http://dx.doi.org/10.5902/1984686X33087
A educação de surdos e cegos na França e no Brasil
The education of the deaf and blind in France and Brazil
La educación de sordos y
ciegos en Francia y en Brasil
* Roberta
Baessa Estimado
Graduação
pela Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.
roberuta@gmail.com
– http://orcid.org/0000-0003-1016-0983
** Cássia
Geciauskas Sofiato
Doutora
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil.
cassiasofiato@gmail.com
–http://orcid.org/0000-0001-5291-9658
Recebido em 03 de março de 2018
Aprovado em 05 de fevereiro de 2019
Publicado em 06 de maio de 2019
RESUMO
A discussão sobre a trajetória histórica da educação de
surdos e cegos no Brasil ainda é necessária, tendo em vista que o discurso que
os transformou em sujeitos passivos que teriam sido agraciados pela
benevolência de “grandes homens” ainda ecoa nos dias atuais. Nesse sentido, a
presente pesquisa objetiva apresentar o contexto do surgimento da educação de
surdos e cegos na França no século XVIII e no Brasil do século XIX e delinear
os impactos que a educação francesa de surdos e cegos provocou na educação brasileira
para tal público alvo. O recorte temporal estabelecido para o estudo foi de
1760 a 1890 na França e de 1854 a 1890 no Brasil. Para tanto, foi realizada uma
pesquisa bibliográfica e documental. Por meio da investigação concluímos que os
procedimentos estabelecidos na França, referentes à educação de surdos e cegos
nas primeiras instituições educacionais destinadas a tal público, impactaram
significativamente o Brasil nos aspectos administrativo, de gestão e
principalmente no que tange ao trabalho pedagógico desenvolvido no período em
questão.
Palavras-chave: Educação
de surdos; Educação de cegos; Educação Especial
ABSTRACT
The discussion about the
historical trajectory of the education of the deaf and blind in Brazil is still
necessary, since the discourse that transformed them into passive person who
would have been graced by the benevolence of "good men" still currently
echoes. In this sense, this research aims at presenting the context where the
education for deaf and blind people started in France, in the 18th century, and
in Brazil, in the 19th century. It will also define the impacts the French
education for deaf and blind people caused in the Brazilian education for the
same target audience. The period established for the study is from 1760 to 1890
in France and from 1854 to 1890 in Brazil. In order to do so, a bibliographical
and documental research (GIL, 2002) was carried out. Through the investigation,
we concluded that the procedures established in France for the education of
deaf and blind people in the first educational institutions target at such
audience has caused a significant impact in the administrative, managerial and,
mainly, pedagogical aspects of the work developed at that time in Brazil.
Keywords: Education of the deaf; education
of the blind; special education.
RESUMEN
La discusión acerca de la trayectoria
histórica de la educación de sordos y ciegos en Brasil es aun necesaria, puesto
que el discurso que los transformó en sujetos pasivos que fueran agraciados por
la benevolencia de los “grandes hombres” sigue resonando en nuestros días. En
este sentido, la presente investigación objetiva presentar el contexto des
surgimiento de la educación de sordos y ciegos en la Francia del siglo XVIII y
en Brasil del siglo XIX, e delinear los impactos que la educación francesa de
sordos y ciegos provocó en la educación brasileña para los mismos. El recorte
temporal establecido para el estudio fue desde 1760 hasta 1890 en Francia y
desde 1854 hasta 1890 en Brasil. Para eso, fue realizada una investigación
bibliográfica y documental. Con la investigación concluimos que los
procedimientos establecidos en Francia, referentes à la educación de sordos y
ciegos en las primeras instituciones educacionales destinadas à este público,
impactaran considerablemente el Brasil en los aspectos administrativo, de
gestión y sobre todo en lo que respecta al trabajo pedagógico desarrollado en
este período.
Palabras clave:
Educación de sordos; Educación de ciegos; Educación Especial.
Introdução
No âmbito do Brasil, vários
autores empreenderam pesquisas sobre a educação de surdos e cegos, considerando
o século XIX como um marco de referência, a saber: Mazzotta (2001), Zannuzi
(2004), Soares (1999), Reily (2004), Rocha (2007), Sofiato (2011), entre
outros. Nesse sentido, muitos processos históricos foram analisados, mas o
campo tem se mostrado muito propício para novas investigações, frente à
possibilidade de outras análises a partir da explanação de temas distintos com
o uso de fontes primárias. A menção à França, no processo de surgimento das
instituições brasileiras em alguns estudos aparece, entretanto, se faz
necessário aprofundar essa relação, dada a importância histórica presente nesse
contexto.
Este estudo objetiva
apresentar o contexto do surgimento da educação de surdos e cegos na França no
século XVIII e no Brasil do século XIX e delinear os impactos que a educação
francesa de surdos e cegos provocou na educação brasileira para tal público
alvo. O recorte temporal estabelecido para a abordagem das trajetórias foi de
1760 a 1890 na França e de 1854 a 1890 no Brasil, períodos em que se
instituíram as fundações e as primeiras gestões. Tal recorte foi estabelecido
em função da variedade de fontes selecionadas para o estudo e sua correlação com
os objetivos da pesquisa em questão.
Para tanto, a realização
desta pesquisa foi orientada, a grosso modo, pela leitura, análise e
confrontação do corpus documental
selecionado, após um longo trabalho de levantamento e coleta das fontes. O seu
conjunto é de grande riqueza, tanto por sua periodicidade, pois recobre, tanto
no Brasil quanto na França, praticamente todo o período estudado com alguma
regularidade, quanto por sua diversidade, apesar de se tratar, sobretudo, de
fontes oficiais, a variedade de aspectos da instituição tratados pela
documentação é bastante múltipla.
