http://dx.doi.org/10.5902/1984686X32502

Adaptações curriculares na construção de práticas de letramento para alunos surdos

Curricular adaptations in building practices of literacy for deaf students

 

Adaptaciones curriculares en la construcción de prácticas de literacia para estudiantes sordos

 

 

* Lucineide Machado Pinheiro

Professora doutora no Instituto Federal de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

lucineidepinheiro@yahoo.com.br

 

Recebido em 08 de março de 2019

Aprovado em 27 de julho de 2019

Publicado em 12 de setembro de 2019

 

RESUMO

Estudos apontam que estudantes surdos têm apresentado um quadro de baixo desempenho escolar devido às dificuldades apresentadas em leitura e escrita. Tal situação resulta, em parte, das abordagens utilizadas no ensino de Língua Portuguesa como primeira língua, sem qualquer adaptação metodológica. Segundo os pressupostos da educação inclusiva, espera-se que o professor desenvolva adaptações curriculares a fim de construir um processo de ensino-aprendizagem significativo. Diante desse contexto, este estudo propôs-se a investigar se e como as adaptações curriculares têm sido implementadas em escolas comuns que possuem alunos surdos matriculados e, ainda, se elas favorecem o desenvolvimento de algum tipo de prática de letramento bilíngue. Apoiado na Teoria Sociohistórico-Cultural de Vygotsky (1924-1934) e na política nacional de ensino-aprendizagem, este estudo encontra-se ancorado também na metodologia da Pesquisa Crítica de Colaboração (PCCol) (Magalhães, 2011).  Os dados foram produzidos mediante observação das aulas de Língua Portuguesa, em salas que possuem alunos surdos matriculados, além da realização de entrevistas e sessões reflexivas. Os resultados indicam a ausência das adaptações curriculares devido à parca formação oferecida aos professores e sinalizam que a colaboração entre os participantes (pesquisadora e pesquisados) favorece a sua implementação, assim como o desenvolvimento de práticas de letramento bilíngue.

Palavras-chave: Adaptações curriculares; Letramento; Surdos.

 

ABSTRACT

Studies  indicate that deaf students have presented a poor performance due to difficulties in reading and writing. This situation results, in part, from the approaches used in teaching Portuguese as the first language, without any methodological adaptation. According to the assumptions of inclusive education, the teacher is expected to develop curricular adaptations as to build a   meaningful teaching-learning process. Given this context, this study aimed to investigate whether and how curricular adaptations have been implemented in ordinary schools that have deaf students enrolled, and whether they favor the development of some kind of  bilingual literacy practice.  Supported by the Sociocultural-Historical Theory (Vygotsky, 1924-1934) and the national teaching-learning policy, this study is also anchored in the  Critical Collaborative Research Methodology (Magalhães, 2011). . The data were produced  by observing the Portuguese language classes, in classrooms that have  deaf students enrolled, as well as interviews and  reflective sessions. The results indicate the absence of the curricular adaptations due to the poor training offered to teachers   and indicate that the collaboration between the participants (research and researched) favors its implementation, as well as the development of bilingual literacy practices.

Keywords: Curricular adaptations; Literacy; Deaf students.

 

RESUMEN

Los estudios indican que los estudiantes sordos han presentado un bajo rendimiento en la escuela debido a dificultades en la lectura y la escritura. Esta situación se debe, en parte, a los enfoques utilizados en la enseñanza del portugués como primera lengua, sin ninguna adaptación metodológica. Bajo los supuestos de la educación inclusiva, se espera que el maestro desarrolle adaptaciones curriculares para construir un proceso significativo de enseñanza-aprendizaje. Dado este contexto, este estudio tuvo como objetivo investigar si las adaptaciones curriculares se han implementado en escuelas ordinarias que tienen alumnos sordos inscritos, y también si favorecen el desarrollo de algún tipo de práctica de literacia bilingüe. Apoyado por la Teoría sociohistórico-cultural de Vygotsky (1924-1934) y la política nacional de enseñanza-aprendizaje, este estudio también se basa en la metodología de investigación crítica colaborativa (PCCol) (Magalhães, 2011). Los datos se produjeron mediante la observación de clases de portugués, en salas en las que se inscribieron estudiantes sordos, y también se realizaron entrevistas y sesiones de reflexión. Los resultados indican la ausencia de adaptaciones curriculares debido a la poca capacitación ofrecida a los maestros e indican que la colaboración entre los participantes (investigador e investigado) favorece su implementación, así como el desarrollo de prácticas de literacia bilingües.

Palabras clave: Adaptaciones curriculares; Literacia; Sordos.

 

Introdução

Alfabetização e letramento são termos que possuem significados distintos, “que frequentemente têm sido confundidos e até mesmo fundidos” (SOARES, 2004, p. 01). O termo alfabetização consiste no processo de ensino-aprendizagem que ocorre “[...] no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento” (SOARES, 2004, p. 14). Já o conceito de letramento equivale ao uso da leitura e da escrita em práticas sociais que só podem ser desenvolvidas “[...] no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema” (Ibid., p. 14). Nesse sentido, fica evidente que ambos os termos não se confundem, tampouco se fundem, mas são interdependentes e indissociáveis.

 O termo letramento chegou ao Brasil em 1980, atrelado ao termo alfabetização, posto que, historicamente, o último era utilizado para designar de forma genérica a aprendizagem da escrita. Letramento origina-se a partir da palavra inglesa literacy, cuja raiz é proveniente do latim littera, o qual acrescido ao sufixo -cy, da Língua Inglesa, forma literacy, que indica estado ou condição de quem sabe ler e escrever, e usa essas habilidades em práticas sociais (KLEIMAN, 1995). Soares (2010), com base em  uma perspectiva educacional/pedagógica e social, defende que o letramento escolar “são as habilidades de leitura e escrita de crianças, jovens ou adultos em práticas sociais que envolvem a língua escrita” (SOARES, 2010, p. 56-57), e, ainda, que letramento social “[...] é o estado daquele que não só sabe ler e escrever, mas que também faz uso competente e frequente da leitura e da escrita, e que, ao tornar-se letrado, muda seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura” (SOARES, 1998, p. 36-37).

