http://dx.doi.org/10.5902/1984686X38222

 

Corpo e expressividade como marcas constitutivas da diferença ou do ethos surdo

Body and expressiveness as marks constituting the difference or ethos deaf

Cuerpo y expresividad como marcas constitutivas de la diferencia o del ethos sordo

 

Pedro Angelo Pagni

Professor doutor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, São Paulo, Brasil.

pedropagni@gmail.com

ORCID – https://orcid.org/0000-0001-7505-4896

 

Vanessa Regina de Oliveira Martins

Professora doutora na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.

vanymartins@hotmail.com

ORCID – https://orcid.org/0000-0003-3170-293X

 

 

Recebido em 20 de maio de 2019

Aprovado em 22 de julho de 2019

Publicado em 22 de outubro de 2019

 

 

RESUMO

O artigo objetiva apresentar a experiência de vida surda como acontecimento ético e estético. O ethos surdo se constitui pelas diferenças e é efeito das marcas de uma expressividade que se estende aos corpos. Os estudos numa perspectiva cultural da surdez, da qual somos parceiros, agenciam-na por seus marcadores linguísticos e culturais. Nossa mirada abrange as particularidades linguísticas, de uma língua de modalidade gesto-visual, mas amplia a perspectiva ao dar ênfase aos restos-acontecimentos que são efeitos das sensações surdas, das performances corporais, dos gestos e da expressividade do pensamento surdo que se produz nesse acontecimento único que funda a experiência do ser surdo. Para tais argumentações pautamo-nos da perspectiva ontológica, conceito desenvolvido neste artigo, de uma ontologia da deficiência como espaço da falta, efeito de uma plasticidade destrutiva, que constitui os corpos surdos e os fazem singulares pelo encontro-acidente posto pela própria surdez. São de experiências únicas de corpos produzidos nesta expressividade enigmática e única que traçamos nossas problematizações de modo a afirmar a surdez em sua potencialidade afirmativa de um acontecimento singular que se materializa em corpos vivos, em línguas/corpos.

Palavras-chave: Diferença surda; Acontecimento; Expressividade surda.

 

ABSTRACT

This article aims to present the deaf life experience as an ethical and aesthetic event. The deaf ethos is constituted by the differences and is the effect of the marks of an expressiveness that extends to the bodies. Studies in a cultural perspective of deafness, of which we are partners, are its agency through its linguistic and cultural markers. Our view covers the linguistic particularities of a gestural-visual language, but extends the perspective by emphasizing the remains-events that are effects of deaf sensations, body performances, gestures and the expressiveness of deaf thinking that takes place in this unique event that founds the experience of being deaf. For such arguments we are guided by the ontological perspective, of an ontology of deficiency as a space of lack, of a destructive plasticity that constitutes deaf bodies and makes them singular by accident. It is out of these unique experiences of bodies produced in this enigmatic and unique expressivity that we draw our reflections in order to affirm the deafness in its affirmative potentiality of a singular event that materializes in living bodies, in tongues / bodies.

Keywords: Deaf difference; Happening; Deaf expressivity.

 

RESUMEN

El artículo objetiva presentar la experiencia de vida sorda como acontecimiento ético y estético. El ethos sordo se constituye por las diferencias y es efecto de las marcas de una expresividad que se extiende a los cuerpos. Los estudios en una perspectiva cultural de la sordera, de la que somos socios, la agencian por sus marcadores lingüísticos y culturales. Nuestra mirada abarca las particularidades lingüísticas, de una lengua de modalidad gesto-visual, pero amplía la perspectiva al dar énfasis a los restos-acontecimientos que son efectos de las sensaciones sordas, de las performances corporales, de los gestos y de la expresividad del pensamiento sordo que se produce en un acontecimiento único que funda la experiencia del ser sordo. Para tales argumentos, nos referimos a la perspectiva ontológica, un concepto desarrollado en este artículo, de una ontología de la deficiencia como un espacio de falta, el efecto de una plasticidad destructiva, que constituye los cuerpos sordos y los hace singulares por el encuentro-accidente causado por su propia sordera. Son de experiencias únicas de cuerpos producidos en esta expresividad enigmática y única que trazamos nuestras problematizaciones para afirmar la sordera en su potencialidad afirmativa de un acontecimiento singular que se materializa en cuerpos vivos, en lenguas / cuerpos.

Palabras clave: Diferencia sorda; Evento; Expresiones sordas.

 

Introdução

Em seu livro “Vendo vozes”, Oliver Sacks (2010) relata o que o chamou atenção para as questões e para o mundo da surdez, a saber, a leitura de um livro sobre o assunto no âmbito de sua área – a neurociência – fazendo-o encontrar mais do que as vozes vistas, toda uma comunidade capaz de protagonizar sua ação na esfera pública. Embora buscasse encontrar nessa comunidade questões médicas, nela se defrontou com toda uma dimensão cultural e política para ele completamente desconhecidas.

 

Muitas pessoas surdas que conheci não haviam aprendido apenas uma língua adequada, e sim uma língua de tipo inteiramente diferente, que servia não só as capacidades de pensamento (e, de fato, possibilitava o pensamento e a percepção de um tipo não totalmente imaginável pelos que ouvem), mas também como meio de comunicação de uma comunidade e uma cultura, ricas. Ainda que jamais tenha esquecido a condição “médica” dos surdos, fui então levado a vê-los sob uma luz nova, “étnica”, como um povo, com uma língua distinta, com sensibilidade e cultura próprias (SACKS, 2010, p. 10 – aspas do autor).

