http://dx.doi.org/10.5902/1984686X33142
A cultura da corpolatria na pós modernidade e o
deficiente físico: uma reflexão acerca dessa lógica binária
The culture of corpolatry in post modernity and the physical handicap: a
reflection on this binary logic
La cultura de la corolatría en la posmodernidad y el
deficiente físico: una reflexión acerca de esa lógica binaria
* Fabricio
de Paula Santos
Mestre
pela Universidade (FUMEC), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
fabricio_fps@yahoo.com.br
** Juliana
Pontes Ribeiro
Doutora
pela Universidade federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais,
Brasil.
fabricio_fps@yahoo.com.br
Recebido em 17 de junho de 2018
Aprovado em 16 de outubro de 2018
Publicado em 06 de maio de 2019
RESUMO
O presente ensaio tem como foco temático analisar como o
corpo é realçado na pós modernidade, através da corpolatria, e como o corpo do
deficiente físico é desvalorizado ou não evidenciado neste contexto. Tem como
objetivo discutir como a corpolatria é fortemente influenciada e ditada pela
mídia, exacerbando o narcisismo e colocando a forma física bela e referencial
em evidência. Reflete acerca da lógica binária entre o culto ao corpo e as pessoas
com deficiência física que se encontram fora dos padrões do corpo perfeito ou
referencial, preestabelecido pela sociedade. Discute como os estereótipos são
criados culturalmente e como eles influenciam de forma negativa ou pejorativa
nas minorias sociais. Faremos a teorização dos problemas enfrentados por esta
minoria social, tendo como base os teóricos dos estudos culturais. Por fim,
evidencia como o corpo se torna um importante objeto que apresenta ou
representa os indivíduos nas relações sociais a partir do outro.
Palavras-chave: Corpolatria;
Corpo; Deficiência.
ABSTRACT
The present essay focuses on how
the body is emphasized in postmodernity through colorpolatry, and how the body
of the physically handicapped is devalued or not evidenced in this context. Its
purpose is to discuss how colorpollation is strongly influenced and dictated by
the media, exacerbating narcissism and placing the beautiful and referential physical
form in evidence. It reflects on the binary logic between body worship and
people with physical disabilities that are outside the standards of the perfect
or referential body, pre-established by society. It discusses how stereotypes
are culturally created and how they influence negatively or pejoratively in
social minorities. We will theorize the problems faced by this social minority,
based on cultural studies theorists. Finally, it shows how the body becomes an
important object that presents or represents individuals in social relations
from the other.
Keywords: Corpolatria; Body; Disability.
RESUMEN
El presente ensayo tiene como foco temático
analizar cómo el cuerpo es realzado en la posmodernidad, a través de la
corolatría, y cómo el cuerpo del deficiente físico es desvalorizado o no
evidenciado en este contexto. Tiene como objetivo discutir cómo la corolatría
es fuertemente influenciada y dictada por los medios, exacerbando el narcisismo
y colocando la forma física bella y referencial en evidencia. Refleja sobre la
lógica binaria entre el culto al cuerpo y las personas con discapacidad física
que se encuentran fuera de los patrones del cuerpo perfecto o referencial,
preestablecido por la sociedad. Discuta cómo los estereotipos se crean culturalmente
y cómo influyen de forma negativa o peyorativa en las minorías sociales.
Haremos la teorización de los problemas enfrentados por esta minoría social,
teniendo como base los teóricos de los estudios culturales. Por último,
evidencia cómo el cuerpo se convierte en un importante objeto que presenta o
representa a los individuos en las relaciones sociales a partir del otro.
Palabras clave:
Altas habilidades / superdotación; Piaget; Noción de justicia; Educación.
Introdução
É muito comum vermos nas redes sociais
pessoas exibindo corpos cada vez mais magros, definidos e malhados através de
fotos e vídeos em academias de ginástica ou praticando alguma atividade física
ao ar livre. O que importa, neste contexto, é deixar o corpo em evidência e
divulgar aos amigos e/ou seguidores das redes sociais que todo o esforço para a
construção de uma imagem corporal desejada, vale a pena.
Por outro lado, tudo que não se remete ao
belo, ao eficiente e ao que a sociedade coloca como padrão de referência, está
cada vez mais longe dos holofotes e das mídias. Os corpos que estão na
contramão dessa lógica de beleza, influenciados pela corpolatria, são
representada pelos deficientes, obesos, magrelos, ou seja, pela alteridade.