O processo de letramento pode ocorrer em vários lugares, conhecidos como agências de letramento, onde se desenvolvem as práticas sociais de leitura e escrita. Como exemplo, temos as escolas, as famílias, as ruas e as igrejas.

Tratando-se da escola enquanto agência de letramento, pode-se afirmar que ela “[...] preocupa-se não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização [...], processo concebido em termos de competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola” (KLEIMAN, 1995, p. 20). A recorrente utilização de gêneros textuais como pretexto para o ensino sistematizado da língua escrita, sem a construção de práticas sociais de uso da leitura e da escrita, isto é, sem o fomento das práticas de letramento, demonstra esse fato.

As práticas de letramento consistem em toda e qualquer atividade, acesso e espaço onde se pode encontrar o uso da leitura e da escrita. Portanto, não dizem respeito apenas ao gênero textual, como conto, poema, etc. – embora este possa ser utilizado, também, pelo professor, no processo de ensino-aprendizagem –, mas, sim, ao contexto da produção na qual estão inseridas. Tais práticas devem ir além do espaço da sala de aula, de modo a permear o ambiente escolar.

Porém, o que fica evidente no universo escolar é que as práticas adotadas estão embasadas em uma concepção denominada por Street (1984) como modelo autônomo de letramento, assim nomeado porque “se refere ao fato de que a escrita seria, nesse modelo, um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado; o processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico interno ao texto escrito [...]” (KLEIMAN, 1995, p. 22). Ainda para a autora (1995), o modelo autônomo pressupõe que exista apenas uma forma dos indivíduos se tornarem letrados, que estaria condicionada ao processo de escolarização e ao progresso da civilização. 

 Para o modelo autônomo, existe uma correlação entre a aquisição da escrita e o desenvolvimento cognitivo. Por esse ângulo, apenas as pessoas que escrevem possuem formas superiores de pensar, visto que o desenvolvimento de habilidades cognitivas é consequência do processo de escolarização (KLEIMAN, 1995).  E, uma vez que o fracasso escolar se instaure, este será atribuído ao indivíduo que geralmente não tem acesso e oportunidade para participar de práticas de letramento significativas (GEE, 1990).

Nesse contexto, pesquisas, como a de Soares (2004), apontam que “associar a escrita ao desenvolvimento cognitivo gera vários problemas, pois os grupos letrados podem vir a tornar-se a norma, gerando uma concepção deficitária e preconceituosa com relação aos grupos minoritários não letrados” (KLEIMAN, 1995, p. 27).

A fim de contrapor essas ideias, Street (1984), propôs o modelo ideológico de letramento.  De acordo com Kleiman (1995, p.21), o que caracteriza esse modelo é que as práticas de letramento “são social e culturalmente determinadas; e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” (KLEIMAN, 1995, p. 21). Assim, podemos afirmar que as práticas de letramento mudam de acordo com o contexto de sua produção. O modelo ideológico considera que “as práticas de letramento são aspectos não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder numa sociedade” (Ibid., p. 38).

Em relação à Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, mais especificamente na educação dos surdos, autores como Lodi, Harrison e Campos (2010) e, ainda, Pinheiro (2018), afirmam que, analogamente à educação dos ouvintes, o modelo autônomo de letramento tem regido as práticas de leitura e escrita em sala de aula. Os autores observam que os mesmos princípios que embasam esse modelo também se encontram na educação dos surdos, tais como considerar o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita como um fim em si mesmo, desvinculado do contexto social, e responsabilizar o indivíduo pelo fracasso escolar. O processo de letramento dos surdos, baseado no modelo autônomo, faz com que

[...] as práticas de leitura e escrita limitem-se ao conhecimento gramatical, à decodificação/identificação vocabular e ao tratamento de orações descontextualizadas e/ou de textos artificiais, elaborados para fins didáticos, que em nada se assemelhavam aos diversos gêneros discursivos em circulação nas práticas sociais não institucionalizadas.  (LODI; HARRISON; CAMPOS, 2010, p. 36).

 

Tais práticas de leitura e escrita afirmam ser de natureza lexical as dificuldades dos surdos, uma vez que muitos apresentam um vocabulário reduzido e problemas sintáticos (FERNANDES, 1999). De acordo com Botelho (2005), os próprios surdos também consideram que as dificuldades por eles encontradas diante de um texto são devido à falta de vocabulário, reduzindo, assim, a problemática, apenas ao léxico. Para eles, o sentido do texto é lexicalizado, ou seja, é atribuído à palavra, quando deveria ser contextualizado.

É comum, ao lerem um texto, pararem nas palavras desconhecidas para buscarem entender o significado de forma isolada. (BOTELHO, 2005). Fato é que “não ter vocabulário costuma ser considerado um dos problemas centrais do surdo” (BOTELHO, 2005, p. 61). No entanto, basear as aulas de português para surdos no ensino de vocabulário, acreditando que assim poderá minimizar a dificuldade, é um equívoco, pois concebe a língua como um conjunto de palavras e evidencia a concepção de que aprender uma língua limita-se em aprender palavras. É preciso que o surdo aprenda vocabulário, mas as palavras precisam estar dentro de um contexto para que se entenda o conceito.