O autor dessa forma abre um novo campo de mirada da surdez. Ele alarga a possibilidade de pensá-la para além da condição médica, da falta orgânica e suas implicações, assumindo uma perspectiva étnico-cultural em que a aparição não apenas de outra língua, a gestual, mas as marcas sensíveis que a surdez consolida na vivência das pessoas surdas. No entanto, a condição “médica” também retratada em seu livro, a partir da psicologia e da neurociência, propõe analisar as condições específicas dos nati-surdos1, suas dificuldades e compensações enfrentadas graças a certa plasticidade cerebral, tanto quanto a descrição histórica de suas conquistas enquanto “povo”, até narrar as suas lutas para que a Universidade Gallaudet, voltada a esse público, fosse conduzida por um reitor surdo. Não vamos entrar aqui no detalhamento dessas lutas ocorridas, nem tampouco nas questões “médicas” retratadas a partir da neurociência, mas apenas salientar a importância, mais do que de uma língua particular e de um jogo de linguagem específico, de um ethos constituído por toda uma comunidade de surdos. Interessa-nos colocar em tela um certo modo de ser, ou seja, de uma ontologia que caracteriza esse “ser especial”2, com vistas a dar visibilidade à positividade de sua deficiência ou, como as comunidades surdas se expressam, a diferença linguístico-cultural e, para além disso apontando-a como uma forma de subjetivação singular, no protagonismo que assumem na esfera pública.

Para isso é necessário, conjuntamente com as questões “médicas” que atravessam esses modos de vida, compreender a condição ontológica que os qualificam como tal (e não somente socialmente), com a qual se relacionam e a partir da qual, conjurada a outros processos, se subjetivam como elementos e atores sociais. Faremos isso seguindo parcialmente o que Carvalho (2015) denominou de ontologia da deficiência e, particularmente, o modo como Pagni (2015) a reelaborou a partir da ontologia do acidente de Catherine Malabou (2014), no primeiro tópico deste artigo denominado: “por uma ontologia da deficiência: a particularidade das formas de vida surdas”. É nesse sentido que pretendemos abordá-los como constituidores de um ethos, como um povo ou como uma comunidade que, não obstante o silenciamento imposto pela perspectiva hegemônica, sob o signo de certa diversidade ou, mesmo, a de sua suposta inclusão às normas ou subordinação a línguas distintas (orais) das que efetivamente se expressam (de modalidade visuo-gestual, como as línguas de sinais), são visíveis e vociferam ruidosamente, com suas petições e diferenças, na esfera pública.

Defendemos que esse ethos necessita ser decodificado pelos estudiosos da área, assim como a expressividade da comunidade que o forma. Dado importante para tradutores e intérpretes, como demonstrado por Vanessa Martins e Vinícius Nascimento (2015) na necessidade de aproximação das vozes surdas e de suas demandas singulares na ação de mediação entre conceitos e saberes do universo ouvinte para o universo surdo e vice e versa. Por fim, apresentamos a particularidade surda, antes do que da aparição da sua língua de sinais, da expressividade dos corpos surdos, da aparição de sua linguagem e de uma semiologia capaz de mapear seus jogos, insistindo singularidade anunciada por toda essa expressividade. Traçamos isso a partir da categoria wittgensteiniana de jogos de linguagem e do modo como Jean François Lyotard (1983; 1998) a reinterpreta. Dessa forma, pretendemos oferecer algumas indicações filosóficas e políticas para tradutores e intérpretes de língua de sinais e educadores que trabalham com a comunidade surda e com práticas de inclusão escolar, onde a diferença surda e sua particularidade sejam vistas como protagonistas e não como supõe muitas vezes a subordinação inadvertida às normas sociais esperadas.

Por uma ontologia da deficiência: a particularidade das formas de vida surdas

Embora pouco se refira à deficiência, Catherine Malabou (2014) parece contribuir para uma compreensão ontológica mais radical da deficiência, conforme salientou Pagni (2015). Este autor argumenta que é possível compreender que, em geral, mais do que obra do desejo ou de uma lógica qualquer, a diferença se produz subjetivamente, especialmente nos modos existentes denominados deficientes, por meio de acidentes que não são controláveis e que produzem efeitos psíquicos, orgânicos, neuronais, físicos, enfim, de toda sorte sobre a superfície dos corpos, nem sempre se tornando para si mesmos acontecimentos. Ao contrário de uma experiência que se faz com o acontecimento – nos termos explicitados por Deleuze (2000), como uma ferida que se encarna –, essa experiência é feita de fora, de acordo com Malabou (2014), como uma espécie de experimentação sobre o corpo. Realizada pelas forças do acidente3, sem qualquer controle interno ou consciente pelo sujeito, tal experimentação fragmentaria o que até então o sujeito entendia como uma vida, sujeitando-o a uma plasticidade destrutiva e (de)formando-o subjetivamente a partir dos efeitos que produzem sobre o seu corpo. Essa experiência do fora tanto individualizaria esse mesmo sujeito, na medida em que o significa corporalmente, quanto se generalizaria, já que demarca uma condição da espécie humana, isto é, todos terão suas vidas atravessadas por acidentes e deverão conviver com seus efeitos, tornando-os constitutivos de seus ethos.

Foi desse ponto de vista que Pagni (2019) procurou designar a diferença da deficiência como ontologicamente radical e como constituidora de uma forma de vida que, não obstante o cruzamento com outros processos de subjetivação, se funda em certa convivência dos chamados deficientes com os efeitos dos acidentes sobre os seus corpos, aos quais reagem orgânica e/ou artificialmente no sentido de corrigir ou autocorrigir a sua disfunção, deformidade, des-capacidade ou inabilidade. Forjada ontologicamente por acidentes e constitutiva de seus modos de existência, essas formas de correção, autocorreção ou compensação implicam numa reação positiva às forças destrutivas decorrentes dessa experiência do fora, podendo ela acontecer desde o nascimento como nos casos dos acidentes genéticos, das disfunções e de todas as limitações inatas com as quais os organismos atestam ao trazer essa vida ao mundo ou em qualquer momento da existência, em função de acidentes físicos, sociais, dentre outros. Dessa forma, os modos de vida deficientes trariam em sua ontologia esse embate de forças implicado nesta dinâmica expressa.