Com efeito, ao refletir
sobre as possibilidades de uma história da educação comparada, trabalhamos as
escolas de surdos e cegos francesas debruçando-se, especialmente, em algumas
similitudes, estabelecendo um terreno comum de análise, sem deixar de
reconhecer as singularidades construídas historicamente por cada um destes
institutos (VIDAL, 2001). Entendendo que as fronteiras estão postas por limites
epistemológicos muito mais do que pela própria geografia, o historiador deve
aceitar o desafio de construir comparáveis (DETIENNE, 2004).
Assim, no processo de
reinterpretação da história, almejou-se, com base na análise da documentação
levantada e enfrentando o árduo desafio da comparação, somar aos trabalhos já
produzidos sobre a temática até o presente momento, valorizando as conexões dos
processos de institucionalização escolar para surdos e cegos no Brasil e na
França, além de vislumbrar novos horizontes e questionamentos para a continuidade
dos estudos sobre a história da Educação Especial em ambos os países.
O Instituto Nacional de Surdos-Mudos de
Paris (1760 a 1890)
Até o
século XVIII, ensinar os surdos a falar, ler e escrever parecia unanimemente
complexo: são poucas as experiências de educar surdos anteriores ao final do
período medieval que tiveram seus registros encontrados. Com efeito, os
consagrados “pioneiros” na instrução de surdos eram, sobretudo, preceptores de
crianças de famílias ricas das principais sociedades europeias, que realizavam
um ensino individualizado, baseado na educação pela palavra. Desse modo, o
suposto encontro fortuito do abade Charles-Michel de l’Épée com duas gêmeas
surdas teria sido o responsável por uma inversão na abordagem realizada por
estes preceptores até aquele momento.
O
Instituto Nacional de Surdos Mudos de Paris tem seu embrião em 1760, a partir
do trabalho iniciado pelo abade Charles-Michel de L’Epée, na sociedade
parisiense da segunda metade do século XVIII. As informações sobre o abade são
raras e, em sua maioria, controversas. Sabe-se que ele nasceu na cidade de
Versalhes no ano de 1712. Seu pai, Charles François Lespée era arquiteto do rei
e sua mãe, Marguerite Varignon, era filha de um grande empreiteiro, ligado
oficialmente à construção dos edifícios do rei Luís XIV. Nesse sentido, seu
lugar social fica evidenciado: um dos filhos de uma família burguesa
tradicional do século XVIII, estudou teologia e direito e decidiu seguir o
caminho religioso (BÉZAGU-DELUY, 1990). L’Épée tinha, na data de criação de sua
escola, 50 anos, uma carreira eclesiástica modesta e bastante conturbada, além
de uma fortuna pessoal considerável. Com efeito, o abade era uma figura de
destaque na sociedade parisiense da época, um homem ilustrado.
Assim, em
1771, com seus próprios meios, fundou a Instituição Nacional de Surdos-Mudos de
Paris, na sua própria casa, localizada a rua des Moulins, recebendo as crianças
pobres em regime de internato (BERNARD, 2014). A chave matriz para o sucesso e
o reconhecimento internacional do trabalho desenvolvido por L’Épée com os
surdos está nos chamados por ele exercícios públicos dos surdos e mudos.
Tratava-se de demonstrações que ele organizava com seus melhores alunos,
visando impressionar possíveis espectadores afortunados que pudessem se
interessar em financiar a educação dessas crianças e promover a publicidade do
abade e o reconhecimento de seu método de ensino. Para isto, ele mesmo
convidava muitos espectadores célebres, fossem franceses ou estrangeiros,
notadamente duques, embaixadores, eclesiásticos, entre outros, que enchiam a
sala de lições durante as duas horas de demonstração (L’ÉPÉE, 1776). Estes
exercícios teriam assumido um papel central no desenvolvimento da educação de
surdos pelo mundo, que passaria a se desenvolver rapidamente a partir dali.
Isso porque representantes de diversas nações passariam, a partir das aulas de
L’Épée, a entrar em contato com essa nova possibilidade para instruir as
crianças surdas.
Ademais,
teria sido justamente com essa divulgação de seu trabalho na corte francesa que
ele teria conseguido um espaço no Convento dos Celestinos, juntamente com uma
pensão real, para criar sua própria escola de surdos. Quando ele morreu, em
1789, vários de seus alunos já se distinguiam na sociedade parisiense. Com efeito,
a Assembleia Constituinte reconheceu, em 1791, a importância de sua obra,
elevando a escola à categoria de Instituto Nacional, o que a tornaria a
primeira escola oficial para surdos no mundo todo. L’Epée foi substituído, após
a sua morte, pelo abade Roch-Ambroise Cucurron Sicard, que já havia fundado,
anos antes, a escola de surdos de Bordéus. O desejo expresso de L’Épée era que
a direção do Instituto fosse assumida por seu aluno mais próximo, Jean Masse,
entretanto, o abade Sicard ganhou o concurso realizado entre os interessados
pelo cargo e acabou ficando à frente do instituto até 1822, quando faleceu.
Sicard era uma figura controversa,
proclamava-se monarquista e, por isso, foi conduzido em 1793 ao tribunal
revolucionário e só conseguiu escapar da guilhotina com os relatos de seus
alunos sobre suas ações de beneficência com a educação de surdos (BUTON, 1999).
Além disso, teria sido o grande responsável pela descontinuidade do método do
abade de L’Épée, que seria retomado somente na gestão de Périer, passando por
novos períodos de descontinuidades nas gestões seguintes. Assim, no período que
compreende a saída de Sicard (1822) e o início da administração de Léopold
Ernest Javel (1885), isto é, em pouco mais de 60 anos, o instituto teve nove
diretores, que refletiam, sobretudo, a instabilidade política do país ao longo
do século.