 Embasar o processo de letramento dos surdos no ensino de elementos descontextualizados, vocabulário, análise sintática e nomenclatura gramatical não assegura a formação de sujeitos competentes em compreender textos (ANTUNES, 2009). Da mesma forma, aprender análise sintática e nomenclatura gramatical, não significa que o surdo tenha intimidade com a leitura, não lhe assegura êxito na utilização heterogênea dos textos, por serem ensinados, geralmente, de forma artificial, sem que contribuam para a construção de sentidos. (DIAS; SILVA; BRAUN, 2013).

Muitos surdos passam parte de sua vida na escola, mas não fazem uso competente da leitura e da escrita por vivenciarem aulas que não contemplam as suas especificidades de aprendizagem e não colaboram com a formação de um sujeito crítico e participativo. O modelo de letramento adotado na educação dos surdos não lhes oferece práticas de leitura e escrita que os permitam assumir uma posição reflexiva diante da realidade, a fim de transformá-la. As práticas das quais participam são aquelas em que frequentemente os tem “[...] imobilizado politicamente e que não se comprometem com sua inserção em uma sociedade cada vez mais dependente e centrada na leitura e na escrita” (BOTELHO, 2005, p. 64).

Nesse ínterim, segundo Dias, Silva e Braun (2013), a formação de sujeitos surdos letrados está diretamente relacionada à forma como os professores concebem questões imbricadas ao letramento e atuam por meio delas. Tais questões dizem respeito à compreensão de que esse processo vai além de simplesmente torná-los capazes de decodificar e codificar grafemas, pois é fundamental criar condições para que façam uso competente da leitura e da escrita e, por conseguinte, que saiam de uma posição de analfabetos funcionais e passem a fazer uso efetivo da língua escrita.

O ensino eficiente da Língua Portuguesa na modalidade escrita para os surdos torna-se possível se lhes forem oferecidas oportunidades para que expressem suas ideias, pensamentos, hipóteses e experiências. Para isso, é necessário que os professores recorram a textos e contextos significativos, que permitam o desenvolvimento das potencialidades desses alunos. E um ponto nodal: que eles utilizem, em suas práticas pedagógicas, abordagens de Língua Portuguesa escrita como segunda língua (L2) para os surdos, e não enquanto primeira língua para ouvintes. Faz-se necessário, ainda, que a Língua de Sinais circule em sala de aula por meio da relação colaborativa entre todos os agentes que compõem a educação, visto que é por meio da língua que o aluno surdo constitui a sua subjetividade, interage com o outro, produz e constrói conhecimento. É a partir da língua que ele se insere ativa e produtivamente na sociedade letrada, à medida que imerge no universo da leitura e escrita, podendo, assim, exercer sua cidadania e conquistar sua autonomia.

As adaptações curriculares propostas pela Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC), por meio do documento Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): Adaptações Curriculares, configuram-se como possibilidades de atuar diante das dificuldades dos alunos enquanto ferramentas norteadoras do processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa na modalidade escrita e das práticas de letramento desenvolvidas na escola (BRASIL, 2003). Tais adaptações propõem-se em atender as particularidades de aprendizagem dos alunos e têm como enfoque a Zona de Desenvolvimento Proximal – ZDP, definida por Vygotsky ([1924]/2009) como a distância entre o nível de aprendizagem real e o nível de aprendizagem potencial.

O que se almeja, com tal proposta, “é a busca de soluções para as necessidades específicas do aluno, e não o fracasso na viabilização do processo de ensino-aprendizagem” (BRASIL, 2003, p. 38). O que se pretende, é que a escola se adapte ao aluno, de modo a oferecer-lhe as condições fundamentais para o seu acesso e permanência, portanto, em prol de uma educação de qualidade para todos.

Diante do exposto, consideramos importante investigar (1) se e como as adaptações curriculares têm sido implementadas em escolas comuns que possuem alunos surdos matriculados, e (2) se elas favorecem o desenvolvimento de algum tipo de prática de letramento bilíngue.

 

Metodologia

Apoiado da Teoria Sócio-Histórico-Cultural (TSHC) de Vygotsky, este estudo parte de uma pesquisa de doutorado e conta com o aporte da política nacional de ensino-aprendizagem, e, ainda, com as contribuições de autores como Fidalgo (2006, 2018), Mendes (2006) e Pinheiro (2018), que discutem a problemática da inclusão. Encontra-se também ancorado na metodologia qualitativa da Pesquisa Crítica de Colaboração (PCCol), somado ao Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) de Bronckart (2006), que coadjuva   na organização  da discussão a partir da  perspectiva da materialização linguística dos ideais de inclusão ou de exclusão vivenciados nas escolas.

A PCCol focaliza o trabalho com educadores, razão pela qual tem sido aplicada por colaboradores e pesquisadores em instituições escolares. Está alicerçada na Teoria Sociohistórico-Cultural de Vygotsky, bem como em estudos que adotam essa vertente (MAGALHÃES, 2011). Nesse arcabouço teórico, a linguagem é fundante, pois é o instrumento central, a partir do qual o sujeito entra em contato com a cultura e organiza suas experiências. É sob a mediação da linguagem que ele constroi relações e se humaniza; organiza o pensamento e o expressa através da palavra, que tem o poder de significar o mundo, como reflexo da ressignificação do outro, nas interações sociais (VYGOTSKY, [1934]/2009).

Optamos por essa metodologia de pesquisa, porque propusemo-nos a atuar como pesquisador-participante, no lócus de investigação, no intuito de intervir dialógica e dialeticamente para transformar situações contextuais que necessitassem de novas perspectivas. Para tanto, compartilhamos do pensamento de Magalhães (2006), para a qual o processo de intervenção se traduz enquanto colaboração. Isso significa que, embora o pesquisador possibilite um espaço de reflexão crítica com o professor participante, ambos colaboram, analisam e compreendem os sentidos e significados veiculados nos conceitos e práticas desenvolvidas, de modo a encontrar respostas para a problemática vivenciada. (VYGOTSKY, ([1930]/1991). Um e outro têm de problematizar a situação e criar zonas de desenvolvimento proximal (ZDP'S) que os conduzam ao desenvolvimento de ações potencializadoras. A ZDP é uma área de ação desconfortável (NEWMAN; HOLZMAN, 1993), pois significados antigos, até então cristalizados, passam a ser questionados pela avaliação crítica para dar lugar a novos significados. É um momento conflitante.