Ainda que o imperativo moral almejado pela nossa atual cultura exija a auto-superação dos déficits, nesse embate travado sob a superfície dos corpos, esse processo não é tão simples assim, já que ontologicamente alguns desses limites são insuperáveis, restando aos deficientes conviverem tenazmente com eles. Por meio dessa resistência a um imperativo moral, explorado por Pagni (2019) e considerada por Pelbart (2007) como uma eventual possibilidade de se explorar a força dessa suposta fraqueza, como uma biopotência capaz de resistir a biopolítica atual, parece ser possível vislumbrar, não somente a positividade, por esse viés, dos modos singulares de existência deficientes, como também entendê-lo como constitutivo de suas formas de viver juntos e do devir que suscitam com suas presenças na relação com os chamados não deficientes, sobretudo, em instituições como a escola.

No caso de analisarmos as existências surdas à luz dessa perspectiva, devemos salientar algumas particularidades para que a compreendamos dentro dessa radicalidade ontológica da diferença. Skliar (2013) destaca os cuidados da aproximação da surdez ao campo da deficiência ao apontar o modo viciado de tomá-la como enquadramento comum que os aproxima por representações de limitações orgânicas, como se tais faltas os fizessem “existir” de um mesmo modo, em busca da superação, visando a normalidade. Sobre isso afirma que o discurso hegemônico

[...] supõe a existência de uma linha contínua de sujeitos deficientes, dentro das quais os surdos são forçados a existir: o anacronismo de definir um grupo de sujeitos ‘especiais’ que coloca aos surdos, aos deficientes mentais, aos cegos, etc., numa descrição que é na verdade, descontínua. Isto é, juntos, mas separados de outros sujeitos, dentro de um processo indiscriminado de patologização (SKLIAR, 2013, p. 12 – grifo do autor).

A reflexão de Skliar (2013) e sua indagação à necessidade de ampliação do que seja “especial” para a condição humana, se assemelha ao conceito de devir deficiência tratada por Carvalho (2015), retrata a necessidade de repensar a ontologia da deficiência por meio do acidente como efeito de uma radical diferença que escapa a qualquer arranjo normativo. Nesse sentido, nos interessa tomar a questão biológica não como forma de aplicação de tecnologias normalizadoras, ancorada nos discursos patologizantes, postas pela ação do biopoder, mas como efeito de afirmação de uma existência que escapa e que insiste em se fazer presente. Os surdos afrontam à norma linguística quando insistem mostrar a gramaticalidade da língua de sinais, que sendo língua, fratura a lógica pensada até então sobre os postulados da linguística das línguas orais. E, talvez, mais do que uma afronta da norma linguística, tragam em sua expressividade a figuração de um ethos que se diferencia dos demais, como qualquer um, e não somente em razão de sua surdez, suas dificuldades de fala na língua oral, dentre os múltiplos fatores que podem ser nomeados como parte dos efeitos do que delineamos a partir da ontologia do acidente. 

Oliver Sacks (2010) faz esse movimento ao apresentar as especificidades e aparições, particularmente, no que se refere à plasticidade cerebral e à linguagem, à luz das quais explica as especificidades dos modos de existência, da língua de sinais de uma comunidade surda e de sua relação com o mundo falante. A principal dessas particularidades é a de que, conjuntamente com uma plasticidade cerebral para se adequar aos efeitos de acidentes sobre a audição e sobre a fala que caracterizam a falta de audição, é preciso compreender a força destrutiva implicada numa multiplicidade de impactos sobre os corpos dos sujeitos ocasionados pela surdez, seja ao longo da vida, seja ao nascimento. Isso porque, para o neurocientista, os efeitos da surdez decorrentes de um acidente sejam adquiridos após a aquisição de linguagem, ou ainda, antes dela, geram distintas formas de relação corpo-surdo e desenvolvimento de linguagem. Uma delas, que pode ser atribuída à força destrutiva, é o que Lopes (2007) sugere como marcadores culturais surdos que, por meio da visualidade, operam a potencialidade de desenvolvimento de uma língua, materializando-se numa relação visuo-gestual. Nesse caso, as línguas de sinais se colocam como exercício de afirmação da diferença surda e dos modos de enunciação de si, compreendendo essa particularidade, por exemplo, nos movimentos de renúncia da permanência em um mesmo espaço de ensino “inclusivo”, na medida em que impedem a singularidade de afirmação do ethos surdo e de suas manifestações específicas no processo de aprendizagem.

Se seguirmos o diálogo proposto por Catherine Malabou (2014) entre a filosofia, a neurociência, a psicologia e a linguística para sustentar a sua ontologia do acidente, teríamos que relacionar essa ideia de plasticidade cerebral descrita em relação aos surdos, não propriamente com o desenvolvimento do pensamento, salientando o papel conferido exclusivamente à linguagem, mas também apontar a intensificação da vida produzida graças ao papel exercido por concepções distintas de corpo e de expressividade das comunidades surdas. Ao menos é isso que pode se depreender quando a autora tenta esboçar um diálogo com a neurociência, ao discutir a interpretação da relação entre esse campo e a ética espinosana, desenvolvida por um dos precursores desse campo: Antônio Damásio4.

Para ela, o dano cerebral e os seus efeitos sobre a identidade subjetiva continuariam sendo pensados na neurociência como contingentes, casuais, “sem ligação com uma possibilidade existencial do sujeito” (MALABOU, 2014, p. 30), não considerando a destruição como móvel estruturante dessa mudança subjetiva. Afinal, diz a autora, “o acidente é uma propriedade da espécie”, o que sugere que “a capacidade de se transformar sob o efeito da destruição é um possível, uma estrutura existencial”, mas que, por sua vez, tal identidade do acidente, “não reduz por isso o acaso de sua ocorrência, não anula a contingência de sua atualização que, em todos os casos, permanece absolutamente imprevisível” (MALABOU, 2014, p. 30). Eis aí a dificuldade da filosofia para admitir a ontologia do acidente como uma lei, “ao mesmo tempo lógica e biológica, mas como uma lei que não permite antecipar nada sobre seus próprios casos” (ibidem). E, por isso mesmo, a sua dificuldade – por decorrência também a da neurociência – em admitir que a plasticidade destrutiva que funda tal ontologia deveria estar inscrita nos registros das leis cerebrais, pois se o fizesse seria obrigada a admitir que a mudança de identidade e a diferenciação ontológica promovida pela sua destruição não decorre de um acontecimento exterior que casualmente ocorre para modificar a identidade estável do sujeito, mas de uma norma que faz de si uma entidade maleável, capaz de se transformar e de ficar à deriva.