No
período que compreende a fundação do instituto e a saída do abade Borel
(1771-1831), vislumbrando uma tendência ligada à ideia de que a educação de
surdos deveria ser confiada aos religiosos perpetuada por meio da lógica de
caridade intrínseca ao processo de criação da escola, todos os diretores da
instituição foram abades. Ora, não estamos dizendo com isto que o caráter
beneficente atribuído ao instituto em sua criação tenha sido um determinante ao
longo de toda a sua trajetória, mas sim ressaltando que a concepção da educação
de surdos como caridade permaneceu ainda em boa parte do século XIX,
evidenciada aqui na escolha dos diretores.
Com a
restauração e a Monarquia de Julho (1830-1848), a alta burguesia francesa ganha
proeminência em detrimento da antiga ideia do direito divino dos monarcas,
fazendo com que a Igreja imbricasse em um processo contínuo de perda de poder
naquela sociedade. Isso significaria, para o Instituto, um período que
percorreria todo o restante do século XIX em que os instituidores passariam a
ser homens da administração, fossem antigos diretores de liceus, prefeitos ou
funcionários gerais do Ministério do Interior. Assim, as antigas referências de
pioneirismo a L’Épée e seu método gestual começam a perder espaço na primeira
administração não-religiosa: Désiré Ordinaire, que havia sido professor de
história natural da Faculdade de Ciências de Besançon, tenta, como uma de suas
primeiras medidas, generalizar o método oral no Instituto, que ele havia
observado nas escolas suíças.
A tensão
entre os métodos orais e os métodos gestuais vai perpassar toda a história da
instituição. Para o século XIX, o desfecho dessa disputa está expresso na
decisão do Congresso de Milão em 1880, em que se define a interdição da língua
de sinais como modo de ensino e de comunicação nas instituições escolares
(PRESNEAU, 2009, p. 221). Assim, o instituto passaria por uma descaracterização
da ideia inicial do abade de L’Épée: de instruir os surdos a partir dos sinais
metódicos, de modo simultâneo. O Instituto Nacional dos Surdos-Mudos se tornou,
nas últimas décadas do XIX, mais uma escola oralista, renegando a trajetória
que outrora lhe dera vida.
O Instituto Nacional de Meninos Cegos de Paris (1760 a 1890)
O
Instituto Nacional dos Meninos Cegos de Paris tem sua origem com os trabalhos
de Valentin Haüy, em um processo bastante similar ao realizado por L’Épée. O
mito fundador de que Haüy teria encontrado próximo à Igreja
Saint-Germain-des-Près um jovem cego e, sensibilizado, começou a estudar
possibilidades para instruí-lo remonta diretamente à história de L’Épée com as
gêmeas surdas. Há ainda outras versões, como o dia em que ele teria visto uma
festa com cerca de dez cegos na feira de Saint-Ovide, em que os cegos emitiam
sons incoerentes dos instrumentos que tocavam. Emocionado e indignado com o
espetáculo, ele teria decidido ali que precisava ajudar os cegos a desenvolver
o toque e afinar o ouvido, valorizando seus outros sentidos para sair da
condição de ignorância em que eles se encontravam (GUILBEAU, 1907).
Contudo,
as cartas de Valentin Haüy estudadas por François Buton e Pierre Henri nos
relevam o aspecto central para a compreensão de seu interesse pelos cegos: Haüy
era um frequentador recorrente dos exercícios públicos dos surdos-mudos
realizados por L’Épée e não escondia o seu interesse pelo trabalho do abade.
Inferimos, com efeito, que o interesse de Haüy pela educação dos cegos teria
advindo, sobretudo, da constatação da notabilidade adquirida por L’Épée com seu
método.
Vale ressaltar aqui que estas duas
instituições se constituíram de iniciativas particulares, em que o instituidor
nasceria como uma figura fundamental para a compreensão do seu processo de
criação. O interesse em tornarem-se instituidores vinha, sobretudo, de almejar
pertencer a nebulosa rede de sociabilidade que se configurava entre os
filantropos e que, baseada no discurso de “amor à humanidade”, ligava boa
parcela dos homens notáveis da sociedade parisiense em relações políticas e
religiosas repletas de especificidades (DUPRAT, 1995). Nesse sentido,
entendemos que, tanto Charles Michel de L’Épée quanto Valentin Haüy tiveram
suas motivações conectadas a essa lógica de notabilidade dos filantropos e, com
efeito, no caso de Haüy, esse interesse fica evidente em seus relatos de
admiração sobre o trabalho de abbé de L’Épée (HENRI, 1984).
Ao
contrário de L’Épée, Valentin Haüy vinha de uma família pobre. Nascido em 1745
em Saint-Just-en-Chaussé, na Picardia, ele vai a Paris realizar seus estudos
clássicos, obtendo um desempenho de bastante destaque no estudo das línguas,
dominando cerca de 12 línguas. A sua vida esteve muito ligada à de seu irmão
mais velho, Réné-Just Haüy. Réné era um abade que adquiriu bastante
notabilidade social, não por seus trabalhos eclesiásticos, mas pelos estudos
que ele desenvolveu na mineralogia sobre a geometria dos cristais, sendo
considerado um dos fundadores da cristalografia. Assim, entendemos que a partir
admiração de Valentin pelos estudos seu irmão e, especialmente, pelo status
social que ele estava alcançando, suas pretensões estavam ligadas a um desejo
de inserção social entre os notáveis homens das luzes da sociedade parisiense.
(HENRI, 1984).
Valentin
se aproveita do lugar social de seu irmão para que seu projeto seja colocado em
prática. Réné era membro da Academia de Ciências e começaria a se aproximar da
Sociedade Filantrópica almejando fundos para o projeto de seu irmão.