O corpo na pós modernidade vem sendo
ressignificado de acordo com a cultura e valores (pré) estabelecidos
socialmente. Os padrões de beleza também vêm se transformando com o passar dos
tempos, assim, amparados no que nos diz Freire (1979) “A cultura consiste em
recriar e não em repetir”. Cada cultura, neste contexto, pode evidenciar o que
é belo ou o que é feio de acordo com suas características e seus valores
sociais. Segundo Transferetti (2008), Antropólogos, sociólogos, filósofos,
psicólogos e tantos outros profissionais têm se debruçado sobre a questão do
corpo. Os filósofos, particularmente, têm procurado estudar o corpo mostrando a
configuração de todo ser humano como um corpo que se comunica e se faz presente
no mundo. O ser humano possui e ao mesmo tempo é um corpo. Um corpo que se
comunica, que expressa, que ama, sendo através do corpo que, a princípio,
caracteriza nossa identidade.
Corpolatria: Panacéia da
sociedade pós moderna
O
fenômeno da busca incessante pela melhor aparência estética ou pelo tipo físico
idealizado, também denominado de corpolatria, prioritariamente associado aos
praticantes de atividade física em academias, passou a ser um fenômeno sócio
cultural muitas vezes mais significativo para quem pratica do que a própria
satisfação econômica, afetiva ou profissional (NOVAES, 2001).
Entende-se
por corpolatria uma espécie de “patologia da pós modernidade” caracterizada
pela preocupação e pelos cuidados extremos com o próprio corpo (não no sentido
da saúde), mas particularmente com no sentido narcisístico de sua aparência ou
embelezamento físico (SENNE, 1995). A preocupação com a beleza, neste contexto,
evidencia que é sempre um padrão externo ao desejo do indivíduo. O corpo parece
emergir então como uma panacéia para todos os males, o caminho para a
felicidade. Esse narcisismo atual em que as pessoas se preocupam em
apresentarem-se esteticamente aceitas e dentro de alguns padrões, reforça a
ideia da estetização, a partir da qual, busca-se a “perfeição” a todo custo.
Para
Baudrillard (1996), “A sedução narcísica vincula-se, a partir de então, ao
corpo ou a partes do corpo objetivados por uma técnica, por objetos, por
gestos, por um jogo de marcas e de signos”. Podemos considerar que o corpo
representa muitos valores e significados. Em outras palavras, o corpo ocupa um
valor social importante na atualidade, em que esforços não são medidos para
serem aceitos e valorizados.
Santos
(1990), afirma que a corpolatria é uma expressão, a qual permite limitar o
corpo numa condição de valor de uso e de valor de troca, em que “investir” no
corpo é majorar o seu valor de troca, é colocá-lo em melhores condições para a
aferição de lucros no mercado de bens simbólicos. Buscou-se a compreensão das
questões da estética e da saúde nas academias a partir de um critério subjetivo
de estética, ou melhor, de acordo com o velho adágio segundo o qual a beleza
está nos olhos do observador (NOVAES, 2001). Segundo Fernandes (2005),
O corpo está em alta! Alta
cotação, alta produção, alto investimento...alta frustração. Alvo do ideal de
completude e perfeição, veiculado na pós modernidade, o corpo parece servir de
forma privilegiada, por intermédio da valorização da magreza, da boa forma e da
saúde perfeita, como estandarte de uma época marcada pela linearidade
anestesiada dos ideais (FERNANDES, 2005, p.15).
Nesta linha de constatações, Novaes (2001),
diz que “o senso de beleza é um traço universal da natureza humana. Ele é
encontrado em todos os povos, todas as culturas, todas as épocas”. Entretanto,
Feijó (1992) esclarece que apesar deste conceito de beleza ser universal, o
conteúdo daquilo considerado belo é relativo aos padrões de cada indivíduo,
cada comunidade, cada época.
A mídia e a
espetacularização do corpo
A mídia tem grande influência neste sentido,
expondo em revistas, programas de tv e outros meios de comunicação, corpos cada
vez mais magros e definidos, seduzindo e instigando as pessoas a entrarem nesta
ditadura da beleza pós-moderna. Não podemos deixar de citar as redes sociais e
mídias digitais, pois o “selfie” é um poderoso recurso de consolidação desses
padrões no cotidiano. Deve-se levar em consideração também, os perfis das
pessoas dedicadas às questões estéticas do corpo. Em relação à publicidade do
corpo idealizado para Neto (2010), o processo é o mesmo.