Essas considerações, a nosso ver, ultrapassam as conclusões de Sacks (2010) para significar a diferença linguística dessas comunidades. Embora se aproprie das pesquisas neurocientíficas sobre os lóbulos e hemisférios cerebrais para salientar as características de sua conduta neural e salientar o sentido positivo da plasticidade para esses modos de vida, esse autor deixa de levar em conta tanto o sentido negativo desta última, indicado pela ontologia do acidente, no que se refere tanto à imanência ontológica do acidente quanto à transcendência do acontecimento da surdez, deixando descoberto uma esfera ética a qual pretendemos abarcar subsequentemente neste artigo.

Ethos, formas de vida surda e a potencialidade do acontecimento da surdez

Catherine Malabou (2014) retoma a ética espinosana para caracterizar em torno da diferenciação entre a vida e a morte um aspecto de sua teoria do conatus e dos afetos que, em diálogo com a neurociência, desloca para o corpo e a expressividade o que este último procurava decodificar por meio da regulação/desregulação da atividade do sujeito cerebral. De acordo com a autora, segundo a proposição daquela ética,

A vida pode ser definida como o concurso harmonioso dos movimentos do corpo. É a definição da saúde do organismo, que pressupõe o concurso entre suas partes. A morte sobrevém, pelo contrário, quando as partes têm movimentos próprios, autônomos, que desorganizam assim a vida do todo e quebram sua unidade. (MALABOU, 2014, p. 31)

Não obstante essa harmonização e essa desorganização de sua saúde e do que decorre disso para a vida e a morte, nessa acepção o corpo poderia ter sua natureza transformada em outra inteiramente diferente da sua nem por isso se tornar um cadáver. Ao contrário, essa transformação de natureza corpórea poderia decorrer de uma perda de memória, de um acidente, de uma situação, entre a vida e a morte, em que o sujeito se tornasse outro de si mesmo, como ocorre nos casos de Alzheimer, onde essa mudança é causada pelos efeitos da destruição. Nessas circunstâncias, ter-se-ia que considerar não a vida e a morte em termos absolutos de harmonização e de desorganização das partes do corpo, mas as variações de expressividade deste último. É esse movimento almejado pela autora, ao recuperar a interpretação deleuzeana da ética, para caracterizar as duas ordens de variações expressivas dos afetos e do conatus.

A primeira compreende as variações normais dos afetos, produtoras dos afetos alegres na atividade e dos afetos tristes na passividade, ampliando ou reduzindo a potência de agir do ser de acordo com essa orientação do conatus e de uma economia que a faz variar conforme o poder de ser afetado, em razão inversamente proporcional, ou seja, quanto mais afetos alegres mais potencialização da ação e menor padecimento, e vice-versa. Contudo, haveria certas afecções que diriam respeito não propriamente a essas diferentes nuances do conatus, mas a sua estrutura mesma, sugerindo um segundo tipo de variações expressivas na medida em que o poder de ser afetado não seria constante nem permaneceria sob a mesma natureza sempre, ao ponto de termos dificuldade de reconhecer, diante de uma deformação, crescimento, doença, envelhecimento, um mesmo indivíduo. Com tal justificativa, o segundo tipo de variação do conatus implicaria em uma mudança de sua estrutura e em uma plasticidade resultantes do “poder de modificação da identidade” cujas proporções iria além do simples desvio subjetivo, da distensão do sujeito ou de sua dessubjetivação, chegando até a produção de uma outra existência (MALABOU, 2014).

Considerar essas variações significaria admitir, segundo a autora, uma plasticidade ontológica do ser positiva, porque relacionada a variação dos afetos e a potencialização de sua ação no mundo, e, concomitantemente, negativa, pois capaz de destruir essa dinâmica de funcionamento afetivo e de modificar seu modo de ser, resultando na “produção de outra existência sem relação com a anterior” (MALABOU, 2014, p. 34). Nesse sentido, reconhecer o papel da plasticidade destrutiva para esse campo seria uma forma de ampliar suas formas de compreensão acerca da plasticidade cerebral e, mais do que isso, admitir que ela ocorre também nesse sentido negativo, por assim dizer, desestruturante e desconstrutivo da subjetividade, considerando essa última sob uma nova virada, pouco abordada também pela filosofia.

A neurociência ganharia segundo Malabou (2014), se refletisse sobre tais aspectos, antes do que centrar-se exaustivamente na atividade cerebral, ou, ampliando a aproximação ética desenvolvida por um de seus principais pesquisadores, se mais radicalmente se detivesse sobre a questão espinosana: “não se sabe o que pode o corpo”. Talvez, desse ponto de vista a neurociência se deslocaria da questão o que pode o pensamento e a linguagem, de seu vínculo a um excessivo cognoscentrismo, tradição ao qual ainda parece se ligar, mesmo tentando dissolver a relação entre corpo e mente com sua ênfase às redes neurais.

Mais importante que esse ganho, porém, nos parece ser que, ao se deter sobre a questão o que pode o corpo e quais suas formas de expressividade, não somente a neurociência, como também a Filosofia, a Educação, dentre outros campos, poderiam melhor enfrentar a interdição da potencialização da ação e a intensificação da vida, dada a excessiva regulamentação desta na biopolítica e a hipervalorização do seu oposto no tempo presente (ORTEGA, 2008). Esses fatores gerais acarretam no padecimento do conatus e certo conformismo em função de uma sobrevivência que não é a da espécie, mas de um indivíduo construído sob a inscrição da pulsão de morte em uma esfera mais ampla de um corpo social, politicamente delineado, em cuja promessa de existência segura se nutre o esvaziamento de sua dinamicidade vital e, por assim dizer, de seu ethos.