Primeiramente, Valentin apresenta seu sistema de letras em relevo e seus
primeiros alunos para a própria Academia de Ciências e, com o apoio de Réné,
conquista uma pensão real para abrir uma escola com mais de 50 alunos. Ele
teria, a partir disso, reconhecimento por seu trabalho quando, no ano seguinte,
decide apresentar seus alunos ao rei no palácio de Versalhes, em uma tentativa
similar a dos exercícios públicos de L’Épée (GUILBEAU, 1907).
Se
o seu interesse era de inicialmente ensinar aos cegos a leitura, por meio de
seu método de letras em relevo, ele também se preocupava em ensinar ocupações a
eles, almejando uma possível emancipação por meio de trabalhos como o tricô,
cordoaria, produção de cintos e redes, entre outras atividades manuais
(GUILBEAU, 1907). Haüy escreveu e publicou uma obra intitulada Essai sur l’Éducation des Aveugles, com
intuito de apresentá-la à corte e ter seu instituto elevado à categoria de
Nacional. Entretanto, como a França estava às vésperas da revolução, seu plano
não se concretiza. Assim, anos depois, ele acaba negociando com a Assembleia
Constituinte um espaço no Convento dos Celestinos, onde já estava instalada a
Instituição Nacional dos Surdos-Mudos.
O
período em que surdos e cegos estiveram juntos no espaço do antigo Convento dos
Celestinos é estimado entre dois a três anos. Todavia, foi um tempo de grandes
conflitos e intensas disputas entre Haüy e Sicard visto que os dois dirigentes
tinham posições políticas divergentes no seio das perturbações revolucionárias
(BUTON, 1999, p. 99). Em 03 de abril de 1794, os surdos partem para se
instalarem no edifício à Rua Saint-Jacques e, após alguns meses, os cegos
também são transferidos, desta vez para o hospício “Catherinettes” (BUTON,
1999, p. 268-281).
Entre
os anos de 1795 e 1815, o instituto passa por uma grande reformulação de sua
ideia nacional: a Convenção determina que a ele aceitaria, a partir deste momento,
somente cegos que estivessem aptos a trabalhar, assumindo o caráter de um
ateliê (GUILBEAU, 1907). Entretanto, Haüy segue na direção da Instituição, o
que permite que ela não sofra uma alteração substancial nas práticas de ensino:
mesmo enfocando nos trabalhos manuais, o Instituto continua ensinando os cegos
a leitura e as aulas de música, por exemplo (DIDIER-WEYGAND, 2003, p. 270).
Alguns anos depois, o Instituto perderia o seu caráter inicial: Haüy é retirado
da direção e seus alunos seriam reunidos no hospício dos Quize-Vingts por uma determinação do Ministério do Interior. Assim,
ele teria perdido a sua função escolar, entrando em um período de declínio,
retomando sua concepção inicial somente anos depois, com a intervenção direta
de Napoleão. Na restauração das monarquias, Haüy reestabelece relações com a
coroa, conseguindo recuperar sua escola, fazendo com que o Instituto assumisse
o tão esperado título de “Nacional” (DIDIER-WEYGAND, 2003, p. 281).
Com
a volta dos Bourbons, ainda que a autonomia dos cegos tenha sido recuperada, a
escola passaria ainda por momentos de instabilidade. A direção foi assumida
pelo antigo médico do Instituto, Sébastien Guillé, que se limitava a prestar
contas de sua administração ao Ministério do Interior e a aplicar suas ideias
médicas na educação dos cegos. Ele passou cinco anos à frente da instituição,
sendo retirado pelo ministério após denúncias de negligência (HENRI, 1984, p.
159). Em 1821, o doutor Alexandre-Réné Pignier o sucede. Observamos aqui uma
tendência diferente à assumida na escola de surdos. Enquanto a concepção de
instituição escolar foi mantida durante toda a trajetória do Imperial Instituto
dos Surdos-Mudos, apesar de algumas descontinuidades, os cegos passaram um
longo período destinado à prática do trabalho.
Contudo,
Pignier decide receber Haüy com o objetivo de recuperar o projeto educativo do
instituto, o que ele tenta fazer ao longo de sua gestão. Assim, ele se esforça
para que os métodos para educar os cegos, sobretudo aqueles ligados à leitura e
escrita, retomassem seu espaço dentro da instituição (DIDIER-WEYGAND, 2003, p.
283). Concomitante a isto, os sistemas alternativos de escrita para os cegos
começavam a ser desenvolvidos no país. Naquele momento, o destaque estava para
o método de Barbier, em que existiam “combinações de sinais simples
representando as letras e os sons segundo um quadro predefinido que o aluno
deve decorar. Um dentre eles é um método de escrita de pontos” (DIDIER-WEYGAND,
2003, p. 539-540), que remetiam aos sons e às letras somente por meio da
combinação de pontos. Assim, ainda no ano de 1821, Barbier aceita introduzir o
seu método no Instituto, recuperando os métodos de aprendizagem que tinham
relevância no tempo de Haüy.
Neste
momento em que o método de Barbier começava a ser ministrado aos alunos, Louis
Braille, um deles, tinha a idade de 12 anos. Ele realizou uma profunda pesquisa
sobre o método de Barbier (HENRI, 1952, p. 36-37) e, aos 20 anos de idade, ele
publica seu alfabeto em pontos de relevo, suprimindo definitivamente o método
de Barbier e ganhando projeção internacional, sendo a forma mais aceita de
instruir os cegos à leitura e a escrita até os dias de hoje.
Em
1840, Joseph Guadet assume a direção do Instituto, na qual ele passaria os
trinta anos subsequentes. Historiador, ele publica uma das obras mais
conhecidas e reproduzidas no mundo sobre a história da Instituição, intitulada Institut des jeunes aveugles de Paris, son
histoire, e o conhecido jornal L’instituteur
des aveugles, que teria circulado pelas escolas de cegos de todo o mundo.