O ser humano procura adquirir tudo o que as
propagandas colocam como objetos de satisfação pessoal. Os corpos se
transformam em busca de satisfação, o que na grande maioria das vezes, pode
gerar angústia, pois as propagandas estão servindo aos interesses do sistema
capitalista daquele momento.
Quanto mais a vida social
se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas
viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação
globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas
– de tempos, lugares, historias e tradições específicos e parecem “flutuar
livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada
qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós)
dentre as quais parece possível fazer uma melhor escolha (HALL, 2006, p.75).
A
percepção do corpo passa a ser dominada pelas imagens reproduzidas pela mídia.
Nas redes sociais surgem sujeitos comuns, reproduzindo ou contestando (com
humor ou não) esses padrões estéticos. Através dessa idolatria corporal, as
redes sociais “tiram de cena” as pessoas que não querem ou não alcançam esse
“modelo” estético.
Para
Campos (2010), no contexto atual, as pessoas estão sofrendo psiquicamente por
não se encontrarem nos padrões de beleza que a mídia nos impõe, por falta de
condições financeiras para as práticas corporais modificadoras, ou por não
conseguirem atingir este padrão, sentem-se excluídas, marginalizadas,
ridicularizadas. Fazendo uma análise neste contexto de ridicularização ao que
se opõe ao modelo padrão estético, observamos como as pessoas obesas, idosas e
deficientes muitas vezes são expostas nos programas de TV de forma pejorativa
ou como um modelo a não ser seguido. Diante da forte influência midiática,
especificamente, nas relações do corpo com a estética, as pessoas buscam a todo
custo uma forma de corpo semelhante ao que a mídia coloca como referência,
sendo uma busca incessante a este corpo padronizado.
A percepção do corpo em
geral e do próprio corpo em particular fica assim dominada pelas telas das
imagens encenadas. Os videoclipes, as publicidades, as bancas de revistas
destituem de sentindo não apenas todas as aparências que não se enquadram nos
seus moldes, mas, mais do que isso, todos aqueles que ficam na sombra, às
margens das luzes gloriosas do exibicionismo (SANTAELLA, 2004, p.131).
Sant’Anna (2001), coloca que na luta por
alcançar pelo menos uma réstea de luz, a corrida rumo à juventude e à perfeição
teleguiada “é hoje uma maratona que alcança jovens e idosos de diversas classes
sociais, mas esses não conseguem ver o pódio, pois se trata de uma corrida
infinita”.É notório observar, principalmente em redes sociais, que este
fenômeno da corpolatria faz com que as pessoas percam o bom-senso e o cuidado
com a saúde para priorizar a estética e ser aceito socialmente por uma cultura
que delimita/modela um corpo padrão. Mesmo que para isso, tenham que fazer uso
exacerbado de medicamentos, cirurgias plásticas, dietas, dentre outros
procedimentos estéticos que retardam o processo natural do ser humano, o
envelhecimento. Esse “ritual” de penitência através de jejuns prolongados e o
sacrifício nas academias, faz-se uma analogia do corpo com a religião, em que:
Na religião, milagre,
exige sacrifício, e a corpolatria não pode deixar por menos; se quiser alcançar
a graça pretendida, você terá que se submeter a PENITÊNCIAS: suar horas
seguidas diante do espelho, estirar os músculos sem gemer de dor, emplastar os
cabelos com vaselina colorida e continuar sorrindo, mastigar 100 vez (nunca 99
ou 101) um arroz duro e insosso, jejuar etc. Basta, pois nem os cristãos são de
ferro (SENNE, 1995, p.12)
Neste
contexto, foram criados "modelos" de referência quase inatingíveis,
pois o corpo "vendido" passa distante da realidade da maioria. Esse novo discurso de corpo do sujeito pós-moderno
revela também uma relação direta na perspectiva do poder, que a modernidade é
ainda, segundo Foucault (1988), um tempo histórico no qual predomina o
exercício de um biopoder articulado numa multiplicidade de práticas “positivas”
de poder incidindo sobre a vida, tomando os corpos dos indivíduos como alvos e
pontos de aplicação, investindo-os e produzindo-os conforme uma ordem moral,
social, política, produtiva e normativa capitalista-burguesa. Notamos assim,
que o sujeito da pós modernidade, assume, dentro da perspectiva do corpo
historicamente construído, uma posição de “status”, orgulho e emponderamento
que o corpo belo e referencial lhe proporciona.