É nessa conjuntura política e sob essa concepção de ethos, associada a essa dinâmica dos afetos e a indagação sobre o que pode o corpo surdo que, mais do que problematizar Sacks (2010), gostaríamos de apresentar uma outra alternativa para compreender as formas de vida surdas, desse ponto de vista ontológico, expandindo a sua compreensão e deslocando seu pensamento do uso público da linguagem surda para a expressividade intima de seu corpo desviante.

Se retomarmos a análise de Oliver Sacks (2010) para compreender a plasticidade do cérebro surdo e, principalmente, a sua escolha por preferir discuti-la em surdos congênitos, antes do que naqueles indivíduos que adquiriram a surdez em determinado momento da vida, ela nos parece razoável. Isso porque se fosse analisar a surdez desses últimos os caminhos compensatórios do cérebro seriam mais complexos, já que não dependeriam somente do mapeamento de suas redes neurais e de estudos sobre a atividade dos hemisférios e lóbulos cerebrais5, como também de todo um histórico emocional, psíquico, sociocultural. Ademais, poderíamos argumentar que, se ele tivesse que analisar os modos de vida dos indivíduos que adquiriram a surdez, seria difícil deixar de enfrentar a questão sobre essa transformação pela qual passa a subjetividade desse sujeito, sobretudo, no que se refere à ruptura existencial que implicam os efeitos desse acidente (seja de que ordem tenha sido), o padecimento que causa e com o qual esse sujeito é obrigado a conviver. É certo que as próteses e o aprendizado de uma língua nova – oral ou de sinais – podem ser visto apenas como tecnologias, caminhos e meios interessantes para compensar a destruição provocada por esse acidente e os seus efeitos sobre a audição e a fala, devolvendo ao organismo certa funcionalidade e eficiência para o exercício de atividades limitadas pela deficiência. Nesses casos, porém, não se restaura um estado de existência anterior àquele que foi modificado pela força destrutiva do acontecimento da surdez, tampouco se apaga o que daí adveio como um modo de vida surdo, ao contrário há uma adaptação a essa nova situação, se se perfazendo outro de si, às vezes, sem qualquer relação com o passado. Afinal, não há termos de comparação ou, melhor seria dizer, uma comparação experimentada na própria pele ou uma experiência de autotransformação causada pelo acontecimento da surdez nesse sujeito: o que há é uma sempre surdez, a qual não é estranha ao organismo e ao corpo individual, mas que somente se produz para esses indivíduos diante de seu nascimento para o mundo.

É na tessitura do tecido social e de seus jogos de poder que, historicamente, esses indivíduos vivenciam a negatividade no que se refere a seu ser nesse mundo, em função da explicitação de seus déficits e, sobretudo, de uma significação alheia do acontecimento da surdez, anteriormente ignorada por eles. Isso porque a potencialidade vivida nessa anterioridade, na relação consigo, os seus organismos vivos responderiam a tudo positivamente e se exprimiriam sem qualquer restrição, seja de ordem física, psíquica, moral ou política, sendo somente objetos dessa interdição por ocasião de seu nascimento para o mundo social. Assim, o significado desse acidente, tornado acontecimento para esse indivíduo, por um lado, corta sua vida em um antes – em que a potência de vida fluía em consonância com o livre concurso das partes de seu corpo – e um depois – quando conhecido o significado ou a representação social do acontecimento da surdez, de seu limite funcional e de seu desempenho –, despotencializando e jogando a sua existência numa deriva, numa improvisação, só não maior em razão da preexistência de inúmeras pessoas como ele e de uma comunidade cujos desafios e horizontes lhes são familiares, comuns. Por outro lado, tal significado denota um segundo nascimento desse indivíduo para o mundo com o seu ingresso nessa comunidade surda, mediante a exposição de uma existência frágil e de um conjunto de vidas julgadas desqualificadas, menor que as outras, portanto, insuflando uma luta necessária pela sua sobrevivência, diferenciação e afirmação na esfera pública, caso não queira perecer na biopolítica.

A surdez como acidente é de ordem ontológica e não somente imanente a sua existência, como algo que inesperadamente a atravessa e o torna irreconhecível, como também transcendente, como uma ideia que impera negativamente sobre si e a sua vida, independente das formas que assuma, nesses casos. Tal acidente obriga os sujeitos surdos a se potencializar e se recriar, dobrando-se a um imperativo moral de que jamais seria como o de qualquer outro nesse mundo, exceto se adentrar aos jogos de poder e de subjugação na relação com outrem, mas também demandando linhas de fugas para que, eticamente, escape a essas formas de tecnologias de biopoder. Nesse caso, além das próteses e do domínio de uma língua de sinais como meio de interação e acesso à língua oral, os implantes cocleares seriam tecnologias imprescindíveis para dar conta desse imperativo e para ingressar a um mundo falante, ainda que parcialmente, facultando a participação na biopolítica atual.

Isso porque há nesses modos de existência uma inefabilidade do acontecimento da surdez na medida em que os fluxos dos afetos corpóreos não podem ser integralmente traduzidos pela linguagem articulada pelo indivíduo, qualquer que seja ela, nem mapeados por sua atividade cerebral, como suposto pela neurociência. Sobre esses aspectos nem a neurociência, nem os estudos no âmbito da surdez, como campo de estudo cultural, parecem se aventurar, sendo necessária, a nosso ver, uma maior proximidade da filosofia e da ética.

As reafirmações de lógicas padronizadoras e a supressão de um ethos surdo se mostram quando é permitida a produção discursiva do surdo pela língua de sinais, na condição de chegada e acesso à língua oral e não como uma produção de outra lógica de vida, de uma linguagem particular: uma vida surda que se afirma pela expressividade de sua língua em um corpo (CAMPELLO; REZENDE, 2014; LOPES; VEIGA-NETO, 2017). Portanto, não obstante a importância desse caminho (da luta pelo reconhecimento linguístico) e da perspectiva aberta por Sacks (2010), em relação às formas de vida e ao ethos produzidos pelo acontecimento da surdez, gostaríamos de propor uma ampliação, primeiro, da restrição que faz de seu mapeamento pela neurociência, recorrendo a uma ética dos afetos e ao corpo desviante como elemento central de sua expressividade e, depois, compreender os jogos de linguagem que compreendem esta última e os seus diferendos com as línguas de sinais (efeitos linguísticos) que fundam as comunidades surdas, assim como a sua relação, e modificações a partir de suas diferenças, com os mundos falantes.