Para a produção dos dados, aplicamos inicialmente uma entrevista semiestruturada com os participantes. Posteriormente realizamos a observação videogravada das aulas de três professores de Língua Portuguesa que lecionam em duas escolas públicas de São Paulo, em salas que possuem alunos surdos matriculados, entre os anos de 2015 e 2016.  Denominamos, de forma fictícia, a primeira instituição de escola A e a segunda instituição de escola B. Na escola A, observamos a aula da professora Juliana, que tem duas alunas surdas em sala de aula. Na escola B, observamos a aula do professor Artur, que tem dois alunos surdos e, ainda, a aula da professora Suzana, que tem quatro alunos surdos matriculados. Todos contam com acessibilidade de Intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras). É importante destacar que todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, de modo a proteger a identidade dos participantes.  Depois da gravação das aulas, desenvolvemos as Sessões Reflexivas (SR), nas quais atuamos com a função de mediador.

Após a produção dos dados, fizemos a transcrição das aulas gravadas e das sessões reflexivas. Como categorias de análise, recorremos ao Interacionismo Sociodiscursivo, especificamente ao contexto de produção e ao conteúdo temático, propostos por Bronckart (2006). O quadro abaixo retrata um exemplo de conteúdo temático. O tema foi retirado das perguntas de pesquisa e a categoria de sentido é derivada dos estudos de Vygotsky, sendo, os exemplos abaixo, as falas dos participantes.

Quadro 01– Exemplo de conteúdo temático, dados da entrevista com a professora Juliana

Tema

Sentido

Exemplo

Fatores para as adaptações curriculares.

 O (des)conhecimento sobre o PCN – Adaptações Curriculares;

Mero conhecimento informal sobre os PCN.

 

L09: Você conhece as adequações curriculares propostas pelo MEC, específicas para os alunos surdos?

J09: Não, nunca me foi passado nada disso [...].

J10: [...]a gente ficou sabendo ao longo do tempo [...]. Mas assim, oralmente, os professores do recurso foram colocando os professores meio que a par, até mesmo procedimentos na sala de aula pra como tá, assim, vamos dizer assim, se posicionando dentro da sala pra facilitar o entendimento deles, porque tem alunos que têm a :: faz a leitura labial e coisa e tal [...]. Mas, assim, documento mesmo, e tal... não.

Fonte: Elaborado pela autora.

 

Segundo Vygotsky ([1934]/ 2009), o sentido é um aspecto psíquico da fala, uma forma que temos de compreendê-la pelo viés psicológico a partir da internalização de significados socialmente construídos, visto que o indivíduo constitui sua subjetividade na ação e interação social. O sentido da palavra pode ser modificado de acordo com o contexto em que surge. Quando se mudam os contextos, consequentemente, alteram-se os sentidos; o que diverge do conceito de significado, que mantém a sua estabilidade independente das mudanças de sentido (PINHEIRO, 2018). Segundo Vygotsky,

O sentido da palavra, diz Paulhan, é um fenômeno complexo, móvel, que muda constantemente até certo ponto em conformidade com as consciências isoladas, para uma mesma consciência e segundo as circunstâncias. Nestes termos, o sentido da palavra é inesgotável. A palavra só adquire sentido na frase, e a própria frase só adquire sentido no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do livro, o livro no contexto de toda a obra de um autor. (VYGOTSKY, 1934/2009, p. 466).

 

Resultados e discussão

Nos PCN – Adaptações Curriculares (BRASIL, 2003), o professor é o responsável pela implementação das adaptações curriculares que se apresentam como proposta para subsidiar a prática pedagógica e favorecer a aprendizagem de todos os alunos. Para que os docentes atuem dessa forma, esse documento, ao reconhecer a necessidade de preparação, aborda a formação – inicial e contínua – como indispensável. Destaca a necessidade, mas não menciona, por exemplo, cursos de formação contínua voltados à preparação docente. Esse dado, somado ao desconhecimento acerca dos PCN – Adaptações Curriculares relatado pelos professores nas entrevistas e nas sessões reflexivas, possibilita-nos inferir que a formação preconizada não foi oferecida. E, se houve, ocorreu de forma pontual, pois não contemplou os professores participantes deste trabalho, visto que todos os entrevistados sequer conheciam o documento, conforme demonstra o quadro 01, apresentado anteriormente.

Ao ser questionada a respeito das adaptações curriculares, Juliana (ver quadro 01) afirma não ter conhecimento sobre a proposta elaborada pelo MEC, ou seja, nunca leu o documento. As informações e possíveis procedimentos para atuar em classe que possui aluno surdo matriculado foram transmitidos por profissionais da sala de recurso e parecem ter se limitado a abordar aspectos relativos ao seu posicionamento em sala de aula, a fim de viabilizar a comunicação pela leitura labial, como se todos os surdos fizessem a leitura labial ou se esse recurso fosse suficiente para garantir a aprendizagem. Os conhecimentos dos professores acerca das adaptações curriculares muitas vezes resultam da experiência e de supostos esclarecimentos que circulam na escola.

A oferta de formação contínua, quando disponível, é incipiente e não atende às necessidades dos professores que atuam com a diversidade do alunado. O excerto do quadro 02, referente à primeira sessão reflexiva com a professora Suzana, demonstra que a formação oferecida pelo Estado, contempla cursos de Libras, consoante ao que assegura o Decreto N.o 5.626/05 (BRASIL, 2005) que regulamenta a Lei N.º 10.436/02 (BRASIL, 2002), que dispõe sobre a Libras, e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) (BRASIL, 2015).

