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in Ciência Florestal
Quintais agroflorestais urbanos no sul da Amazônia: os guardiões da agrobiodiversidade?
RESUMO
Os quintais agroflorestais são uma prática milenar em várias partes do mundo e desempenham importantes papéis econômicos, culturais e de conservação da agrobiodiversidade. Sendo assim, o principal objetivo deste estudo foi realizar o levantamento das espécies vegetais em quintais agroflorestais urbanos em Alta Floresta - MT, sul da Amazônia; bem como analisar se contribuem para a conservação da agrobiodiversidade. Para tanto, realizou-se levantamento florístico em 30 quintais agroflorestais urbanos em 17 bairros, usando a técnica de visita guiada. Essa visita consistiu em uma caminhada pelo quintal na companhia da mantenedora, reunindo informações sobre as espécies. Também foi realizada entrevista semiestruturada. Para identificação in situ das espécies vegetais, os indivíduos foram registrados pelo nome popular e feito registro fotográfico. Os dados foram analisados ​​por meio do índice de Shannon-Wiener, equabilidade, frequência, densidades absoluta e relativa, índice de valor de importância e similaridade florística realizada através da análise de agrupamentos. Para isso, foi utilizado o coeficiente de similaridade de Bray-Curtis e o método UPGMA. Os cálculos das variáveis e dos índices foram realizados pelo programa FITOPAC 2.1. A análise estatística utilizada foi a descritiva. Foram encontradas 72 famílias botânicas, 7.106 indivíduos e 243 espécies. Os quintais têm uma densidade de 947,47 e um índice de Shannon-Wiener de 4,06. Os quintais apresentaram baixa similaridade. A área média dos quintais é de 0,25 ha. Encontrou-se alta diversidade de famílias botânicas, indivíduos e espécies por quintal agrupadas em oito categorias de uso: frutíferas, olerícolas, condimentares, grãos, madeireira, medicinal, ornamental e sombreamento. A categoria de uso de maior importância é a medicinal. A composição florística dos 30 quintais é heterogênea. Em Alta Floresta, onde a monocultura de pastagem e da soja é predominante, os quintais agroflorestais urbanos são uma maneira de conservação da agrobiodiversidade e contribuição também para a fauna local.
Main Text
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o processo de mecanização da agricultura na região amazônica do Mato Grosso submeteu a migração dos agricultores familiares às áreas urbanas. Nas cidades, estes acabam reproduzindo seu modo de vida camponês nos quintais de suas residências. Nesses quintais urbanos, o modo de vida é replicado através do plantio de diversas espécies vegetais, em alguns casos, espécies animais, porém a maioria de espécies é exótica.
O quintal cultivado é uma prática milenar em várias partes do mundo e desempenham papéis socioeconômicos e culturais importantes (JOSÉ; SHANMUGARATNAM, 1993). Os quintais são considerados uma extensão da casa, em que se tem uma relação afetiva com a vegetação e/ou animais. Esses espaços representam a memória da vida camponesa. Além dessa representação simbólico-afetiva, uma outra finalidade dos quintais é a “produção de alimentos que complementam significativamente a dieta alimentar familiar onde as práticas de manejo são ecologicamente sustentáveis” (NAIR, 1986, p. 281), quando planejados. Geralmente não há um planejamento para a implantação das espécies na maioria dos quintais, sendo o uso destes espaços de acordo com o que convenha às mantenedoras.
Nos quintais, espécies agrícolas, ornamentais, medicinais e florestais são arranjadas buscando-se aproveitar o máximo possível a área. Essa prática de arranjar espécies de diferentes estratos é chamada de sistema agroflorestal. Os quintais podem ser compreendidos como parte integrante de sistemas agroflorestais (FLORENTINO et al., 2007).