Considerações sobre a ética surda à sua expressividade: dilemas de uma língua e de sua relação entre mundos

Em razão dos limites deste artigo, traremos algumas considerações dessa ampliação da diferença surda numa perspectiva ética e expressiva. Pensamos que tais aportes fomentam um repensar de nossa relação como ouvintes com os sujeitos surdos e em suas singularidades impostas a nós.

Nessa direção fechamos com a seguinte problematização: para harmonizar as partes do corpo, as forças que sincronizam os seus sentidos e os expressam, segundo a ética dos afetos desenhada anteriormente, antes de tudo, exige-se uma convivência com os efeitos imanentes da força destrutiva do acidente que a produziu e com uma norma transcendente de que sua identidade só poderia ser a diferença e a mobilidade próximas à dinâmica da vida.  Dessa perspectiva, as formas de vida surdas encontrariam no acontecimento da surdez, decorrente dos efeitos de um acidente sobre o corpo individual, experienciados congenitamente ou não, ao mesmo tempo sua principal fragilidade e sua força na medida em que essa reage sobre aquela não em vista a superá-la, mas de habitar com ela ou coabitar os mesmos lócus, circular no mesmos espaço e se estruturar uma a partir da outra, gerando uma tensão original (em função de seu antagonismo) uma convivência,  senão completamente pacífica, ao menos agônica. Isso implica curtir a pele como se curte um coro, tornando-o mais tenaz, porém, igualmente mais potente na medida em que seja nessa sua mistura agônica, seja na sua tensão, a destruição do acidente se torna construção de um outro ser, fazendo com que entre a vida e a morte, esse movimento faça prevalecer a vida, onde a pulsão de morte instaurada como lei teima em persistir. 

O padecimento do acontecimento da surdez pode se tornar atividade e isso somente pode correr por intermédio do local onde esses afetos circulam e emanam – o corpo – e do modo como o expressam – não restrito a linguagem ostensiva. Contudo, segundo a ética dos afetos, essa dinâmica não se daria numa relação do surdo consigo mesmo ou por efeito relacionado a sua natureza particular, mas na relação com outrem, decorrente do encontro com outros corpos, sejam eles semelhantes a si no que diz respeito à experiência com o acontecimento da surdez e de sua expressividade, sejam diferentes de si, isto é,  pertencentes a um mundo falante distinto do seu, que tenta subjugar essa expressividade à linguagem usual, exigida como linguagem desse mundo.

Num caso, mais do que a noção wittgensteiniana de jogos de linguagem, largamente mencionada por Sacks (2010), mas pouco utilizada, poderia ser útil, conjuntamente com a questão relativa à familiaridade dos jogos da linguagem entre si. Isso porque, para Wittgenstein (1996, p. 18), os jogos de linguagem são os processos pelos quais se aprende uma língua materna, se denomina objetos e se repete a palavra pronunciada, compreendendo tanto a totalidade da linguagem quanto os seus usos. Como todo jogo, estes também possuem suas particularidades, suas regras, lances e estratégias próprias, que podem ir se aprimorando com o seu uso público ou por suas práticas.  Aos poucos, vão se distinguindo por seus gêneros e por suas famílias que procuram compreender a sua totalidade, nem sempre esgotada, na medida em que a designação das coisas no mundo e de seus estados não são plenamente compreendidos pelas palavras nem designadas plenamente pelos seus enunciadores.  Do mesmo modo que um jogo de xadrez não se equipara a um jogo de cartas, a linguagem usada pela ciência possui regras, lances e performance distinta daquela utilizada pela literatura, constituindo famílias diversas que, por sua vez, se juntam a outros gêneros nos usos que se faz publicamente da linguagem, aí se misturando e, muitas vezes, obscurecendo os significados particulares das palavras e as suas utilizações gerais para lhes designar alguns sentidos comuns. 

Para Wittgenstein (1996), o papel de sua filosofia seria justamente esclarecer sobre aqueles significados e desfazer essa obscuridade em relação às confusões e conflitos estabelecidos no uso público da linguagem, particularizando seus jogos e contextos de utilização, explicitando suas características e performatividades, mostrando enfim a multiplicidade de linguagens que os compreendem. Isso não significa, todavia, que no ato performativo de sua enunciação ou na sua comunicação os gêneros encontrados, com suas características próprias, regras e performatividade, não possam ter o que Wittgenstein (1996, p.52) denomina de “semelhança de famílias”, indicando algum tipo de congruência, de familiaridade ou de proximidade entre um jogo e outro da linguagem. E, principalmente, que a filosofia também se ocuparia tanto na descrição de cada jogo em particular quanto na análise de possibilidades de sua familiaridade, indicando eventuais proximidades entre uma linguagem e outra em relação ao seu uso público.

É dessa perspectiva que Sacks (2010) se apropria dessas noções a nosso juízo para particularizar o jogo compreendido pela língua de sinais, destacar a positividade de sua diferença linguística em relação à linguagem usual ou ostensiva, demonstrar que o seu uso desenvolve o pensamento e, pela atividade cerebral demonstrada, qualificam os surdos como sujeitos (cerebrais e linguísticos) para atuarem na vida pública. Por sua vez, a atuação desses sujeitos, fazem com que sejam reconhecidos pelos demais como uma comunidade que se constitui por intermédio de uma língua que lhes permite integrar-se a uma esfera pública no qual concorrem, disputam, se solidarizam, com outras comunidades ou povos.