Quadro 02 – Oferta de formação contínua  insuficiente, dados da 1ª Sessão Reflexiva com a professora Suzana

 

Tema

Sentido

Exemplo

Dificuldades para desenvolver as adaptações curriculares

Oferta de formação contínua  insuficiente.

L29: E o Estado, oferece algum curso, alguma formação?S29: Eles ofereceram, algum tempo atrás, curso de Libras fora do horário. Mas você acha que só isso funciona?

L30: Não. Só curso de Libras, não.

S30: E primeiro: eu não sou obrigada a fazer curso de Libras. Eu acho até interessante, eu não tive tempo. Na época era um curso mais longo. Enfim, né, às vezes você já tem toda a tua vida ali comprometida, né?

Fonte: Elaborado pela autora.

A inclusão da Libras como disciplina nos cursos de formação docente é importante para a construção do processo de ensino-aprendizagem, mas não é suficiente para preparar o professor. Assim como consta na LDB (BRASIL, 1996, artigo 61, parágrafo único), deve-se facultar “aos profissionais da educação [...] a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho”. Da mesma forma, de acordo com a LBI (BRASIL, 2015, artigo 28), a preparação docente precisa oportunizar “a adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e contínua de professores e oferta de formação contínua para o atendimento educacional especializado”. Porém, segundo o relato da professora, isso não tem acontecido, pois os cursos oferecidos se restringem ao ensino da Libras. A formação disponibilizada parece ser baseada em um modelo simplificador, voltado à transmissão de conteúdos isolados e desvinculados da realidade. A principal objeção a esse tipo de formação é que esta não leva em conta os diversos fatores que incidem na relação educacional.

Os PCN – Adaptações Curriculares não indicam cursos de formação contínua nem tratam de modificações singulares nos currículos dos cursos de formação inicial com vistas a preparar os professores para atuarem na educação inclusiva e desenvolverem as adaptações curriculares.

Sem formação apropriada, os professores desconhecem que tipo de adaptação curricular poderia ser implementado para os alunos surdos e como poderiam fazê-lo. Em consequência disso, a tendência é que desenvolvam a aula de maneira  homogênea, como se todos aprendessem da mesma forma, como retrata o quadro 03.

Quadro 03 – O desconhecimento dos professores sobre como desenvolver as adaptações curriculares, dados da 1ª Sessão Reflexiva com a professora Suzana

 

Tema

Sentido

Exemplo

 Fatores para as adaptações curriculares

O desconhecimento dos

professores sobre como

desenvolver as adaptações

curriculares

 

 

S7: Então assim, eu acho muito difícil chegar até eles, né, então assim, eu dei aula assim, como eu dou normalmente pra todos, é :: daquela forma, para todas as outras salas, foi a mesma aula. Agora assim, eu não sei como adaptar tudo isso pra eles. Eu honestamente eu não sei.      

Fonte: Elaborado pela autora.

Em outro excerto (quadro 04), ao construir a aula, também, de forma homogênea, o professor Artur diz que quer ensinar gramática, porque percebe que os alunos surdos não fazem concordância e usam o verbo sempre no infinitivo. Ele desconhece que, para os surdos, a Língua Portuguesa escrita deveria ser ensinada com uma abordagem de segunda língua (L2), e não com uma abordagem de primeira língua (L1) para ouvintes, tal como ele estrutura a sua aula.

Quadro 04 – Falta de utilização da gramática da Língua Portuguesa nas produções escritas dos surdos, dados da 1ª Sessão Reflexiva com o professor Artur

 

Tema

Sentido

Exemplo

Aspectos curriculares de Língua Portuguesa.

Falta de utilização da gramática da Língua Portuguesa nas produções escritas dos surdos

 

 

L4: E aí, qual seria pros alunos, em especial, pros alunos surdos, o uso social desse conhecimento de concordância?

A4: Pra eles, é :: porque assim, em momento nenhum eles fazem é :: eles não sabem fazer concordância. Eles usam o verbo sempre no infinitivo. [...] Porque eles falam: “eu banheiro”, “eu comer”... Eles não têm... a concordância pra eles é... uma situação diferente, né? Então eu queria que eles percebessem que isso existe. Embora não seja do uso no caso de Libras, mas que isso existe. [...].

A5: [...] por que muito embora, como língua, eles consigam se comunicar, do ponto de vista linguístico, é:: eles estão conseguindo se comunicar, mas do ponto de vista gramatical eles não conseguem andar [...].

 

Fonte: Elaborado pela autora.

Nota-se que o professor não confere tanta importância ao fato dos surdos terem uma língua constituída (a Língua de Sinais), por meio da qual se comunicam e constroem o conhecimento, mas às dificuldades em relação à gramática, atribuídas aos alunos surdos, e não ao sistema educacional, que é despreparado para recebê-los.

Para Vygotsky ([1934]/2009), a língua não tem apenas a função de comunicar, mas também de organizar e constituir o pensamento. Ela é uma instância de significação na relação do indivíduo com o mundo, com a cultura e com a própria subjetividade. É por meio da língua que o indivíduo constrói conhecimento e interage com o meio e com o outro. Há uma relação de dependência entre pensamento e língua fundamental para os processos cognitivos na teoria vygotskyana. Dessa forma, o processo de ensino-aprendizagem da língua é essencial para o desenvolvimento cognitivo, pois é a partir dos signos (da palavra ou do sinal), que são instrumentos psicológicos, que o ser humano entra em contato com o mundo e desenvolve o pensamento conceitual.

