, apontando o humor como habilidade que produz competências e habilidades cognitivas, sociais e (meta)linguísticas, potencializando o uso da língua de sinais de forma criativa, lúdica e interdisciplinar.

Boa leitura à todos!

Sueli Fernandes – UFPR/Curitiba

Sandra Eli Sartoreto de Oliveira Martins – UNESP/Marilia

Carlo Schmidt - Editor Científico

Clenio Perlin Berni - Editor Gerente