Guadet se utilizava do jornal para estabelecer relações com os institutos de
cegos por todo o mundo, visando promover a educação dos cegos em diversos
países a partir do exemplo parisiense (GUADET, 1849). Nesta época, o Instituto
conheceria um verdadeiro “progresso” na educação dos cegos com o
desenvolvimento do alfabeto Braille e a projeção dada por Guadet aos debates
sobre sua instrução, notadamente nos jornais que ele publicava. Assim, mesmo
com todas as instabilidades e os períodos de declínio, o Instituto Nacional dos
Meninos Cegos de Paris se tornaria uma referência mundial, bem como o Instituto
de Surdos-Mudos de Paris.
O Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854-1890)
O Imperial Instituto de Meninos Cegos,
fundado no Brasil em 1854, tem sua origem diretamente relacionada ao poder de
influência de Dr. José Francisco Xavier Sigaud, um dos médicos do Imperador D.
Pedro II. Sigaud era um reconhecido médico francês que veio ao Brasil em 1825,
fugindo da perseguição política antibonapartista. Seu interesse pela cegueira
não vinha somente do fato de ser médico, mas principalmente por ter uma filha
cega, Adèle Marie Louise Sigaud. Em busca de possibilidades de instrução para a
sua filha, Sigaud recebe notícias sobre a primeira escola especializada para
cegos criada em Paris e, em uma de suas viagens para a França, teria ido
conhecer o instituto.
Concomitante a isto, estudava no Instituto
Nacional dos Meninos Cegos de Paris o jovem cego brasileiro José Álvares de
Azevedo, que permaneceu na escola francesa durante seis anos ininterruptos
(entre 1844 e 1850), onde se formou com destacadas notas e premiações. Não
encontramos fontes que nos digam ao certo se Sigaud teria conhecido José
Álvares de Azevedo quando este estava estudando no Instituto Nacional dos
Meninos Cegos de Paris ou na própria cidade do Rio de Janeiro. Independente
disto, Azevedo passa a alfabetizar Adèle por meio do sistema Braille e eles
decidem, conjuntamente, encaminhar um projeto ao Imperador para a fundação de
uma escola para cegos baseada no instituto parisiense.
Com apoio de Couto Ferraz, que naquele
momento ocupava o cargo de Ministro dos Negócios do Império, o Imperador
decreta a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos do Rio de Janeiro em
12 de setembro de 1854. Junto ao decreto, vem anexo um regulamento provisório
para a instituição, que entraria em vigor naquele momento, sendo complementado
ao final do mesmo ano, por um segundo regimento interno provisório.
Segundo Zeni (2005), a justificativa para a
sua criação teria sido moral, no sentido de que a instrução deveria ser para
todos, e civilizacional, visto que vários países já tinham escolas
especializadas para cegos de acordo com o próprio Sigaud, em pouco mais de 140
instituições conhecidas. Além disso, as estatísticas de que os cegos no Rio de
Janeiro do início do Império totalizavam cerca de 148 foram um argumento
bastante relevante na aprovação da proposta.
O Instituto tinha, em seu primeiro regulamento,
aberto 30 vagas para alunos de ambos os sexos com idade máxima de admissão aos
12 anos e com comprovação médica de cegueira total. Além disso, os que não
trouxessem uma comprovação de pobreza deveriam pagar quatrocentos mil réis de
pensão anual. Assim, a necessidade de o ensino ser gratuito, devido a maior
parte de cegos serem pobres se contrapõe diretamente com a ideia de que a
instituição deveria onerar o mínimo possível os cofres do Império, impasse que
se resolve, em partes, com a limitação de apenas dez vagas para alunos que
comprovassem pobreza. É importante ressaltar ainda que os cegos escravos não
eram contemplados pelos benefícios da educação, uma vez que estes não eram
livres e, portanto, não seriam considerados cidadãos brasileiros.
Sendo a idade máxima de admissão dos alunos
12 anos, era passível que estes ficassem no instituto até os 22, visto que o
tempo máximo de permanência era de oito anos, prorrogáveis por mais dois, em
caso de não conclusão dos estudos até o momento limite. Os professores teriam
sido, primeiramente, trazidos de instituições já existentes na Europa. Os
alunos que se destacassem nos estudos eram “preferidos para o cargo de
repetidor que, no prazo de dois anos, passariam à condição de professor”. Além
disso, os repetidores também poderiam se tornar inspetores, aumentando as
possibilidades de permanência no instituto. Assim, o ensino no Instituto
Imperial de Meninos Cegos baseava-se no tripé música, trabalho e ciência, de
modo a incentivar que os alunos mantivessem sua vida dentro do Instituto, ao
invés de estimulá-los a garantir uma vida de forma independente.
Após a morte de José Francisco Xavier Sigaud,
em 1856, assume a administração o Dr. Cláudio Luiz da Costa, que permaneceria
no cargo até o ano de 1869. Cláudio Luís da Costa era um médico formado na
Escola Médico-Cirúrgica da Corte e, enquanto servidor público, teria sido
transferido para diversas províncias ao longo de sua carreira, vivendo uma vida
instável (ZENI, 2005, p. 170-171). De acordo com Zeni (2005), não existem
indícios de qualquer relação com os cegos antes de assumir a direção do
instituto. Assim, o historiador conclui que Cláudio Luiz da Costa havia sido
educado para pertencer as elites, vivenciava uma instabilidade em seu emprego,
além de alguns sérios problemas de saúde, visando um cargo mais estável.
Quando Cláudio Luiz assumiu a direção do
Instituto, teria encontrado uma série de irregularidades nas contas da
administração anterior. Nos relatórios do ministro dos negócios do Império
durante seu período à frente da instituição, ele sempre trouxe apontamentos
bastante elogiosos sobre boa administração que Cláudio realizava no instituto.