Os quintais agroflorestais são descritos de várias formas no idioma inglês como agroforestry homegardens, household ou homestead farms, compound farms, backyard gardens, village forest gardens, dooryard gardens e house gardens (KUMAR; NAIR, 2004). Os quintais são ambientes adequados para a conservação in situ (ESQUIVEL; HAMMER, 1992). Por meio de um plano de manejo adequado, os quintais agroflorestais constituem uma alternativa, de baixo custo, para a conservação da biodiversidade local (FLORENTINO et al., 2007) e da agrobiodiversidade, seja ela nativa ou exótica.
Para a Food Agriculture Organization (FAO), agrobiodiversidade é constituída por uma centena de seres vivos (animais, plantas e microrganismos) que são necessários para manter as funções essenciais dos agroecossistemas, suas estruturas e processos para produção de alimentos, segurança alimentar e melhoria da qualidade de vida (FOOD AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS, 2011).
Pesquisas envolvendo diversidade biológica em áreas urbanas se intensificaram nos últimos anos e voltaram sua atenção principalmente para os quintais que mantêm a riqueza de vegetação e de animais (EICHEMBERG; AMOROZO; MOURA, 2009). Entretanto, desde o início dos estudos sobre quintais, a pesquisa raramente se concentra em avaliar a importância dos quintais agroflorestais como repositórios da diversidade genética (GALLUZZI; EYZAGUIRRE; NEGRI, 2010). Além desse papel, os quintais são fundamentais na manutenção de microclima com temperaturas agradáveis na propriedade e com reflexos positivos na cidade e têm grande potencial para o sequestro de carbono (KUMAR, 2011)
Na Amazônia, como em outras partes do mundo, a pesquisa também se concentrou principalmente nas áreas rurais (WINKLERPRINS; OLIVEIRA, 2010). Apesar de sua importância, os quintais urbanos não foram extensivamente estudados no Brasil (ALBUQUERQUE; ANDRADE; CABALLERO, 2005), especialmente em Alta Floresta, Mato Grosso, no sul da Amazônia onde a monocultura de pastagem e da soja avançam sobre a floresta. Estudos sobre quintais produzem informações importantes e necessárias para a compreensão do potencial de domesticação, melhoria da utilização e conservação da agrobiodiversidade em quintais agroflorestais (AKINNIFESI et al., 2010). Os quintais são agroecossistemas de expressiva riqueza florística e faunística, com espécies vegetais que ocupam diferentes estratos e isso confirma a relevância dos papéis desempenhados por esses ambientes para conservação da agrobiodiversidade (RAYOL; MIRANDA, 2019).
Diante disso, questiona-se: nas regiões de predominância de monoculturas, como Alta Floresta no sul da Amazônia em Mato Grosso, os quintais agroflorestais podem ser os guardiões da agrobiodiversidade? Assim, o principal objetivo deste estudo foi realizar um levantamento florístico em quintais agroflorestais urbanos e analisar se eles contribuem para a conservação da agrobiodiversidade local.
2 MATERIAL E MÉTODOS
2.1 Área de estudo
O estudo foi realizado em 30 quintais agroflorestais em 17 bairros urbanos e periurbanos no município de Alta Floresta, Estado do Mato Grosso, no sul da Amazônia brasileira (Figura 1), no ano de 2015. O município de Alta Floresta (09°52'32" e 56°05'10") está localizado a uma altitude de 280 m acima do nível do mar e a 870 km da capital Cuiabá, com uma área de 9.212,5 km². A população do município é de 51.615 habitantes (IBGE, 2018). O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal-IDH-M de Alta Floresta, mensurado em 2010, é de 0,714, classificado como alto, mas ainda é inferior ao do estado de Mato Grosso e do Brasil, que correspondem a 0,725 e 0,727, respectivamente.
O clima é tropical, com duas estações bem definidas: verão chuvoso e inverno seco. As temperaturas variam entre 20,6 e 31°C, com média de 24,8ºC e precipitação pluviométrica entre 2.000 e 2.030 mm. Os solos predominantes são do tipo podzólico vermelho-amarelo e latossolo vermelho-amarelo. O município apresenta áreas topográficas planas (com até 3% de declive), correspondendo a 30% da área total; levemente plana (3-8% de inclinação), ocupando área maior que 55%; topografia ondulada (8 a 20% da inclinação), ocupando 10%; e área montanhosa (acima 45-75% da inclinação), ocupando cerca de 5% do município (GERVAZIO, 2015).
