http://dx.doi.org/10.5902/1984686X38270

 

Escritas em português por surdos (as) como práticas de translinguajamentos em contextos de transmodalidade

Writings in Portuguese by the Deaf as translanguaging practices in transmodality contexts

Las escritas em portugués por las personas sordas como prácticas de translinguajamentos en contextos de transmodalidad

 

Hildomar José de Lima

Professor doutorando na Universidade Federal de Goiás, Goiás, Brasil.

hildomar_lima@ufg.br

ORCID - https://orcid.org/0000-0002-1130-9586

 

Tânia Ferreira Rezende

Professora doutora na Universidade Federal de Goiás, Goiás, Brasil.

taniaferreirarezende@gmail.com

ORCID - https://orcid.org/0000-0003-3954-2758

 

Recebido em 24 de maio de 2019

Aprovado em 18 de julho de 2019

Publicado em 22 de outubro de 2019

 

 

RESUMO

O universo sociolinguístico da pessoa surda se caracteriza como um espaço fronteiriço entre línguas de base epistemologicamente visual, as línguas de sinais, e línguas de base oral, como o português. Essa fronteira sociolinguística é, ao mesmo tempo, bi/plurilíngue e multimodal e, por isso, as pessoas surdas estão imersas em constantes e contínuos processos de translinguajamento e transmodalidade, isto é, em trânsito entre línguas (sinais e orais) e entre modalidades linguísticas (visuoespacial e oral-auditiva). O objetivo desta discussão é refletir sobre as práticas linguísticas que pretendem normalizar (tornar normal) a pessoa surda por meio das práticas linguísticas expressas em português escrito, impondo, para isso, o padrão linguístico que tem como base a norma considerada culta do português falado por uma minoria de pessoas ouvintes. A partir disso, problematizar as concepções de linguagem e as ideologias linguísticas coloniais subjacentes ao exercício de poder, por meio da linguagem, dos povos historicamente subalternizados, especificamente, a comunidade surda. Verifica-se que as práticas sociolinguísticas translinguajadoras e transmodalizadoras das pessoas surdas rompem com a lógica do eurocentrismo científico de que a língua da pessoa surda é deficitária, possibilitando, assim, promover a decolonialidade do poder, do saber e da linguagem no processo de letramento em português para a comunidade surda e assegurar seus direitos linguísticos.

Palavras-chave: Decolonialidade; Translinguajamento; Transmodalidade.

 

 

ABSTRACT

The sociolinguistic universe of the deaf person is characterized by a frontier space between languages with an epistemologically visual basis – sign languages – and those with an oral basis, like Portuguese. This sociolinguistic frontier is, at the same time, bi/plurilingual and multimodal, and, because of that, deaf people are immersed in constant and continuous processes of translinguaging and transmodality, that is, in transit between languages (signaled and oral) and between linguistic modalities (visual-spatial and oral-auditive). The goal of this discussion is to reflect on the linguistic practices that intend to normalize (make normal) the deaf person by means of linguistic practices expressed in written Portuguese, thus imposing a linguistic standard that is based on what is considered the norm in Portuguese, spoken by a minority of hearing people. From there, problematizing the conceptions of language and the colonial linguistic ideologies underlying the exercise of power, through language, over historically subalternized peoples, specifically the deaf community. It can be verified that translinguaging and transmodalizing sociolinguistic practices of deaf people break up with the logic of scientific eurocentrism that the language of the deaf person is deficitary, thus allowing the promotion of the decolonization of power, knowledge and language in the process of literacy in Portuguese for deaf community and ensure their linguistic rights.

Keywords: Decoloniality; Translinguaging; Transmodality. 

 

RESUMEN

El universo sociolingüístico de la persona sorda se caracteriza como um espacio fronterizo entre lenguas de base epistemológicamente visual, las lenguas de señas, y las lenguas de base oral, como en el caso del portugués. Esta frontera sociolingüística es al mismo tiempo bi/plurilíngüe y multimodal y, por lo tanto, las personas sordas están inmersas en constantes y contínuos procesos de translinguaje y transmodalidad, es decir, en tránsito entre lenguas (señas y orales) y entre modalidades lingüísticas (visuoespacial y oral-auditiva). El propósito de esta discusión es reflejar las prácticas lingüísticas que tienen como objetivo normalizar (hacer normal) la persona sorda a través de las prácticas lingüísticas expresadas en portugués escrito, imponiendo así el estándar lingüístico que se basa en la norma considerada culta del portugués hablado por una minoría de personas oyentes. Sobre la base de esta idea, problematizar las concepciones de lenguaje y las ideologías lingüísticas coloniales subyacentes al ejercicio del poder, a través del lenguaje, de los pueblos históricamente subalternizados, específicamente, la comunidad sorda. Se verifica que las prácticas sociolingüísticas translinguajadoras y transmodalizadoras de las personas sordas rompen con la lógica del eurocentrismo científico de que la lengua de la persona sorda es deficiente, lo que permite promover la descolonialidad del poder, del conocimiento y del lenguaje en el proceso de letramento en portugués para la comunidad sorda y asegurar sus derechos lingüísticos.