No que se refere à particularidade do jogo representado pela língua de sinais, Sacks (2010) salienta o caráter gestual de sua performatividade, que agrega às suas regras e signos, um uso particular, diferente linguisticamente do jogo de linguagem preponderante nos países de língua inglesa (na modalidade oral) e, sobretudo, do uso ostensivo da linguagem. Mostra também, com alguns exemplos na designação de signos, o quanto determinadas letras, palavras e expressões idiomáticas têm uma dimensionalidade, um significado e sentido distintos da língua usual na medida em que mobilizam gestos corpóreos e expressões que, embora compreensíveis por aqueles que falam a língua de sinais, se distinguem do uso comum da linguagem falada pelos demais. Em torno dessa diferença linguística (gramatical, sintática, semântica, pragmática), por assim dizer, descreve parte das conquistas historicamente obtidas pela comunidade surda no âmbito público norte-americano, como também sugere, pela proximidade de desenvolvimento cognitivo e da atividade cerebral e da eventual familiaridade com a língua usual, algumas semelhanças que possibilitariam uma maior interlocução, não obstante as dificuldades de se passar de um conjunto de jogos de linguagem a outro.

Esse seria um campo para a comunicação ou para os jogos de comunicação, assim como para a tradução dos códigos, regras e diferenças de um jogo de linguagem para outro, que permaneceu inexplorado nessa obra de Sacks (2010). Talvez, essa limitação tenha ocorrido por duas razões.

Uma delas poderia ser desenvolvida caso o pensamento wittgensteiniano fosse lido por outro viés por esse autor e os jogos de linguagem fossem compreendidos no sentido de que “falar uma língua é uma atividade ou uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 27). Do modo como Pierre Hadot (2007) interpreta essa passagem e o pensamento desse filósofo, os jogos de linguagem se articulariam com essa arte de existência a partir do que emana da vida, das forças com as quais deve lidar e que igualmente fazem a vida jogar. Algo Em razão dos limites deste artigo, traremos algumas considerações dessa ampliação da diferença surda numa perspectiva ética e expressiva. muito próximo do que se refere à caracterização das formas de vida surda, dentre outros efeitos por uma radicalidade ontológica de sua diferença, pautada por uma relação constitutiva visual tão específica e para além apenas do uso de uma língua de modalidade gestual, mas efeito,  conforme mencionada anteriormente, pela particularidade da relação com os acidentes e por uma experiência do fora que violenta essa forma de existência, colocando-a à deriva, mas também potencializando-a no que se relaciona à criação de um modo de vida outro, que se subjetiva compensando os déficits percebidos, ou enfrentando-os quando designados socialmente. Em outras palavras, pela afirmação de sua diferenciação, não apenas linguística, como também expressiva, há a constituição destas vidas surdas: uma ordem outra de vida manifesta pela surdez.  Essa forma de enfrentamento com o mundo se dá somente nele, como mencionado, e como a língua é o meio de constituí-lo, em grande medida parte da literatura sobre a comunidade surda se perfez, centrando-se na afirmação da diferenciação linguística.

Devemos ressalvar que, ao se apropriar da noção wittgensteiniana de jogos de linguagem, Sacks (2010) também procura oferecer subsídios teóricos nessa direção e, mais do que isso, propondo um contorno mais amplo do que a literatura a respeito. Isso porque, ao se apoiar na noção mencionada e no jogo que a compreende, também não restringe a linguagem à estrutura da língua, inclui a gestualidade, a fisionomia e, embora não use deliberadamente esse termo ou o use em outro sentido, a expressividade como algo que se comunica com o enunciado, com a proposição, enfim, com a mensagem. Faz algo análogo a Wittgenstein (1996, p.155), ao agregar aos jogos da linguagem – além do significado da palavra, das regras sintáticas das frases, dentre outros elementos gramaticais estruturantes –, aspectos relacionados à expressividade, ao gesto, à fisionomia como partícipes da comunicação, ainda que não pertencente ao objetivo imediato da linguagem e como um pressuposto (subjetivo) que não se sabe bem como decifrar por seu intermédio. Contudo, ele também parece associar o acontecimento que se passa à representação e o afeto que suscita/circula na comunicação da mensagem à sua tradutibilidade. Isso porque procura restringi-los senão ao cognoscível, ao menos a jogos que se familiarizam aos signos linguísticos e a uma performatividade capaz de aplacar os restos ou considera-los como decorrentes de um uso privado que deveriam ser ignorados.

Esses restos se referem aos acontecimentos sentidos na superfície do corpo que não podem ser representados e a sua expressividade que, em razão de seus jogos, são parcialmente convertidos em linguagem, ficando em descoberto na comunicação, entre participantes de uma comunidade seja de iguais, seja de diferentes. No que se refere aos acontecimentos como a surdez, a sua representação, como anteriormente mencionado, não dá conta das tensões e da potencialidade dos afetos experienciados nas formas de vida denominadas surdas, tampouco, a expressividade de seus corpos exige uma aproximação de um jogo de linguagem que, por sua vez, é pré-linguístico, compreendendo gestos, fisionomias e movimentos que raramente são apreendidos pela linguagem, embora possam ser compensados parcialmente pela familiaridade de seus jogos. Afinal, são resultantes de um processo em que as partes do corpo se coordenam para sincronizar uma ação expressa, uma fisionomia ou um movimento, enfim, uma performance corporal, acompanhada de afetos alegres ou tristes, potencializadores ou não da existência, dando a ela sentidos que implicam ou não numa autotransformação de si mesmos e, por vezes, numa reorganização ou, mesmo, transformação da comunidade em que sensível e imediatamente atuam.

Ao analisar os limites da linguagem e de seus jogos para apreender os objetos da expressividade da arte e suas tecnologias, Lyotard (1998) argumenta haver nesses casos uma espécie de comunicação sem comunicação. Isso ocorre porque não seria a linguagem que opera ou a sua performatividade, por assim dizer, mas a sua dimensão estética ou a de uma comunidade sentimental que, ao se propor subentende-la, deixam de fora da comunicação convencional o que não pode ser nomeável, o que é a-significante, o que pertence à sensibilidade ou à experiência e, por ser subjetiva ou privada, ainda não pode ser traduzível em linguagem, objetivada pelo saber ou pela ciência. Assim, poderiam ser exprimíveis mais não comunicáveis, somente sendo apreensíveis pela arte ou pela comunicação de algo incomunicável, num jogo de linguagem e comunicacional bastante particular, para não dizer que residiria no limiar entre esses jogos, sendo antes do que familiar e de cognoscível, estranho e inapreensível.