Nesse caso, acreditamos que o professor poderia, por exemplo, ter construído a aula com base na gramática contrastiva, ao fazer um paralelo entre a Língua de Sinais e a Língua Portuguesa, se ele soubesse se comunicar em Língua de Sinais e tivesse vivenciado, em sua formação inicial, uma relação dialética entre os saberes experienciais da docência e os saberes teóricos referentes à disciplina que ministra. 

Os dados produzidos demonstram, ainda, que as práticas de leitura e escrita não atentam para os interesses dos alunos. Os surdos, inseridos nesse contexto, são desconsiderados em suas particularidades de aprendizagem, uma vez que não há uma língua compartilhada entre professor ouvinte e aluno surdo. O ensino de Língua Portuguesa segue uma abordagem de língua materna para ouvintes, e não de segunda língua para surdos.  As dificuldades que os surdos apresentam em leitura e escrita, bem como em compreensão gramatical, são creditadas, pelos professores, ao fato de terem sido alfabetizados de forma tardia, como retrata a fala de Artur (quadro 05).

Quadro 05 – Os surdos têm dificuldade em leitura e escrita devido à alfabetização tardia, excerto da 1ª Sessão Reflexiva com o professor Artur

 

Tema

Sentido

Exemplo

Aspectos curriculares de Língua Portuguesa

 

Alfabetização tardia como reflexo do tipo de educação infantil oferecida ao surdo

 

 

L48: [...] por que você acha que eles ((os surdos)) têm dificuldade em leitura e escrita, ou em compreensão?

A48: Porque, justamente, pelo fato deles... e aí é uma coisa que não é particular deles, têm alunos ouvintes também. Por eles não terem sido alfabetizados no momento certo. Eles não foram alfabetizados no momento adequado. E agora assim, o processo já evoluiu.

 

Fonte: Elaborado pela autora.

 

Fernandes (2006, p. 130), ao tratar do letramento na educação dos surdos, afirma que, em verdade, o grande problema é a alfabetização, e não a ausência dela, porque a escrita é “um processo que se constitui na representação da fala, ou seja, envolve relações com a oralidade”. Segundo a autora, a incursão do surdo ao mundo da escrita não deveria ser denominada de alfabetização (e sim, letramento), porque não é uma realidade acessível a ele, uma vez que pressupõe a habilidade e o reconhecimento de letras e sons. As experiências às quais os surdos são expostos limitam-se a fazer associações entre fonemas e grafemas, remetendo à forma clássica de alfabetização e à compreensão da língua enquanto código.

Se os surdos não têm acesso às experiências auditivas qualitativas, que lhes permitam fazer associações básicas entre fonemas e grafemas seria inadequado nos referirmos à sua incursão ao mundo da escrita denominando esse processo de alfabetização (FERNANDES, 2006, p. 132).

 

Disso advém a pressuposição dos professores de que o conhecimento da Língua Portuguesa na modalidade escrita, pelos surdos, será sempre “limitado e insuficiente”. Diante desse contexto e da perspectiva atual, que concebe as competências de leitura e escrita para o uso em práticas sociais que usam a língua escrita, Fernandes (2006) defende a adoção da terminologia letramento para a educação dos surdos. Nesse sentido, autora resume um pensamento do qual compartilhamos, ao ressaltar que:

Fica evidente que a alfabetização, em seu sentido estrito, não deveria ser o foco dos educadores comprometidos com uma educação bilíngue de qualidade para os surdos. Em contrapartida, as práticas de letramento nos dariam subsídios para discutir o processo de apropriação da escrita significativa em outras bases, pois muito embora pressuponha o processo de alfabetização, não estabelecem com ele uma relação de causa-efeito (FERNANDES, 2006, p. 132).

 

De modo divergente ao posicionamento de Artur, para a professora Suzana, as dificuldades dos surdos não estão relacionadas ao processo de alfabetização, mas às questões de letramento, como podemos ver no quadro 06. 

Quadro 06 – Dificuldades de leitura de surdos e ouvintes, dados da 3ª Sessão Reflexiva com a professora Suzana

 

Tema

Sentido

Exemplo

Aspectos curriculares de Língua Portuguesa

 

Dificuldades de leitura de surdos e ouvintes

Suzana 14: por que sabe o que eu percebo nos nossos alunos? Eles são alfabetizados, mas não são letrados. Eles... não só os surdos, mas os demais. Eles têm essa dificuldade de ler e depois conseguir expressar aquilo que eles entenderam, em relação a tema, que sempre tem um assunto mais sério sendo tratado... se eles não conseguem ler o que tá explícito, quanto mais o que tá implícito no texto, né?[...].

Fonte: Elaborado pela autora.

 

As diferentes opiniões dos professores, Artur e Suzana, quanto à terminologia utilizada (alfabetização ou letramento), ao comentarem as dificuldades dos alunos em leitura e escrita, refletem a incongruência das práticas de ensino encontradas com certa regularidade na Educação Básica, que, por sua vez, são representativas de um conjunto de casos análogos e resultam parcialmente das lacunas no processo formativo. As práticas de leitura que a escola oferece são voltadas para os alunos ouvintes e desconsideram as particularidades de aprendizagem dos surdos.

O excerto abaixo (quadro 07) retrata uma prática pedagógica que não contempla as especificidades de aprendizagem dos alunos surdos, tampouco dos ouvintes, visto que a professora centrou a aula na tradição gramatical, sem qualquer preocupação com a dimensão social e discursiva da língua. Suzana parece não perceber tal situação, pois caracteriza os alunos como “copistas”, embora os considere alfabetizados. Ela diz: “[...] aqueles alunos, ainda estão alfabetizados, mas tem alguns que nem alfabetizados são. E mesmo os alfabetizados, assim, eles são mais é copistas, né? [...]” (leia-se: codificadores do código escrito da Língua Portuguesa). Em sua fala, ao dizer que os surdos “[...] não conseguem pensar na língua como uma estrutura, como um mecanismo [...]”, enfatiza que a dificuldade é deles, culpabilizando-os por não terem desenvolvido tais habilidades. A professora não reflete sobre suas ações, nem associa as dificuldades dos alunos à sua prática, ou a qualquer elemento que a condicione. Ou seja, para ela, as dificuldades encontradas e a situação de não aprendizado têm origem nos alunos surdos, e não no meio social.