A região de Alta Floresta, localizada no norte de MT foi ocupada na década de 1970. A abertura da fronteira agrícola no norte do estado contou com o absoluto controle sobre o território, através da colonização privada (VIEIRA, 2005). Esse processo foi executado de forma predatória e provocou uma transformação social e ambiental radical na Amazônia mato-grossense (SOUZA, 2015). Atualmente, o cenário agropecuário de Alta Floresta apresenta a predominância da monocultura de pastagens e, ultimamente, de soja. Sendo assim, a alta concentração de pecuária e de lavoura podem ser notadas em todo o município, nos quais a floresta ainda está em processo de esgotamento.
2.2 Métodos de amostragem
A amostragem utilizada foi a não probabilística por conveniência. Os 30 quintais selecionados foram os mais promissores, de acordo com a secretaria municipal de agricultura de Alta Floresta. Foram utilizados os seguintes critérios para a escolha dos quintais: disposição das pessoas em participar da pesquisa; diversidade de espécies; e produção para subsistência e comercialização.
Foram realizadas três visitas em cada quintal para a coleta dos dados, em diferentes estações do ano (estação seca e estação chuvosa). Foram coletados dados para conhecer a riqueza, a composição e a função das espécies vegetais, categorizando-as de acordo com o tipo de uso. A categorização se deu a partir do levantamento com o mantenedor ou a mantenedora do quintal que indicava o uso de cada espécie. Dessa forma, o agrupamento se deu em oito categorias de uso: frutíferas (frut), olerícolas (oler), condimentares (cond), grãos (gr), madeireira (mad), medicinal (med), ornamental (orn) e sombreamento (somb).
2.3 Método de coleta de dados
2.3.1 Levantamento florístico e identificação botânica
Foi realizado um levantamento do número de indivíduos e espécies de plantas nos quintais, de acordo com o conhecimento das(os) mantenedoras(es) dos quintais. Utilizou-se a técnica visita guiada (ALBUQUERQUE; ANDRADE; CABALLERO, 2005), que consistiu em uma caminhada pelo quintal na companhia do mantenedor(a), reunindo informações sobre as espécies ali presentes. Durante o passeio, foi realizada uma entrevista semiestruturada para a coleta de informações sobre o tamanho da área, a idade do quintal, quais espécies estavam presentes e qual a finalidade de cada espécie.
Para identificação in situ das espécies vegetais, os indivíduos foram registrados pelo nome popular e feito registro fotográfico. Posteriormente, foram consultadas bibliografias e sítios especializados para identificar o nome botânico de cada espécie. Os nomes científicos das espécies foram atualizados pelos respectivos autores no endereço eletrônico da lista de espécies da Flora do Brasil do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (REFLORA/CNPq), além de consulta a especialistas em botânica da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).
2.4 Análise dos dados
Os parâmetros quantitativos utilizados para avaliar cada quintal agroflorestal foram o Índice de diversidade de Shannon-Wiener (H'); a Equabilidade expressa por Pielou; a Frequência (F); as Densidades (absoluta e relativa); o Índice de Valor de Importância - IVI (PITELLI; BIANCO, 2013); e a Similaridade florística realizada através da análise de agrupamentos a partir da matriz de abundância de espécies em cada quintal. Para tanto, foi utilizado o coeficiente de similaridade de Bray-Curtis, através do método de par médio não ponderado por média (UPGMA). A similaridade foi representada por agrupamentos, a fim de verificar a formação de grupos de quintais.
Os cálculos das variáveis e dos índices foram realizados pelo programa FITOPAC 2.1. A análise estatística utilizada foi a descritiva.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Tamanho e tempo de uso dos quintais agroflorestais urbanos
A maior propriedade estudada possui uma área de 7,0 ha e a menor, 0,05 ha. A área média das propriedades é de 0,98 ha. Já a maior área dos quintais agroflorestais foi de 0,80 ha e a menor de 0,02 ha. A área média dos quintais agroflorestais urbanos estudados de Alta Floresta - MT é de 0,25 ha.