Palabras clave: Descolonialidad; Translinguajamento; Transmodalidad.

 

Introdução

O Brasil é um país cultural, epistêmica e linguisticamente plural e, por isso, em todo o território brasileiro, as escolas do sistema considerado regular de ensino1 são espaços sociolinguísticos complexos em diversos aspectos. Entre eles se destaca o fato de comumente circularem duas ou mais línguas em um mesmo contexto de aprendizagem (PEREIRA, 2002). Apesar disso, a língua portuguesa é, constitucionalmente, a única língua oficial da nação; é também a língua de ensino nas escolas e disciplina obrigatória nos currículos escolares de todo o país. Dessa forma, impõe-se, politicamente, sua dominação linguística dentro de um país plurilíngue, subalternizando todos(as) aqueles(as) que não a dominam ou que a dominam somente na oralidade.

Outro complicador, em respeito ao objeto desta discussão, é o fato de tomar como verdade que a “oralidade é, por excelência, uma atividade localmente construída e muito sujeita às contingências do momento da enunciação” e, por isso, deve ser o ponto de partida para análise em Sociolinguística (BORTONI-RICARDO, 2014, p. 20, ênfase adicionada). Equivale a não se atentar, ou mesmo, a não enxergar ou, pior ainda, a desconsiderar o(a) surdo(a) na diversidade que constitui o panorama sociolinguístico brasileiro, quando este é considerado. É justamente por causa do foco que se tem na oralidade que muitos(as) surdos(as) são, além de marginalizados(as), “subalternizados(as)” (SPIVAK, 2010), por não alcançarem desempenho linguístico em português semelhante ao que se espera do(a) ouvinte idealizado(a) pela escola.

A Lei 10.436/2002, por um lado, reconhece a libras “como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil” (BRASIL, 2002, Art. 2º), e, assim, inclui o povo surdo na diversidade sociolinguística brasileira, ou, pelo menos, tira esse grupo de brasileiros da invisibilidade sociolinguística. Por outro lado, entretanto, a Lei determina que a “Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa” (BRASIL, 2002, Art. 4º), subjugando, política e sociolinguisticamente a comunidade surda à língua portuguesa.

O Estado, ao mesmo tempo em que reconhece a libras como língua, não deixa opção ao(à) surdo(a) a não ser a de ser bilíngue em libras e português, mobilizando, nos termos dos documentos oficiais, “competências e habilidades”, que estamos interpretando como transmodalizadoras, isto é, o transpassar, nas práticas linguísticas, por duas modalidades de línguas, da modalidade visuoespacial da libras à modalidade oral-escrita do português e vice-versa, dialogicamente. Apesar disso, a Lei, ao garantir a soberania do português, como a língua do Estado, sobre a libras, e o poder da escrita sobre a oralidade, mantém a concepção do “monolinguajamento” (MIGNOLO, 2003), ou seja, a colonialidade do saber e da linguagem resiste.

As práticas sociolinguísticas dos(as) surdos(as), da maneira como a estamos entendendo, superam a ruptura ontológica entre a razão e o mundo, que culminou na epistemologia cartesiana penso logo existo, que, por sua vez, gerou a oposição ontológica corpo/mente, levando às oposições, que nos interessa nesta discussão, oral/escrito, verbal/não verbal etc. É impossível, sobretudo na libras, distinguir verbal de não verbal. A libras exige o repensar também do conceito de semiótica, para além das categorias binárias greimasianas, configurando o que já está posto na literatura linguística como transemiótica. Sem querer ou sem perceber, o texto da Lei 10.436/2002 nos permite a problematização e a reconfiguração das concepções de linguagem e a desestabilização das ideologias linguísticas coloniais.

Já afirmamos anteriormente, está refletido no § Único do Art. 4º Lei 10.436/2002 o poder da escrita sobre a oralidade: a libras não pode substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. A escrita representa o poder do Estado sobre a sociedade e, assim, a manutenção da colonialidade linguística. Considerando-se que a escrita está vinculada à escola, a subalternização do(a) surdo(a) é construída e sustentada pelo Estado, por meio de políticas linguísticas e educacionais oficiais, embora não esteja restrita a esses contextos, que “colonizam sua língua” e impõem o português escrito como forma de definir o seu lugar na sociedade brasileira.

Dessa maneira, a escola, sobretudo a escola pública, contraditoriamente, não se constitui num “espaço dialógico de interação” (SPIVAK, 2010) para todos(as) os(as) estudantes. Ao contrário, constitui-se no que Mignolo (2008) denomina espaço “geopolítico” seletivo, logo, excludente, principalmente para os(as) surdos(as), um “corpo-político, historicamente marcado” (MIGNOLO, 2008). Por isso, também, a escola, apesar do amplo processo de democratização, a partir das últimas décadas do século XX, é um espaço de exclusão e de subalternização dos grupos historicamente situados à margem.  