Deve-se
levar em consideração também que o corpo tornou-se um produto capital e
consumista, estabelecido pela sociedade como um produto. Na menção de Peres
(2009) a imagem da corporeidade de nossa cultura racionalizada, cientifizada e
industrializada, reduz o corpo a um objeto de uso em conformidade com os
interesses econômicos, políticos e ideológicos de outros grupos ou classes
sociais, fazendo com que o corpo se torne uma ferramenta de produção, que
traria lucro e crescimento econômico ao meio no qual está inserido. Percebe-se
assim que o corpo, ao longo dos anos, vem sendo vivido, percebido e
interpretado pelas mais diversas técnicas e formas de controle, incorporando-se
dentro dos mais variados meios de produção e consumo. São estas técnicas e
formas de controle que Foucault (2001) chamou de tecnologias políticas do
corpo.
Em
consonância ao corpo como produto capitalista, nunca se investiu tanto em
alimentação saudável, suplementação e uso indiscriminado de esteroides
anabolizantes que são comuns no mundo fitness. Segundo Trasferretti (2008), a
questão do corpo na sociedade capitalista está profundamente marcada pela
cultura pós-moderna, que valoriza o corpo enquanto individualidade, capacidade
de decisão, autonomia, liberdade, mas ao mesmo tempo produto cultural. Ou seja,
essa cultura transitória pode ser derrubada ou modificada a qualquer momento. O
que deve ser observado neste sentido seria como a idolatria exagerada ao corpo,
principalmente das pessoas que ditam as regras dos padrões estéticos,
fortemente marcado nas redes sociais e mídia, incentivam estratégias de
emagrecimento e dietas milagrosas para todas as pessoas. Desconsideram a
individualidade biológica, os limites e as particularidades acometidas a todos
os indivíduos, ou seja, vai no caminho inverso da preocupação com a saúde.
Para
ilustrar o quanto a indústria cultural brasileira tem se alinhado a esse modelo
capitalista, poderíamos nos reportar ao tão difuso exemplo das revistas
femininas, divulgadas amplamente e que atraem a atenção das mulheres de classe
média alta e baixa, propondo indistintamente parâmetros de vida e beleza que
são próprios das classes superiores. Devido a isso, os ideais que são propostos
nessas revistas, se apresentam como modelos a serem seguidos
(TRASFERETTI,2008). Esta lógica corporal estética provoca um paradoxo cultural
acerca do deficiente físico que está fora dos referidos padrões impostos
socialmente, excluindo-os deste contexto.
Ou seja,
os deficientes físicos cadeirantes, amputados, ou com múltiplas deficiências,
não atendem aos anseios desta sociedade marcada pela eficiência. O Homem possui
um corpo com duas dimensões: uma orgânica e outra inorgânica. Sendo assim,
acreditamos que o corpo orgânico é o meio direto de vida do ser humano, o
objeto material e instrumento da sua atividade vital (MARX; ENGELS, 1971). Em
outras palavras, considera-se que é através do corpo que manifestamos as marcas
que nos posicionam socialmente: forte/fraco, branco/negro,
eficiente/deficiente. É através do corpo também que criamos relações consigo
mesmo, com o outro e com o mundo. Se tratando do corpo humano como meio de
interação, Mendes (2004), afirma que:
O corpo é sempre outra coisa que
aquilo que ele é [...] enraizado na natureza no próprio momento em que se
transforma pela cultura, nunca fechado em si mesmo e nunca ultrapassado. Quer
se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de
conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o
drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo,
exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu
corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total.
Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que
destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o
pensamento do corpo ou o corpo em idéia, e não a experiência do corpo ou o
corpo em realidade (MENDES, 2004, p.32).
Neste contexto, observamos que o corpo é
parte determinante nas relações sociais e como ele se estabelece. Ao pensarmos
sobre a lógica binária, em que classificamos as pessoas e através dessa classificação
criamos uma imagem/conceito sobre tudo e todos, o eu eficiente está acima ou
melhor classificado socialmente comparado a deficiente ao cadeirante, por exemplo.