Parece ser dessa natureza a particularidade da afirmação da diferenciação da forma de vida denominada de surda e de sua expressividade que a arte poderia auxiliar a traduzir. Isso porque essa diferenciação é mais corpórea do que linguística e, portanto, capaz de mobilizar em outrem mais esse estranhamento em relação aos seus jogos de linguagem do que familiaridade, ao mesmo tempo em que esta é produzida justamente em função de um estranhamento familiar, relacionado ao obscurecimento do uso que esse outrem faz de seu corpo e de como se expressa. Somente algo impreciso e mais expressivo como a arte da vida poderia dar conta de um jogo comunicacional como esse. Ela implica na decifração, por um lado, em jogos corpóreos e signos expressos pelos próprios surdos para se comunicarem entre si, entrelaçados por uma sensibilidade que permitiria a emergência dessa arte de si em torno da qual poderiam se afirmar, singularmente, e a construção de uma comunidade que age em torno de um comum produzido a partir do incomunicável dessa comunicação. Por outro lado, compreende uma necessidade de extrapolar essa comunidade e estabelecer uma relação com outras comunidades e seus participes, cuja língua é outra, forçando os deslocamentos tanto dos jogos de linguagem por intermédio daqueles jogos corpóreos expressivos desse ethos denominado surdo, quanto tentando decodificar e re-significar esse último para aqueles, sem perder sua potência construtiva e a sua plasticidade destrutiva. Para isso, mais do que tradutores de uma língua na outra, intercessores seriam importantes e funcionariam como uma espécie de aliados para promover essa decodificação semiótica e, ao mesmo tempo, reconhecer igualmente os seus limites, ao trabalhar não apenas com uma semiologia significante, como também com os signos a-significantes da expressividade surda e da inexpressividade do mundo. Talvez, aí poderiam encontrar um comum em que a intersecção de uma comunidade adentre a outra e vice-versa, mantendo a diferença não na língua incomum a outras, mas no comum dessas comunidades, em sua sensibilidade e em seu ethos, denotando o que nestas potencializam pela diferença as formas de vida de uns e de outros.

Nessa arte mais diplomática ou da diplomacia política os tradutores, intérpretes e os aliados à causa surda poderiam recorrer tanto à ciência quanto à filosofia, utilizando-as como ferramentas para propor uma ética dos afetos marcada por uma alteridade radical de uns em relação aos outros. Ao mesmo tempo em que para ensaiar uma política em que o convívio com a diferença do ethos alheio, para além de sua língua, mas não a negando, seja propulsor do bem viver e da democracia, na afirmação de vidas singulares produzidas pela arte de si, que não podem ser esmagada pela ação da mesmidade no jogo da biopolítica.

Referências

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Notas

1 Termo usado para a surdez congênita ou pré-linguística na obra mencionada. O autor saliente a surdez pré-linguística para mostrar as implicações interacionais acarretadas pela falta de linguagem quando os pais não apresentam a língua de sinais como possibilidade de enunciação, limitando as produções sociais e linguísticas da criança surda, pela língua oral. Aposta na língua de sinais como potência de comunicação para os surdos por não haver impedimentos orgânicos em sua aquisição.

 

2 Ao usarmos aqui o termo “ser especial” estamos não nos reportando ao senso comum, e sim, rigorosamente, ao que Agamben (2007) denomina como tal: o ser que pertence a uma espécie e, portanto, que deve ser tratado como qualquer um em sua singularidade e em suas formas de viver juntos. Nesse caso, o que importa é diferenciar esses modos de existências não para que sejam tratados distintamente dos demais, mas, sim, para que sejam tratados como quaisquer outros, em sua singularidade, resguardado o que têm em comum com os seus pares e também com os que dele diferem.

 

3 De acordo com Malabou (2014), o acidente dividiria a existência em duas, replicando um antes e um depois, jogando essa existência do sujeito a uma improvisação sem fim, sem um eu idêntico para se assegurar, num devir constante. O acidente, dessa perspectiva coloca à prova a plasticidade cerebral, ampliando a flexibilidade adaptativa do sujeito, ao mesmo tempo em que não se reduz ao efeito de uma causa genética, biológica, física ou bioquímica, já que para essa autora pode decorrer de um trauma psíquico decorrente de uma situação econômica ou de uma guerra, conferindo-lhe um sentido sociocultural mais amplo.

 

4 A autora apresenta a interpretação de que esse neurocientista vê na ética espinosana e em sua teoria do conatus precursores da neurobiologia, conferindo certa “unidade entre a constituição ontológica e a estrutura biológica do sujeito” (MALABOU, 2014, p. 23). Isso porque Damásio teria reconhecido que antes de atribuir um lugar fundamental ao organismo, Spinoza teria “inscrito os fenômenos biológicos, em particular as emoções, no próprio ser, ou seja, precisamente, no seio desse dado ontológico fundamental que é o conatus, a tendência de todo vivente a perseverar em seu ser” (MALABOU, 2014, p. 23). Para compreensão dessa tendência, Spinoza teria admito, segundo Damásio, a importância do papel exercido pelos afetos que modulam a intensidade do conatus e graduam a “fome de viver”, conforme os afetos alegres ou tristes, dependendo dos acontecimentos que atravessam nossas vidas e de como nos sentimentos em relação ao aumento ou a diminuição da potência suscitada em nossas ações. Nessa remissão, a teoria espinosana, teria concluído que a razão e a cognição não poderiam se desenvolver sem a sustentação dos afetos, pois “funções de alto nível como a linguagem, a memória, a razão e a atenção estariam associadas a processos emocionais” (MALABOU, 2014, p. 25).

 

5 Sobre o assunto, conferir o artigo de Feito Grande (2011).

 

Correspondência

Pedro Angelo Pagni Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Filosofia e Ciências Campus de Marília, Departamento de Administração e Supervisão Escolar, Av. Hygino Muzzi Filho, n. 737, Marília, São Paulo – Brasil. CEP: 17525-900

 

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