Considerando que a modalidade linguística é a principal diferença entre a libras e o português (visuoespacial x oral), as principais diferenças entre o(a) surdo(a) e o(a) ouvinte, que para o(a) surdo(a) os canais de recepção e produção das informações linguísticas são a visão e as mãos (MEIER, 2002), predominantemente, ao passo que para o(a) ouvinte, falante de uma língua oral, a audição e a oralização são, em sua maioria, circunstanciais para a experiência da enunciação. Essas diferenças não deveriam marcar nem fortalecer a relação de poder entre ouvintes e surdos(as), tampouco hierarquizar a importância entre suas línguas. No entanto, tais diferenças são utilizadas para justificar o pressuposto da civilidade do(a) surdo(a), por meio da “oralização”, que advém de práticas linguísticas normalizadoras.

Percebe-se, no exposto nos parágrafos precedentes, a unidirecionalidade da “diferença colonial” (MIGNOLO, 2003, p. 80), em que os(as) surdos(as), ocupando as “fronteiras internas da margem” criada pela modernidade eurocêntrica, sofrem as consequências da colonialidade linguística, tanto do poder da língua portuguesa, língua oral com escrita alfabética consolidada, sobre a libras, uma língua visuoespacial, sem escrita reconhecida, quanto da sua escrita em português escrito, em relação ao português escrito por ouvintes. Em contrapartida, não deveria a escola, situada no outro lado da margem, “relocalizar” (PENNYCOOK, 2007) o(a) surdo(a) politicamente nessas fronteiras, por meio da valorização de suas línguas? Tanto o português quanto a libras, além de seu valor político, supostamente igual, por serem ambas línguas oficiais no país2, constituem, simultaneamente, as experiências linguísticas de muitos(as) surdos(as), o que impossibilita determinar qual delas é a primeira língua do(a) surdo(a) bilíngue. Equivale a dizer que há a possibilidade de o(a) surdo(a) ter duas primeiras línguas ou duas línguas maternas, sem que isso seja um problema. Seria a superação da concepção monolíngue e do paradoxal bilinguismo monolíngue de Estado.

Ademais, o fato de o(a) surdo(a) estar na escola e não aprender a ler nem escrever em português, provavelmente, tem a ver com a dificuldade da escola em entender sua situação sociolinguística e em atribuir “novos significados à diferença colonial”, ampliando a “ferida colonial” (MIGNOLO, 2003, p. 80). Ou seja, a escola, ao invés de incluir o(a) surdo(a) por meio de suas línguas e dos processos de “bilinguajamento – pensar e sentir em línguas” (MIGNOLO, 2003), cria, com ele(a), mais uma categoria de estudantes incapazes de aprender.

A diferença entre modalidades linguísticas (visuoespacial e oral/escrita) implica, sobretudo, que se repensem as formas de interação da pessoa surda com o mundo, por meio da língua oral que ela é “obrigada” a aprender se quiser comunicar na escrita. A legislação brasileira garante ao(à) surdo(a) o direito de manifestar sua opção de acesso à educação por meio ou não da libras (BRASIL, 2005). No entanto, mesmo nos casos em que a família ou o(a) próprio(a) aluno(a) decida que a libras deverá ser sua língua de instrução, o português ocupa posição política soberana, pois é a língua de ensino na escola3 e a língua que dá acesso aos conhecimentos veiculados nos materiais didático-pedagógicos e nas relações educacionais diárias. Verifica-se, portanto, uma “relação assimétrica” (FRITZEN, 2012, p. 166) entre duas línguas oficiais do país, uma que é “reconhecida como meio legal de comunicação e expressão” (BRASIL, 2002) do(a) surdo(a), de base visual e espacial, e a outra, uma língua oral hegemônica, de base oral, que é a língua oficial de ensino. Essa é mais uma face do paradoxal bilinguismo monolíngue do Estado: o(a) surdo(a) é obrigado a ser bilíngue, mas nem por isso a escola se torna bilíngue; a escola continua monolíngue. O bilinguismo é restrito ao corpo-surdo: um corpo social, cultural, linguística e politicamente marcado pela surdez. O bilinguismo monolíngue imposto pelo Estado passa a ser um índice que marca esse corpo no espaço social: na escola, que é um lugar geopolítico, historicamente marcado (MIGNOLO, 2003).

Dessa forma, entendemos que a colonialidade linguística e epistêmica está explícita nas políticas do Estado. O Ministério da Educação (MEC) orienta a escola a promover o desenvolvimento da competência gramatical ou linguística de forma que o(a) surdo(a) seja capaz de produzir “estruturas bem formadas”. O foco nesse processo é o domínio das estruturas morfológica e sintática e a compreensão das relações semântico-pragmáticas do português (DAMAZIO, 2007). Embora essas orientações sejam específicas para o ensino de português como uma das ações do Atendimento Educacional Especializado (AEE)4, elas orientam também as práticas pedagógicas voltadas ao ensino dessa língua para alunos(as) surdos(as) em outros contextos de aprendizagem.