Em sua administração a disciplina teria se tornado mais rígida no instituto,
com maior controle de gastos no sentido de um esforço de economia. Com isso,
Cláudio Luiz fazia demandas constantes ao ministério acerca das verbas, e
decidiu criar um patrimônio próprio para o instituto com vistas à uma
verdadeira autonomia financeira, patrimônio este que se constituiria por meio
de doações. Desse modo, Cláudio Luiz teria administrado o instituto com foco na
disciplina e na ordem, contratando os funcionários necessários, negociando uma
nova casa para abrigar a instituição e mantendo ainda o regimento da época da
criação do instituto. Em 1869, com a sua morte, assume a direção interina
Benjamin Constant.
Benjamin Constant teria entrado no Imperial
Instituto dos Meninos Cegos como professor de matemática e ciências em 1862
(ZENI, 2005, p. 176). Cursou a escola militar, onde mais tarde teria sido
professor. Ele se dedicava ao magistério, e já tinha lecionado também no
Colégio Pedro II e na Escola Normal da Corte. (ZENI, 2005, p. 87). No ano
seguinte a sua entrada no Imperial Instituto dos Meninos Cegos como professor,
ele teria se casado com a filha de Cláudio Luiz da Costa, o que teria
estreitado suas relações políticas com o antigo diretor e com o próprio
Instituto.
Benjamin Constant foi uma importante figura
política brasileira nos finais do Segundo Reinado e no início do período
republicano. Vinha de uma família com poucos recursos, seu pai ex-tenente do
Corpo de Artilharia da Marinha Portuguesa, teria se tornado professor ao
mudar-se para o Brasil. Em meio às dificuldades financeiras, ele garantia o
sustento da família com suas aulas. Benjamin Constant teria se filiado a
diversas entidades de natureza assistencial, como Montépio Geral, Sociedade
Auxiliadora das Artes Mecânicas e Liberais e Beneficentes, Sociedade Brasileira
de Beneficência, Sociedade Beneficência Perfeita Amizade, Imperial Irmandade da
Santa Cruz dos Militares, Associação Protetora da Infância Desamparada, entre
outras.
Isso evidencia seu interesse nas ações de
beneficência, de modo que não podemos deixar de pensar em como esse tipo de
relação se estendia no seu interesse pelo ensino dos cegos. Segundo Zeni
(2005), Benjamin Constant já teria encontrado o instituto com bases firmadas,
“mas carecendo muito de dedicação daquelas pessoas que por ele lutavam. Foi ele
mais um destes abnegados, justificando com seu trabalho em prol dos cegos a
consideração de que o Instituto representou sua ação mais importante no campo
da assistência” (p. 119). Assim, ele se preocupou fundamentalmente em expandir
a educação dos cegos pelo Brasil, ramificando o instituto pelas províncias do
território nacional, com vistas a torna-lo autossuficiente.
Além disso, ele teria se preocupado
centralmente com a necessidade de conceber um regulamento definitivo para o
instituto, que até então estava regido pelo regimento provisório da fundação de
1854. Ademais, os relatórios nos mostram sua dedicação na luta pela
transferência do instituto para o prometido prédio na antiga praia da saudade,
que seria fundamental para a sua expansão ao maior número de cegos do Império;
proposta que se concretizaria somente em 1891. Assim, Benjamin Constant foi uma
figura central na luta em prol da melhoria das condições de vida dos cegos;
deixando a direção somente vinte anos depois, com a Proclamação da República
Brasileira, para assumir a pasta da Instrução Pública, de onde seguiria olhando
pela instituição de cegos até a sua morte.
O Imperial Instituto
dos Surdos-Mudos (1856-1890)
O Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, por
sua vez, foi fundado oficialmente três anos após a criação do Imperial
Instituto de Meninos Cegos. Entretanto, diferentemente dos cegos, ele não teve
apoio inicial do Império, partindo de uma iniciativa de E. Huet. O mistério
envolvendo a figura de Huet se coloca para esta investigação, bem como para
toda a historiografia que tem se dedicado ao tema, como um empecilho para a
compreensão dos motivos que teriam levado à fundação do instituto.
Supostamente, Huet teria sido um surdo francês que, tendo estudado e lecionado
no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris e dirigido o Instituto de Surdos-Mudos
de Bourges, almejava criar um instituto similar no Brasil para beneficiar os
surdos que aqui viviam.
Contudo, a partir de uma carta encontrada nos
arquivos históricos do Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris, levantamos
uma nova hipótese sobre a criação do instituto brasileiro. Tal carta partiu do
Consulado Geral da França no Brasil e do Ministério dos Casos Estrangeiros ao
Ministre des Affaires Étrangers à Paris, do ano de 1826. Nesta carta, o Consul
Geral da França no Brasil comunicou ao Ministro dos Casos Estrangeiros de Paris
que o Imperador do Brasil, “apreciando tudo o que possa esclarecer sobre os
estabelecimentos úteis a serem criados em seu Império, recebeu com muito
interesse a comunicação direta que eu lhe fiz do programa relativo ao
estabelecimento de surdos e mudos (...)”. Continuava dizendo que:
O Brasil, sendo um país novo onde tudo
está ainda por se formar, não tem nenhum estabelecimento que tenha relação a
este criado pelo abade de L’Épée e que dá tanta honra à França. Eu não sei
mesmo de nenhum indivíduo que já tenha feito observações ou recolhido fatos
dessa natureza que mereçam a atenção destes que se dedicam na França para o
alívio dos surdos e mudos (GESTAS,1826).