Quadro 07– A dificuldade em ensinar gramática é atribuída aos surdos, que não conseguem pensar na língua como estrutura, excerto da 1ª Sessão Reflexiva com a professora Suzana

 

Tema

Sentido

Exemplo

Abordagem tradicional de Língua Portuguesa.

 

 

A dificuldade no ensino de gramática é atribuída aos surdos, que não conseguem pensar na língua como uma estrutura.

 

 

S1: [...] na realidade, aquela aula eu nem iria ainda trabalhar gramática. Eu tava como uma atividade em andamento, eu alterei porque assim, eu queria te mostrar assim, a dificuldade de trabalhar com eles a gramática né? Que pra nós, enquanto falantes da língua, é vital, né? É uma ferramenta vital. Mas, com eles, assim, é muito difícil. Porque assim, é :: chegar até eles essa compreensão... aqueles alunos, ainda estão alfabetizados, mas tem alguns que nem alfabetizados são. E mesmo os alfabetizados, assim, eles são mais é copistas, né? Eles não conseguem pensar na língua como uma estrutura, como um mecanismo. Então assim, eu acho muito difícil chegar até eles, né [...].

Fonte: Elaborado pela autora.

Para Vygotsky ([1924]/1997), a dificuldade cognitiva da criança [ou do aluno surdo] decorre do processo de ensino-aprendizagem tardio da Língua de Sinais e do meio social em que ela está inserida, que frequentemente é despreparado para recebê-la, além de  não compartilhar uma língua que ofereça condições para que a criança possa adquiri-la espontaneamente, como a Língua de Sinais. Segundo Vygotsky ([1924]/1997, p. 91),

A linguagem [a língua] é sempre alguma coisa a mais, uma parte da conduta integral, do ato, da ação. Todas as demais considerações, tanto especiais como gerais sobre a educação, estão subordinadas a esta consideração fundamental e a exigência de um ensino precoce (desde os dois anos de idade) da linguagem [língua] às crianças surdas e da vinculação da linguagem [língua] com outras matérias, etc. 

 

A ausência de uma língua compartilhada no meio social (na sala de aula) é o elemento que tensiona um olhar enviesado acerca das capacidades do sujeito surdo; e o processo de ensino-aprendizagem tardio da Libras ou a ausência dela, o fator que dificulta, ao surdo, aprender uma segunda língua e pensar sobre ela como uma estrutura ou um mecanismo. As limitações dos alunos, apresentadas pela professora, decorrem de sua valoração das capacidades deles e do meio social, mas não de uma suposta incapacidade gerada em função da perda auditiva. Para Vygotsky,

[...] a surdez por si mesma poderia não ser um obstáculo tão penoso para o desenvolvimento intelectual da criança surda, mas a mudez provocada pela surdez, a falta de linguagem [língua] é um obstáculo muito grande nesta via. Por isso, é na linguagem [língua] como núcleo do problema onde se encontram todas as particularidades do desenvolvimento da criança surda. (VYGOTSKY, (1924/1997, p. 189).

 

Consoante às características identificadas nas sessões reflexivas desenvolvidas com os professores e a partir da análise com base no aporte teórico delineado, tem-se que: (1) as adaptações curriculares não são desenvolvidas devido à parca formação que é oferecida aos professores; e (2) as práticas de letramento escolar empregadas se pautam no modelo autônomo – conforme com o que é possível perceber nos quadros 06 e 07 –, que, segundo Street (1984), concebe o letramento como algo independente do contexto social, tendo como objeto de estudo a escrita enquanto produto, suas particularidades e as alterações que provoca nas pessoas que a utilizam, e não o que as pessoas fazem com ela. Essas características, além do fato do ensino de Língua Portuguesa estar centrado em aspectos gramaticais – e não na construção de práticas discursivas com base no texto –, foram observadas nas aulas dos professores participantes.

E um último dado que queremos demonstrar é que, por meio da relação colaborativa pesquisadora e pesquisados, foi possível implementar um tipo de adaptação curricular que favoreceu o desenvolvimento de uma prática de letramento bilíngue. Neste trecho, a professora e a pesquisadora negociam o tipo de adaptação que poderia ser desenvolvido.

Quadro 08 – Implementação das adaptações curriculares por meio da colaboração entre os participantes, dados da 2ª Sessão Reflexiva com a professora Suzana

 

Tema

Sentido

Exemplo

Colaboração entre professor e pesquisadora

Implementação das adaptações curriculares por meio da colaboração entre os participantes

 

 

 

 

L47: E pra segunda-feira, você já tem algo, ou não? S47: [...] eu vou trabalhar o conto “Venha ver o pôr-do-sol”, da Lygia Fagundes Telles [...]. S52: [...] e aí eu vou trabalhar a interpretação em cima do conto. S53: [...] eu vou ler primeiro o texto com eles.

L54: [...] e se os alunos fizessem ((uma dramatização)) ao invés de assistirem a dramatização?S57: [...] eu poderia pedir para os surdos fazerem.

L60: [...] eu acho que para os surdos e para a sala como um todo, a dramatização do conto [...] seria interessante, porque eles iriam interagir ((por meio da língua de sinais)).

Fonte: Elaborado pela autora.