Considerando a realidade sociolinguística desses(as) alunos(as), o AEE representa, para a maioria, o espaço apropriado para se pensar e construir uma base epistêmica de português, fundamentada especialmente nas diferenças sociolinguísticas dos(as) surdos(as) em relação a outros povos que recortam suas realidades circundantes a partir de experiências predominantemente auditivas. Essa possibilidade se deve ao fato de as aulas ocorrerem em turno diferente ao da sala comum e é voltado apenas para estudantes surdos(as). Porém, observa-se que o foco está no domínio das “estruturas gramaticalmente corretas”, sem dar nenhuma importância às realidades semióticas e enunciativas desses(as) alunos(as).

No que se refere às salas de aulas da rede regular de ensino, onde estão os(as) surdos(as), a complexidade é ainda maior e não há justiça social nem epistêmica, no que se refere ao(à) surdo(a). O ensino de português se dá quase sempre numa perspectiva de primeira língua apenas para o(a) ouvinte, ficando o(a) surdo(a) à mercê de propostas políticas educacionais que desconsideram suas necessidades de uso do português, revelando, nesse caso, “a ideologia do monolinguajamento [...], isto é, [...], escrever, pensar dentro de uma única língua controlada pela gramática” (MIGNOLO, 2003, p. 343).

Embora haja uma política, que garanta ao(à) surdo(a) a aprendizagem da língua oral pela escrita, por um lado, não há uma prática fundamentada na “epistemologia liminar” (isto é, que extrapola os limites da oralidade) para esse português, por outro lado. A consequência disso é a subalternização do(a) surdo(a), por meio do português, isto é, um “epistemicídio”, através do “linguicídio” autorizado pelo Estado e efetivado na escola, onde impera o “grafocentrismo” (FREITAS, 2016).

Propomos, então, uma epistemologia linguística liminar, que entenda as práticas sociolinguísticas e socioculturais como práticas de “linguajamento (bi/pluri/translinguajamento)” (MIGNOLO, 2003): práticas que recortam realidades, que remetem à organização sociocultural do(a) surdo(a) como comunidade de participação sociolinguística e socioafetiva. Nessa concepção, essas práticas apresentam traços característicos que diferenciam as práticas linguísticas dos(as) e entre os(as) surdos(as). Assim, o português do(a) surdo(a), concebido como língua liminar, é uma ação política de enfrentamento do monolinguajamento brasileiro, que é um modo de produção da “não existência” (SANTOS, 2002) do(a) surdo(a) no Brasil.

Entre as diferentes lógicas ou modos sociais de produção da “não existência”, Santos (2002) fala da lógica da classificação social, que consiste em categorizar as pessoas como uma forma de naturalizar as hierarquias. Ao hierarquizar as diferenças linguísticas entre os povos se estabelece, naturalmente, o grau de importância política de cada grupo. Nessa lógica, quanto maior for a importância em uma escala, maiores serão as chances de exercer poder e dominar. A relação hierárquica se estabelece, geralmente, a partir da atividade de comparação. As orientações do MEC explicitam que a capacidade do(a) aluno(a) ouvinte é o parâmetro para avaliar o desempenho do(a) aluno(a) surdo(a):

Com o objetivo de alcançar estruturas gramaticalmente corretas, insere-se no trabalho regras gramaticais propriamente ditas, que os alunos ouvintes, facilmente compreendem, por terem como canal comunicativo a língua oral. No caso dos alunos com surdez, faz-se necessário criar o canal que os leva a essas compreensões. Esta situação é observada na análise morfológica – flexão de gênero, número e grau de substantivos e adjetivos, bem como nas flexões verbais de modo, tempo e pessoa, ao estabelecerem nas frases e textos, a concordância verbal e nominal. (DAMÁZIO, 2007, p. 45)

Parte-se de uma ideologia de língua correta, pura e fixa; e de um cânone epistemológico, de base oral, ancorado na cosmovisão e nos modos de conhecimentos do(a) ouvinte; e compõe-se um padrão ideal, tanto de língua quanto de aluno(a), que o(a) surdo(a) deve alcançar. O alcance de tal padrão, considerando-se a sócio-história da formação linguística brasileira, mesmo para o(a) ouvinte, é discutível, por ser, ancorado em um modelo abstrato e desconhecido de língua. Lander (2005, p. 13) assim interpreta esse tipo de imposição ideológica:

[u]ma forma de organização e de ser da sociedade transforma-se mediante este dispositivo colonizador do conhecimento na forma “normal” do ser humano e da sociedade. As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as outras formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas. São colocadas num momento anterior do desenvolvimento histórico da humanidade (Fabian, 1983), o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade.

A lógica perversa dessa política hegemônica é a subalternização e desqualificação de um grupo socialmente marginalizado, que, devido à sua singularidade, a surdez, não atinge o padrão proposto. É, conforme defende Fanon (2008, p. 33), uma política colonial que objetiva a “cissiparidade”, ou seja, impõe ao(à) surdo(a) ter de existir em duas dimensões: (o(a) surdo(a) ser um(a) para lidar com outros(as) surdos(as), e ser outro(a) no trato com os(as) ouvintes); ou forçar ao(a) surdo(a), no lugar da aquisição do português, a aquisição da “dupla consciência” (MIGNOLO, 2003), com violência.