Deste modo, supomos que a correspondência
enviada da França ao Brasil, a qual esta carta responde, demandava de nossas
autoridades se existia no Brasil algum estabelecimento de ensino destinados aos
surdos, comunicando sobre a existência do Instituto Nacional de Surdos-Mudos de
Paris. Podemos concluir, desse modo, que o Ministério dos Estrangeiros francês
estaria fazendo um trabalho de divulgação do Imperial Instituto de Surdos-Mudos
que provavelmente se estendia a outros países que não somente o Brasil.
Segundo o primeiro relatório do Ministro dos
Negócios do Império acerca do Instituto de Surdos-Mudos, referente ao ano de
1856, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos teria sido fundado no dia 1º de
janeiro de 1856, em uma das salas do colégio de Vassimon. Teria iniciado os trabalhos
com três alunos, dois subsidiados pela província do Rio de Janeiro e um mantido
por seus próprios meios. Ele seria aberto para alunos dos dois sexos, separados
fisicamente, e lhes forneceria, além de moradia e alimentação, a instrução
primária e secundária, bem como a religião e a moral, noções de artes e de
ciências. A responsabilidade pela educação das meninas seria atribuída a esposa
do diretor.
O ministro anuncia que, visto o zelo e
inteligência investidos nesta “nobre” tarefa, seria criada uma comissão
promotora do nascente instituto, formada por homens distintos. Seriam eles: os
marqueses de Abrantes, de Monte Alegre e de Olinda, o conselheiro de estado
Euzébio de Queiróz Coitinho Mattoso Camara, o D. abade de São Bento, o prior do
convento do Carmo, o Dr. Manoel Pacheco da Silva e o cônego Joaquim Caetano
Fernandes Pinheiro, que serviria também de secretário.
A primeira menção ao Instituto dos
Surdos-Mudos no âmbito legislativo vem da lei nº 939 de 26 de setembro de 1857
(artigo 16, inciso 10). Esta lei nos aponta, basicamente, que o subsídio
oficial que o Império passa a fornecer ao Instituto. Na íntegra, ela determina
“conceder, desde já ao Instituto dos Surdos-Mudos, a subvenção annual de
5:000$000, e mais dez pensões, também annuaes, de 500$000 cada huma, a favor de
outros tantos surdos-mudos pobres, que nos termos do Regulamento interno do
mesmo Instituto, foram aceitos pelo Diretor e Comissão e approvados pelo
Governo” (BRASIL, 1857). Assim, o instituto se transforma em uma espécie de parceria
entre o âmbito público e o privado, sendo financiada pelo Governo e pelas
doações da Igreja, e administrada por um particular, supervisionado pelo
Império. Nos anos seguintes, o número de alunos do instituto vai aumentando
progressivamente, em particular devido às novas pensões fornecidas pelo governo
Imperial.
Os alunos para se matricularem, precisavam
ter entre sete e 16 anos e apresentar somente um certificado de vacinação. Em
um primeiro momento, eram aceitas também as alunas, que, posteriormente, seriam
excluídas do direito ao estudo no Instituto por algumas décadas, do mesmo modo
como ocorrera no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris. Assim como no
Imperial Instituto de Meninos Cegos, eram destinadas pelo Imperador pensões
para garantir a educação gratuita de apenas dez das 30 vagas oferecidas. Com
isto, cerca de 30% das vagas permaneceram desocupadas nos primeiros anos após a
fundação, como aponta o registro de matrícula dos alunos surdos do Instituto em
1858.
O ministro menciona ainda que o Instituto já
tinha uma série de dívidas, que estavam sendo sanadas pouco a pouco com o
auxílio do governo, diminuindo seu déficit mensalmente. Em 1858, ele afirma que
as dívidas feitas por Huet estariam completamente pagas. Contudo, uma das
reclamações que persiste no relatório dos ministros é a falta de verbas para
dar ao instituto o “nível” obtido por instituições da mesma natureza em outros
países, pedindo, inicialmente, a elevação da pensão de 5:000$000 a 11:000$000.
É devido a essa relação dúbia que o instituto apresenta perante o seu fundador
e o Governo que os conflitos com Huet começam a ficar aparentes, culminando na
saída do diretor e na “compra” da Instituição pelo Império.
No relatório de 1860, o ministro traz o
manifestado desejo de Huet de se retirar para a Europa, com o discurso que o
instituto já estaria fundado de modo que não seria mais necessária a sua
presença. Para isto, como ele tinha o direito a propriedade do estabelecimento,
declarou a comissão inspetora que preferia deixa-la ao governo ao invés de
vendê-la a um particular, uma vez que este se comprometesse com o pagamento de
uma pensão anual de 2:000$000, que permanecesse para a sua mulher e para os
seus filhos. Não está claro, de fato, as razões que teriam levado Huet a pedir
a saída do instituto, visto que estamos tratando unicamente da visão do
Ministério sobre ela. O ministro nos incita a pensar que esta atitude de Huet
teria se configurado como um “golpe” financeiro no Império, uma vez que este já
financiava quase todos os gastos do instituto e ainda havia quitado todas as
dívidas feitas por Huet.
Desse modo, no ano seguinte, teria sido
celebrado pela comissão inspetora com Huet, no contrato datado de 10 de abril
de 1861, a sua saída do instituto, mediante o pagamento da quantia de
3:494$021, ficando o instituto, assim, pertencendo ao governo e continuando a
cargo da mesma comissão promotora. A direção do instituto foi confiada pela
comissão ao padre Frei João de Nossa Senhora do Carmo. Nos anos que se seguiram
à saída de Huet, ficou a promessa de formar Manoel da Magalhães Couto, aluno
destacado dos primeiros anos de existência do Instituto dos Surdos-Mudos, no
Instituto de Paris, voltando com uma formação apropriada para administrar o
Instituto. O Império financiou seus estudos, de modo que ele retornou ao Brasil
em 1863 e logo assumiu a direção da instituição.