 

A colaboração entre os participantes possibilitou a valorização da Língua de Sinais em sala de aula, pois os alunos surdos dramatizaram o conto em Libras, os profissionais intérpretes fizeram a interpretação da Libras para a Língua Portuguesa e, depois, a professora o desenvolveu, com foco na comunicação e interpretação textual, não mais enfatizando aspectos gramaticais. Como resultado dessa aula, na 4ª Sessão Reflexiva, a professora relata:

Quadro 09 – A colaboração permite compreensões e ressignificações, dados da 4ª Sessão Reflexiva com a professora Suzana

 

Tema

Sentido

Exemplo

Colaboração entre professora e pesquisadora

A colaboração permite compreensões e ressignificações.

 

L1: [...] há algo que você queira comentar sobre a aula [...]?

S1: Então, na realidade o que eu fiquei assim, impressionada, é que naquele mesmo dia, eu não consegui tecer o comentário ali mesmo na hora. É :: assim, na realidade nós sentimos a dificuldade deles, né? Então ficou assim, bem evidenciada, porque a gente ficava assim olhando e eu honestamente olhava e não entendia. Assim, eu conheço o conto, né? Mas eu fico imaginando, se eu não conhecesse, eu não ia entender a história pela... através da “linguagem” deles [...]. Eu não conheço. Eu não consegui entender. [...]. Mas assim, deu pra gente sentir um pouco as dificuldades deles, né? É :: como se nós estivéssemos no mundo dos surdos, e eles no mundo dos ouvintes, né? Parece que inverteu [...].

Fonte: Elaborado pela autora.

Houve uma mudança de concepção da professora em relação aos alunos surdos, à relevância da Língua de Sinais e ao desenvolvimento de uma prática de letramento bilíngue  pautada no modelo ideológico,  que leva em conta os aspectos contextuais e culturais,  com base no texto, e não na gramática, o que permite vislumbrar outras possibilidades de práticas de letramento. 

Considerando a diversidade de alunado presente na escola, as práticas de letramento deveriam ser construídas a partir do modelo ideológico, pois, se assim o fossem, a escrita adquiriria sentido para aqueles que a desenvolvem, e não ficaria centrada apenas na habilidade de codificar e de registrar ideias em um papel. Seria, portanto, resultado de uma prática discursiva e dialogada sobre uma determinada temática. Os alunos entenderiam as razões da atividade escrita e alcançariam com pleno êxito os vastos domínios da leitura e da escrita.

Para os surdos, atividades escritas, apoiadas no modelo ideológico de letramento e a partir da discussão do texto, em Língua de Sinais, passariam a fazer sentido de tal modo, que os alunos se sentiriam motivados a produzir textos escritos, pois, se compreensão precede produção, o input para a escrita tem de ser o desenvolvimento de práticas discursivas letradas, cuja dimensão social inclua os aspectos da cultura surda e sejam guiadas pela Língua de Sinais. Isso não equivale dizer que a prática pedagógica tenha que ser remodelada com a participação de outra língua, mas que é imprescindível o emprego de uma abordagem de segunda língua, alicerçada no modelo ideológico de letramento, de modo que a especificidade linguística dos surdos seja contemplada e, assim, eles possam desenvolver as habilidades que têm potencial para alcançar.

 Tal resultado somente foi possível por meio da relação colaborativa e da interação entre os participantes. A aula favoreceu também a socialização entre surdos e ouvintes, despertando o interesse dos alunos a aprenderem a Língua de Sinais.

 

Conclusão

Esse trabalho tem descoberto que: (1) devido à parca formação oferecida aos professores, as adaptações curriculares não têm sido implementadas; (2) e que a abordagem utilizada pelos professores é baseada no ensino de Língua Portuguesa como primeira língua para ouvintes, enfatizando a tradição gramatical nas práticas de leitura e escrita, quando deveria ser utilizada uma abordagem de segunda língua. Disso resulta, em parte, o quadro de fracasso escolar apresentado pelos alunos, porque, ao invés de oferecer práticas de letramento bilíngues, que possibilitem aos surdos se tornarem sujeitos letrados para a promoção de uma efetiva inclusão escolar e social, a escola tem se ocupado com a alfabetização em seu sentido estrito, no que tange tão somente o ensino da tecnologia da escrita. Dessa forma, é o meio social despreparado a fonte geradora das dificuldades de aprendizagem, e estas não têm, portanto, origem nos alunos surdos. Nesse caso, a língua deveria ocupar um lugar central, visto que, segundo Vygotsky (1934/2009), ela não tem apenas a função de comunicar, mas também de organizar e constituir o pensamento. Caberia aos professores, diante disso, terem proporcionado um ambiente com possibilidades que valorizassem a Língua de Sinais como constituidora e organizadora do pensamento dos alunos surdos, a fim de favorecer a construção de práticas de letramento bilíngues. Outros resultados encontrados indicam que (3) não há uma língua compartilhada em sala de aula entre professor ouvinte e aluno surdo, pois o único interlocutor em Língua de Sinais é o intérprete de Libras, e que, (4) por meio da relação colaborativa entre os participantes, foi possível desenvolver um tipo de adaptação curricular voltado a uma prática de letramento bilíngue, o que possibilitou outro olhar acerca do aluno surdo e das questões que permeiam a sua escolarização. Para Vygotsky ([1924]/1997, p. 231)

A possibilidade de colaboração coletiva entre surdos e ouvintes é uma das condições necessárias para os processos de melhoria profundos na educação. Quando o aluno surdo se desenvolve, através da coletividade e da colaboração, cria-se a base por meio da qual ele poderá desenvolver a linguagem [língua] e, consequentemente, apropriar-se do conhecimento escolar. Por este caminho, a pedagogia social tem obtido grandes resultados.

 

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Correspondência

Lucineide Machado Pinheiro – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP/Campus São Paulo. Rua Pedro Vicente, 625 - Canindé. CEP:  01109-010. São Paulo, São Paulo, Brasil.

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