Esse processo de construção da subalternidade do(a) surdo(a) ocorre, através do que Perlin (1998) denomina “opressão ouvintista”, que é a tentativa de normalizá-lo(a), impondo-lhe uma língua única. Para essa autora, que é surda, as tentativas de normalização do(a) surdo(a) são fortalecidas pelas propostas de ensino em que predomina a preocupação com a codificação e decodificação das letras, atribuindo pouca ou nenhuma importância à escrita como prática de letramento.

A autora acrescenta que

um surdo não vai conseguir utilizar-se de signos ouvintes como, por exemplo, a epistemologia de uma palavra. Ele somente pode entendê-la até certo ponto, pois a entende dentro de signos visuais. O mesmo acontece com a pronúncia do som de palavras. Não adianta insistir neste ponto. (PERLIN, 1998, p. 56)

A convenção técnica em uma língua, seja ela qual for, é vazia, sem sentido, se a intenção não for a atuação sobre a realidade, recortada de forma diferente para aqueles que escrevem. Insistir em práticas linguísticas desvinculadas das realidades da comunidade surda é manter esse povo em “prática mecânica de língua portuguesa” (PEREIRA, 2015, p. 242). O que se deve problematizar sobre as propostas educacionais que visam ao ensino de português para surdos(as) é justamente a base epistêmica de construção dessa língua, subsidiada pela ideologia do “pensamento liminar” (MIGNOLO, 2003). Nesse sentido, insistimos no pressuposto de que a visão de mundo do(a) aluno(a) surdo(a), ou, mais precisamente, a pessoalidade surda, deverá ser a base de construção e de apropriação do português. Isso implica, portanto, idealizar um projeto ontoepistêmico de letramento em português para o(a) surdo(a), a partir do(a) e com o(a) surdo(a) ou, pelo menos, da prática escrita do(a) surdo(a), abordada como prática sociocultural e transemiótica de translinguajamento, numa perspectiva da transmodalidade linguística.

Manifestações escritas em português e subalternização do(a) surdo(a)

Entre os trabalhos que tratam de marcas características da escrita em português por surdos(as), trazemos para nossas reflexões a investigação de Faria-Nascimento (2001), por apresentar uma análise contrastiva de traços linguísticos entre libras e português escrito por surdos(as); a pesquisa de Almeida (2007), que investiga os usos das flexões verbais no português escrito por surdos(as) e, a partir dos resultados, busca identificar uma possível ordem de aquisição da língua oral por eles(elas); e o estudo de Pereira (2015), que observou o processo de aquisição da escrita do português de uma criança surda, filha de pais ouvintes.

Percebemos, em Faria-Nascimento (2001), um posicionamento político-linguístico contra-hegemônico em relação à concepção de escrita em língua oral para as pessoas surdas. Nessa pesquisa, a autora sistematizou repercussões das diferenças entre a libras e o português escrito por surdos(as), nos diferentes níveis de análise linguística. As ocorrências de escrita em português encontradas apresentam regularidades que fortalecem nossa defesa de que há estratégias próprias dos(as) surdos(as) para a construção de sentido na escrita em português por surdos(as). Esse resultado permite pensar na existência de um padrão sociolinguístico do português escrito pela e para a comunidade surda brasileira.

No nível fonológico, foram identificadas regularidades: trocas das posições das letras de uma palavra como, por exemplo, celurla para celular, e dúvidas semânticas entre parônimos e homônimos, conversa x conserva; no nível suprassegmental, em geral, as palavras desconhecidas e as palavras homônimas não são acentuadas, como no caso de esta e está; e os sinais de pontuação não apresentam uma coerência rítmica com a fala oral. No nível morfológico, dentre outros casos, é comum que o emprego dos artigos definido e indefinido ocorra indistintamente, pois, na libras, a forma de determinação do referente não envolve, necessariamente, itens lexicais. No nível sintático, geralmente, a posição do objeto na construção é mais livre, podendo estar ora à direita ora à esquerda do verbo. Isso ocorre porque a sintaxe da língua de sinais se organiza espacial e visualmente sem gerar ambiguidades como normalmente ocorre com algumas línguas orais, como é o caso do português. O mecanismo de construção dos sentidos no texto não é, usualmente, pelo recurso metafórico ou pode ser que esse recurso se organiza e se realiza de um modo ainda não descrito formalmente.

Quando se trata de uma segunda língua, presumimos ser restrito o uso do recurso metafórico na construção textual. No caso do(a) surdo(a), porém, é oportuno refletir se o português configura primeira ou segunda língua, conforme mencionado anteriormente, em relação ao fato de que a libras e o português podem constituir, de forma simultânea, as experiências linguísticas de muitos(as) surdos(as). Nos casos em que a definição do português como segunda língua seja necessária, é preciso problematizar a necessidade de apropriação dessa língua pelo(a) surdo(a), equiparando sua capacidade com a do(a) ouvinte. Nos casos em que não há categorias distintivas, ou seja, quando não há por parte do(a) surdo(a) a necessidade de determinar primeira e segunda língua, é preciso pensar justamente nas diferentes formas de produção de sentido no texto escrito em português por surdo(a). Seria, portanto, uma questão de compreensão de sentido (semântica) ou de formas de expressar intenções (pragmática)?