O corpo deficiente e sua
representação social
Desde a antiguidade o corpo já assumia um
papel representativo nas sociedades. Na Idade média o corpo era atrelado a teia
simbólica construída pela igreja católica sendo ao mesmo tempo divino, santo,
quanto profano e pecaminoso. No período renascentista, a concepção de corpo se
difere da anterior, apropriando-se do imaginário do homem, passando a significar
algo belo e perfeito, especialmente no que diz respeito às artes. Aos poucos
uma visão mais ampla do corpo vai se estabelecendo, abrindo caminho nos avanços
dos estudos de anatomia e fisiologia. O corpo nas artes contemporâneas já não é
mais visto como perfeito mas, um corpo vivido através de suas formas e
desformas, assumindo assim a complexidade do homem (MAROUN; VIEIRA, 2008).
Sendo o deficiente físico considerado como
minoria social comparado a um discurso que exalta um povo, uma raça e os
valores que são repassados de geração em geração, tudo que não está presente
nessa narrativa passa a ser desconstruído, repudiado e mal visto socialmente.
Com isso, temos a criação de estereótipos que fixam uma ideia negativa e/ou
pejorativa a respeito do outro, do que não está classificado e pautado dentro
dos padrões sociais preestabelecidos. Bhabha (2005), discute essa questão
através do estereótipo que é uma articulação social da diferença, da perspectiva
da minoria, sendo uma negociação complexa em andamento, que procura conferir
uma autoridade aos hibridismos culturais. Os embates de fronteira acerca da
diferença cultural tem tanta possibilidade de serem consensuais quanto
conflituosos, podem confundir nossas definições de tradição e modernidade,
realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o
baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e
progresso.
Assim,
qual é o diferencial de um estereótipo? Estes se apossam das poucas
características “simples, vívidas, memoráveis, facilmente compreendidas e
amplamente reconhecidas sobre uma pessoa; tudo sobre ela é reduzido a esses
traços, que são, depois, exagerados e simplificados. Então, o primeiro ponto é
que a estereotipagem reduz, essencializa, naturaliza e fixa a “diferença”
(HALL, 2016, p. 191)
Os estudos culturais apresentam uma gama de
discussões acerca de alguns valores socialmente construídos, fortemente
marcados pela discussão das minorias sociais, quebrando alguns paradigmas e
regras sociais preestabelecidas. Essa desconstrução dos valores sociais permite
que as ideias e concepções acerca destes assuntos sejam questionadas e
repensadas, dando voz e espaço a essas minorias e reforçando o hibridismo
cultural. No discurso do estereótipo e no campo das diferenças, vale ressaltar
o distanciamento entre os corpos midiáticos, produtos do cinema, dos
video-clips, dos quadrinhos e os monstros corporais reais, que, no contexto da
corpolatria, não são outros senão os obesos e os deficientes.
A representação de um corpo multilado,
deficiente ou um corpo fragmentado, sofreu grandes influências no processo
histórico e cultural, em que sua espetacularização pela horror ou aberração foi
evidenciada. Conforme Courtine (2008, p.226) os freaks shows no final do século
XIX e início do século XX, na Europa e nos Estados Unidos, foram exemplos desta
cultura voyerística, quando afirma que “a teratologia constituiu avanço crucial
no conhecimento do ser vivo, pelo fato de ter mostrado pertencerem à espécie
humana certas formas de vida que pareciam manifestar diante dela a mais
irredutível alteridade”. Portanto, os freaks-shows apresentavam corpos
deformados como forma de divertimento, evidenciando, naquela época, como o
corpo classifica e impõe o deficiente físico como minoria na sociedade. Andrade
(2017) ressalta que o corpo freak trata-se de um corpo que irreconhecido,
renegado e incompleto, que não cabe nos ideais da modernidade impostos por uma
lógica de cultura capitalista ordenada por um padrão ainda vitruviano, por uma
perfeição física. A história dessas aberrações, desses monstros, que foram
denominadas como freaks, traz para ideia da alteridade no corpo.