Assim, no período que compreende o Segundo
Reinado brasileiro, o Instituto de Surdos-Mudos teve cinco diretores, com
destaque para Tobias Rabello Leite, que fica à frente do cargo até a sua morte
em 1896, por quase 30 anos. Entre seus feitos principais ao longo de sua
gestão, estavam 1) a instituição do ensino profissionalizante, com as oficinas
de encadernação, de sapateiro e uma pequena escola agrícola que ele teria criado,
o que garantiria ao surdo uma possibilidade de sobrevivência fora do Instituto,
diferentemente do incentivo de permanência dado pelo Imperial Instituto de
Meninos Cegos; 2) a tradução de livros franceses utilizados no Instituto de
Jovens Surdos de Paris, divulgando e orientando, em âmbito nacional, a educação
de surdos; 3) obras no edifício que abrigava o instituto, que teriam sanado os
graves problemas de higiene existentes anteriormente; 4) e a restrição dos
estudos para o sexo masculino, proibindo a instrução de meninas no Instituto
desde 1874.
Considerações finais
Como já
mencionamos ao longo desse estudo, a criação das quatro instituições está
baseada em uma lógica específica entre a iniciativa individual de filantropos e
a responsabilização estatal. Nesse sentido, consideramos fundamental entender
as motivações de seus instituidores na fundação das escolas e observar como a
“política dos favores” se mantém ao longo de todo o século XIX. Assim sendo,
explicitamos a produção historiográfica francesa, que, até o presente momento,
identifica o interesse do abade de L’Épée e de Valentin Haüy na notabilidade
social: estes grandes filantropos da sociedade parisiense buscavam se tornar
instituidores com intuito de pertencer às “redes de sociabilidade da nebulosa
filantropia” e “por amor a humanidade”, ligando-se para além de suas clivagens
religiosas ou políticas (DUPRAT, 1995). Assim, eles tornariam-se os primeiros
instituidores para surdos e cegos no mundo a publicizarem seus métodos e
abrirem escolas que fossem acessíveis não somente para os pertencentes as
elites daquela sociedade.
Em
relação ao Brasil, a discussão relativa à fundação dos institutos ainda segue
em aberto, a nosso entender, em alguns aspectos. No caso do Imperial Instituto dos Meninos
Cegos a compreensão dos interesses pessoais e civilizacionais de José Sigaud,
aliado ao cego José Álvares de Azevedo, é explícita, porém, no caso do Imperial
Instituto dos Surdos-Mudos não há ainda consenso sobre quais razões teriam
motivado Huet a tentar criar fundar uma escola no Brasil, tendo em vista os
dados explicitados ao longo deste estudo.
Potencialmente,
a França tinha pretensões de difundir as instituições para surdos pelo mundo, e
pode, inclusive, ter oferecido auxílio para o governo imperial criar uma
instituição similar no Brasil. Todavia, só poderemos afirmar isto com convicção
quando encontrarmos as outras correspondências sobre o assunto trocadas entre
estas autoridades. Alguns dos estudiosos que se dedicaram a escrever sobre a
história do Imperial Instituto de Surdos-Mudos afirmam que Huet teria sido
recomendado pelo Ministro de Instrução Pública da França, com apoio do
embaixador francês no Brasil. (LEMOS, 1981, p. 41). Contudo, não encontramos
documentação que comprovasse essa intermediação oficial da vinda de Huet, mas
acreditamos que seja sim uma possibilidade visto o interesse francês expresso
nesta correspondência.
Neste
sentido, é necessário prosseguir em torno da busca por esta documentação para
que possamos discutir com maior profundidade às motivações que teriam trazido
Huet ao Brasil. Todavia, trata-se de uma difícil tarefa: ainda não encontramos
rastros de sua vida anterior à sua chegada ao Brasil. Primeiramente, posto que
não foram encontradas ainda fontes sobre ele no Instituto Nacional de Jovens
Surdos de Paris. Além disso, o mistério em torno de seu nome é um empecilho na
busca por informações sobre ele.
Assim
sendo, não podemos desprezar a possibilidade desta articulação entre a França e
o Brasil ter sido realizada em meios oficiais também no caso dos cegos.
Entretanto, a correspondência entre M. Guadet, diretor do Instituto Nacional de
Meninos Cegos de Paris à época e José Sigaud, revela as relações entre os
instituidores e o interesse de Sigaud em saber tudo sobre o funcionamento do
instituto parisiense, com vistas à implementação em sua escola para cegos.
Assim, se por um lado essa intermediação pode ter ocorrido também entre as
autoridades da época, sobretudo, entre os ministros do estrangeiro, Sigaud
teria pessoalmente garantido as ligações entre o Instituto Nacional de Meninos
Cegos de Paris e o Imperial Instituto dos Meninos Cegos do Rio de Janeiro.
Evidentemente,
essas ligações entre Paris e Rio de Janeiro teriam perpassado, mais do que as
relações oficiais e burocráticas do Ministério, o nível de interesse dos
instituidores que estiveram à frente dos estabelecimentos. Desse modo, se por
um lado os interesses e a organização geral de funcionamento destes institutos
nos parecem bastante similares nos anos que se seguem à suas fundações,
inferimos que estas relações tenham se perdido com o passar das décadas, uma
vez que apropriada culturalmente a concepção geral da instituição, as escolas
brasileiras passariam a atuar em uma dinâmica específica ligada aos interesses
do projeto nacional que estava se constituindo. Contudo, indubitavelmente as instituições
permaneceriam ligadas por muito tempo no que diz respeito à apropriação dos
métodos de instrução para surdos e cegos desenvolvidos, sobretudo, na Europa, e
pela lógica de beneficência que se perpetuaria nos institutos brasileiros até o
final do século XIX.
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Revista Educação Especial | v. 32 | 2019 – Santa Maria
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