Almeida (2007) procurou identificar o processo de aquisição e a habilidade de uso dos tempos verbais, em diferentes estágios de interlíngua, a partir de textos escritos em português por surdos(as). A conclusão foi que, de modo geral, as formas e os usos dos tempos verbais na escrita desses(as) sujeitos(as) não correspondem à gramática normativa do português. Apesar de serem “erros” recorrentes em aprendizes de segunda língua, existe um “desvio” em relação ao padrão baseado no(a) ouvinte que tem o português como primeira língua, ou seja, falante “ideal” de português.

A autora aponta, a partir de diversas ocorrências, que há uma predominância de usos de formas verbais no infinitivo e no presente do indicativo, e atribui esses usos ao processo de interlíngua dos(as) surdos(as), que fazem transferência de manifestações linguísticas da libras para o português. A hipótese levantada é que a frequência de usos do infinitivo é, em parte, influência do usual sistema de transcrição utilizado nas pesquisas dessa língua em que se emprega a forma infinitiva para notar os sinais nocionalmente verbos na libras. Quanto ao uso do presente do indicativo, é caracterizado como uma forma não marcada, resultante do fato de que, na libras, a noção de tempo não ocorre nos sinais considerados verbos. Infere-se, portanto, que as noções de tempo, pessoa, bem como a própria noção de verbo no português do(a) surdo(a) são diferentes das noções que se tem no português utilizado por pessoas ouvintes, e não, necessariamente, que exista uma transferência de noções entre línguas. 

O estudo longitudinal feito com uma criança surda (desde a educação infantil até o final do primeiro ciclo do fundamental), realizado por Pereira (2015), apresenta questões bastante pertinentes, principalmente em relação aos procedimentos no processo de produção textual – o(a) professor(a) como escriba das produções feitas em libras.  Destaca-se que no texto a autora reconhece que dar importância à relação fonema-grafema, ao ensinar português para surdo(a), pode ser uma estratégia imprecisa, ou seja, esse processo não deve ter a oralidade como base, uma vez que as crianças surdas utilizam uma língua de base visual e espacial. Ressalta também a importância das interações comunicativas dos(as) alunos(as) ocorrerem por meio da língua de sinais. 

No entanto, algumas considerações de Pereira (2015) merecem ser problematizadas. Entre elas, a afirmação de que os(as) surdos(as) que vão para a escola sem saber libras e português não têm uma língua constituída. Percebe-se nesse posicionamento que a autora reafirma a “invenção” colonial da libras a partir de um projeto de educação que tem como base as pessoas ouvintes e, consequentemente, afirma uma “ideologia fundamentada em uma visão nominal de língua” (MAKONI; PENNYCOOK, 2015, p. 11), quer dizer, a libras para ser língua tem de ser escolarizada, ou melhor, autorizada pela escola. Verifica-se, portanto, que se traduz a epistemologia das línguas orais para a libras, ou seja, a língua de sinais será institucionalizada e denominada libras, da mesma forma que a língua oral hegemônica é denominada português. Na perspectiva da diferença colonial, de Mignolo (2003, p. 33), tanto o português escrito por surdo(a) quanto a libras precisam ser desinventadas, isto é, enxergadas como “gnose liminar” (isto é, a recolocação social de línguas subalternizadas), uma vez que essas línguas expressam a luta pela existência e pela valorização de um povo.

Outra questão apresentada pela autora é que, embora uma palavra escrita em português pela participante da pesquisa não se assemelhe à sua forma convencional (escrita “correta” da palavra), mas que durante a leitura em libras o sentido da palavra é recuperado, a autora trata a forma escrita ‘não convencional’ de “pseudopalavra”. Cabe, portanto, problematizar a concepção de língua pelo(a) professor(a) de português para surdos(as). É possível inferir ao longo do texto que não só a concepção, mas também a ideologia de língua é fundamentada em princípios da oralidade (só as línguas orais são completas).

O aparato ideológico oral impossibilita, entre outros casos, redefinir o conceito de ‘palavra’ na língua oral utilizada pelo(a) surdo(a) que, provavelmente, não se constitui numa ordem “grafêmica” nem morfológica, como ocorre na língua oral do(a) ouvinte. Perlin (1998) defende que a epistemologia de uma palavra para o(a) surdo(a), tanto na língua de sinais quanto na escrita da língua oral, é entendida a partir de signos visuais e não orais.