Segundo Mendes (2012), o corpo considerado
diferente em demasia era ridicularizado e utilizado como espaço preferencial de
chacota e comédia sobre a vida pública e privada, funcionando como uma espécie
de anestésico social. Neste contexto o corpo deficiente tinha sinônimo de
monstruosidade, como pontua Foucault (2000), “o monstro humano combina o
impossível e o interdito”. Ou seja, os deficientes ou pessoas com alguma
anomalia, na sua representação social, seriam e deveriam ser negados e
excluídos. Segundo Fontes (2006), o corpo dissonante, exemplarmente ilustrado
pelo corpo de pessoas deficientes físicas, só é atrativo e consumível (nos
circos, por exemplo) na cultura de massa quando apresentado sob a configuração
de espetáculo ou denúncia. Quando naturalizado e exibido sem artifícios,
reduz-se a objeto causador de estranhamento e rejeição, por representar a
negação ameaçadora do desejo de sedução e aceitação. Cohen, citado por Fontes
(2006), discorre sobre a ideia da monstruosidade e relata:
Nós vemos o monstruoso espetáculo do filme de terror porque
sabemos que o cinema é um lugar temporário, que a vibrante sensualidade das imagens
de celulóide serão seguidas pela reentrada no mundo do conforto e da luz. Da
mesma forma, a história na página à nossa frente pode aterrorizar (pouco
importa se ela aparece na seção de notícia do jornal ou no último livro de
Stephen King), desde que estejamos seguros por sabermos de seu fim próximo - o
número de páginas em nossa mão direita está diminuindo — e de que logo
estaremos livres dela (COHEN apud FONTES, 2006, p.130).
Já na pós modernidade esta analogia do corpo
deficiente como forma espetacular ao horror foi questionada e repensada, mas
ainda sim, vai à contramão dos adeptos a corpolatria, que em larga escala,
constrói a nossa identidade exterior. De acordo com Fontes (2006), o corpo sem
autonomia, limitado em sua capacidade de deslocamento e, por que não dizer, de
encenação estética (vale ressaltar aqui que não nos referimos ao corpo doente,
enfermo, mas apenas do ao corpo desprovido de uma função, um corpo limitado fisicamente),
passa pelo mundo silenciosamente, praticamente invisível aos olhos sociais.
Considerações Finais
O culto
exagerado ao corpo, como uma forma de representação social, faz com que os
padrões de corpo preestabelecidos socialmente e culturalmente, fiquem cada vez
mais em evidência. A mídia configura-se como uma das principais instituições
que exerce forte influência nas construções identitárias, sendo responsável
pela transmissão de grande parte de valores e padrões de conduta através dos
mais diversos veículos de comunicação. Portanto, em uma sociedade que idealiza
o corpo perfeito como referencial, faz com que o uso desta norma social como um
ponto de ancoragem para a formação de autoconceitos, provavelmente este fator
da valorização exagerada ao corpo belo tenha um impacto negativo nas pessoas
com deficiência.
Enquanto estamos
passando por um momento em que as pessoas não se permitem envelhecer, que a
cobrança por um corpo magro, definido ou malhado produz pessoas com
comportamentos obsessivos que movem um mercado milionário de cosméticos e
produtos que retardam o processo de envelhecimento, os deficientes físicos e
obesos estão na contramão desses valores. Neste contexto cultural do corpo
soberano, o deficiente físico fica fora deste ambiente, pois seu corpo é
silenciado pelos olhos sociais e midiáticos. Neste caso, fica claro que a mídia
esconde a presença desse corpo “feio” ou “deformado” em nossa vida, sendo este
“outro” escondido através dos processos cirúrgicos, dietas ou remédios. O
deficiente, nesta situação, seria como símbolo vivo de fracasso, fragilidade e
discriminação; um contraponto à normalidade; uma figura cuja própria humanidade
questiona.
O corpo tem um
papel fundamental na construção da identidade do sujeito, nele são impressos
hábitos, valores, modelos e maneiras coletivas relacionadas a sua cultura.
Sendo assim, principalmente para aqueles que apresentam algum tipo de
deficiência física e que historicamente já carregam estereótipos que conotam
uma imagem diferente por causa de suas deficiências, a construção de sua
identidade social fica, na maioria das vezes, nas extremidades pejorativas.
Conclui-se,
portanto, que há uma necessidade de repensarmos algumas questões sobre essa
temática. Refletir sobre a representação do deficiente na sociedade e como ela
se configura nos dias atuais. Alguns questionamentos devem ser levantados,
como: Como pensarmos o corpo deficiente perante a lógica da eficiência imposta
socialmente? Até quando o corpo deficiente ficará invisível aos olhos
sociedade?
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Correspondência
Fabricio de Paula Santos – Universidade
FUMEC. Rua: R. Cobre, 200 - Cruzeiro, Belo Horizonte. CEP: 30310-190. Belo
Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Revista Educação
Especial | v. 32 | 2019 – Santa Maria
Disponível em:
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