Percebe-se, portanto, que a oralidade (mundo “ouvintista”) como “espaço dialógico de interação” (SPIVAK, 2010) é um espaço negado ao(à) surdo(a); como tal, se constitui em espaço de geopoder, um espaço geopolítico (MIGNOLO, 2008) que constrói a subalternidade desse sujeito, um “corpo-político”, histórica e fisicamente marcado pela ideologia do déficit, um déficit representado na língua. Ao mesmo tempo em que esse espaço dialógico de interação a oralidade – é negado ao(à) surdo(a), é também imposto pela língua, tanto pela imposição do português quanto pela libras, língua de sinais descrita sob as categorias e as metalinguagens das línguas oralizadas. De um lado, as práticas linguísticas se revelam estratégias de “silenciamento”, por meio da escrita em português de um povo duplamente “emudecido”.  Já não há “voz” para o(a) surdo(a) por ele(a) se utilizar de uma língua de base visual, e continuará sem ela por ser “manipulado(a)” pelo sistema de uma língua oral, cuja epistemologia ele(a) desconhece.  Por outro lado, na descrição da libras, não se considera nem a ontologia nem a epistemologia do(a) surdo(a), a ontologia e a epistemologia são as hegemônicas traduzidas para a e em libras.

Embora existam tentativas de minimizar diversas conotações, especialmente aquelas sobre os “erros”, a escola consolida a colonialidade linguística brasileira, que reafirma o “absolutismo hegemônico” do português padrão, com base em “ouvintes fabricados(as)”, e insiste na importância de o(a) surdo(a) atingir o domínio do padrão culto do português escrito, tal qual um ouvinte, o padrão referencial a ser alcançado, para sair do estágio de “atraso” e “carência”, em que se encontra e avançar rumo ao progresso (LANDER, 2005).

Defender a existência de um português escrito por surdo(a), como “gnose liminar” é, portanto, lutar pela afirmação de saberes historicamente subalternizados, a partir de um novo lócus de enunciação, o(a) surdo(a) no seu direito de ser surdo(a) nas e com sua(s) língua(s), possibilitando a redistribuição geopolítica do conhecimento em que esses sujeitos passem a agentes nessa produção nas fronteiras da diferença colonial, nos espaços liminares.

Nesse sentido, defender a existência de práticas sociolinguísticas em português próprias da pessoa surda é, conforme dito, a gnose liminar no “sangrento campo de batalha na longa história da subalternização colonial do conhecimento e da legitimação da diferença colonial” (MIGNOLO, 2003, p. 35) para enfraquecer o “imaginário histórico” de que o(a) surdo(a) precisa ser igual ao ouvinte; e é, também, confrontar a ideologia hegemônica de língua, que se arrasta por séculos, resultando em “violência epistêmica” (SANTOS, 2010) contra esses povos.

Santos (2002, p. 246) propõe a sociologia das ausências como uma alternativa epistemológica para enfrentar as totalidades hegemônicas da razão metonímica, que é uma das lógicas da racionalidade existente no mundo, e defende a ideia da totalidade sob a forma de ordem. A sociologia das ausências objetiva tornar existente tudo o que a razão metonímica tornou inexistente, é “transformar as ausências em presenças”. A defesa da existência de um português escrito por surdos(as) é uma proposta contra-hegemônica, decolonial, que visa pensar em condições para redescobrir a humanidade a quem as relações linguísticas excludentes desumanizaram. Nesse sentido, a visão de mundo do(a) surdo(a), sua ontologia, que constitui sua “pessoalidade”, deverá ser a base de construção da sua relação com o português.

O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade, de Mignolo (2003), torna possível confrontar a geopolítica do conhecimento “ouvintista”, trazendo o(a) surdo(a) para lugares geohistóricos (geográficos e, principalmente, epistemológicos) ocupados só por ouvintes, como naqueles em que se pensam projetos epistêmicos de letramento em português para surdos(as). Nesse sentido, é possível confrontar os saberes hegemônicos baseados na oralidade e promover uma decolonialidade epistêmica, a partir dos saberes do(a) surdo(a), ou seja, uma epistemologia liminar dos “saberes locais”. 

No que se refere aos contextos de ensino do português para surdos(as), é preciso repensar a “geopolítica” do português e da libras, o que significa repensar a língua como instrumento de construção da subalternidade. O português de uma pessoa ouvinte não deve ser “cânone” de língua para o(a) surdo(a), assim como a libras não deve ser a base para o entendimento do português do(a) surdo(a). Implica pensar o transitar do(a) surdo(a) nessas línguas na perspectiva do “linguajamento (bi/plurilinguajamento)”, ou seja, “viver/conviver entre línguas nas fronteiras da diferença colonial” (MIGNOLO, 2003).

Freitas (2016) defende os letramentos multissemióticos como forma de resistência às prisões dos estereótipos, especialmente quando as vozes autorizadas traçam destinos às pessoas em situação de marginalização. Nesse sentido, é preciso refletir sobre o processo de construção da “pedagogia centrada na experiência multimodal” do(a) surdo(a), especialmente quando se pensa no movimento de luta desses povos pela implementação de educação bilíngue para surdos(as). Assim, um projeto epistêmico de português para surdos(as) requer que se abandone a base epistemológica da oralidade para o(a) ouvinte, o que implica sair da matriz de letramento hegemônico e geopoliticamente situado (aquele que tem o(a) ouvinte como autor(a)) e dar espaços às epistemologias surdas.

Na perspectiva de um letramento decolonial, como o defendido por Freitas, o português do(a) surdo(a) considera o fato de essas pessoas “semiotizarem” as suas relações com o mundo. O corpo está em constante movimento durante o processo de produção e recepção da informação linguística, pois independente da modalidade, a língua é sempre performativa. Nessa perspectiva, ainda, os(as) surdos(as) não se limitam às experiências visuais, eles(elas) percebem sinestesicamente as mensagens sonoras e constroem sentidos por meio de cenas imagéticas que retratam a dinamicidade do universo.

Considerações finais

A defesa do português do(a) surdo(a) como língua, diferente de outras práticas em português, é, a nosso ver, chamar para o enfrentamento teórico necessário para enfraquecer os posicionamentos preconceituosos e discriminatórios das mentalidades monolíngues no Brasil, que sustentam a cultura do monolinguajamento, por séculos. Dessa maneira, faz-se necessário criar e fortalecer políticas linguísticas que promovam atitudes de valorização de todas as línguas, das diferentes práticas sociolinguísticas do português e, consequentemente, a aceitação de todos os povos, em suas diferenças. No caso dos(as) surdos(as), propor atitudes políticas que reconheçam e valorizem o seu português, bem como assegurem seus direitos linguísticos.

Os impactos psicológicos negativos, que se definem em medo e insegurança, resultantes da imposição linguístico-ideológica colonial têm determinado o comportamento linguístico dos(as) estudantes surdos(as), uma vez que eles(as) são sempre “julgados segundo o seu modo” (CALVET, 2002, p. 69) de escrever em português. Conhecer, entender e respeitar o português escrito por surdo(a) contribuirá para as desestabilizações no contexto acadêmico em relação à necessidade de uma melhor compreensão linguística dos diferentes grupos inseridos no sistema educacional brasileiro. Esse entendimento poderá contribuir com a diminuição da relação assimétrica entre as diferentes línguas e, consequentemente, com a minimização dos impactos educacionais negativos resultantes do processo de subalternização dos(as) alunos(as) surdos(as), por meio de suas práticas sociolinguísticas.

A compreensão linguístico-social dos diferentes povos coopera para a elaboração de políticas linguísticas contra-hegemônicas que favoreçam a decolonialidade da visão de língua. Assim, os povos surdos e suas línguas de sinais, sobretudo suas relações com a(s) língua(s) oficial(is) escrita(s) do país em que residem, ganham forças na luta pela emancipação, especialmente política, e pela configuração epistemológica enquanto povo que se constitui linguisticamente por meio de uma cosmovisão mais visual que sonora. 

Com esta discussão, percebemos que a decisão de a libras ser a primeira língua do(a) surdo(a) e o português ser sua segunda língua representa uma importante conquista política, mas, ao mesmo tempo, reflete uma concepção monolinguista, que sustenta a diferença colonial, expressa na obrigatoriedade legal de o(a) surdo(a) escrever em português. Ou seja, ainda que pareça paradoxal, o bilinguismo imposto pelo Estado é monolíngue, demonstrando a oficialidade da cultura do monolinguajamento, uma das estratégias de sustentação da colonialidade linguística e espistêmica pelo Estado. O ganho com essa imposição, todavia, é a insurgência da ontoepistemologia dos(as) surdos(as) pela visibilização e assumência da transmodalidade e da transemioticidade linguísticas, como condições naturais e dialógicas das línguas dos(as) surdos e dos processos de translinguajamento, como configurações das práticas sociolinguísticas naturais dos(as) surdos(as).

Dada a ontoepistemologia dos(as) surdos, a multimodalidade da libras e as práticas sociolinguísticas translinguajadoras e transmodalizadoras dos(as) surdos(as), nas fronteiras sociolinguísticas, é possível promover a decolonialidade do poder, do saber e da linguagem no processo de letramento dos(as) surdos(as), porque ocorre, nessa complexidade sociolinguística, inevitavelmente, a ruptura com o racionalismo científico (linguístico e epistêmico) eurocêntrico.

Pensado no interior de uma geopolítica do conhecimento (QUIJANO, 2005), o eurocentrismo científico é, nos termos de Mignolo (2002), uma “camisa de forças”, da qual é muito difícil se desvencilhar. Por isso, por mais que nos preocupemos, neste trabalho, em problematizar as concepções vinculadas à racionalidade científica, uma das mais fortes expressões do eurocentrismo, da modernidade e da estrutura social ocidental liberal, seguramente, nossa discussão não está isenta das amarras dessa “camisa de forças”.

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Notas

1 Este sistema se contrapõe ao sistema especial de ensino, ainda que os dois ocupem o mesmo espaço.

 

2 Temos consciência da diferença da dimensão da oficialidade: a língua portuguesa é o idioma oficial da nação e a libras é a língua oficial do povo surdo.

 

3 Quando o(a) surdo(a) opta pela libras, o que ocorre é a intermediação linguística do(a) intérprete, ou seja, o português continua sendo a língua de instrução ou de ensino na escola.

 

4 Proposta de política pública educacional implementada por meio do Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011.

 

Correspondência

Hildomar José de Lima Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Letras, Campus II – Samambaia, Vila Itatiaia. Goiânia, Goiás – Brasil.

CEP: 74001-970

 

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