Dos 30 quintais agroflorestais pesquisados, quatro têm uma proporção de 100% área do quintal/propriedade. A menor proporção foi de 4,25%. A relação média quintal/propriedade foi de 25,85%. Quanto ao tempo de uso dos quintais agroflorestais, houve variação entre 4 e 25 anos. A maioria (30%) dos quintais tem entre 6 e 10 anos de ocupação. Outros 26,7% dos quintais possuem de 11 a 15 e 16 a 20 anos de consolidação. A média de tempo de ocupação dos quintais é de 13,7 anos (Tabela 1).
A maioria dos quintais agroflorestais possui uma área pequena quando relacionada ao tamanho geral das propriedades na cidade. Embora não exista tamanho padrão ou ideal para um quintal agroflorestal, os estudos realizados por Nair (1986) e Kumar (2011), em diferentes regiões tropicais do mundo, concluem que o tamanho médio de um quintal era geralmente muito menor que um hectare, indicando a natureza de subsistência da prática.
O tamanho dos quintais no Brasil e no mundo é muito variável, de alguns metros a 5,0 ha (GAZEL FILHO, 2008). Na Amazônia brasileira, Dubois, Viana e Anderson (1996) verificaram poucos quintais em uma área superior a 1,0 ha. Rondon Neto et al. (2004), estudando quintais no estado do Paraná, encontraram quintais com média de 0,025 ha.
Assim, o espaço físico é um fator, dentre vários, que influencia a sobrevivência de quintais agroflorestais como áreas de manutenção da agrobiodiversidade e produção em pequena escala (GUARIM NETO; CARNIELLO, 2008). Esse espaço físico varia de acordo com a condição econômica da família e o tempo de ocupação do espaço (NAIR, 1986).
Na Amazônia central, Lima e Saraguossi (2000) estudaram quintais que representavam 10% da área total da propriedade. Já com relação à idade dos quintais, Gomes (2010) considera quintais entre 10 e 40 anos em estabelecimento. Os autores acima citados, assim como neste trabalho, não encontraram relação entre os quintais antigos e a maior diversidade de espécies, após análise visual dessas informações e comparação.
3.2 Composição florística dos quintais agroflorestais urbanos
No presente estudo, as famílias botânicas com o maior número de espécies encontradas foram Fabaceae (8,23%), Asteraceae (6,17%), Myrtaceae (4,94%) e Lamiaceae (4,94). As que apresentaram o maior número de indivíduos foram: Euphorbiaceae (1201), Musaceae (779), Malvaceae (644), Poaceae (358), Amaryllidaceae (313), Rubiaceae (277) e Araceae (268). As variáveis estudadas permitiram observar a diversidade na composição florística de famílias botânicas dos quintais agroflorestais urbanos (Tabela 2).
O número médio de indivíduos por quintal foi de 236, enquanto que para o número de espécies, a média foi de 8,1. O quintal 9 possui a maior área e o maior número de espécies. Entretanto, não há relação direta entre os fatores área, tempo de ocupação, número de espécies, famílias e indivíduos no quintal agroflorestal urbano, possivelmente por ausência de um plano de manejo. Assim, o tamanho e o tempo de ocupação dos quintais não interferiram na diversidade de espécies. Das 243 espécies, a Manihot esculenta Crantz (mandioca) foi a mais abundante, além de apresentar maiores densidades absoluta, relativa e Índice de Valor de Importância (Tabela 3).
A partir da análise das 243 espécies encontradas nos 30 quintais (Figura 2), observou-se que 83 espécies são exclusivas, o que significa que apareceram em apenas um quintal. Cinco quintais apresentaram muitas espécies exclusivas, variando de sete a dez espécies. A exclusividade de espécies está atrelada a fatores pessoais, intrínsecos às necessidades e conhecimentos do(a) mantenedor(a).
A presença do Theobroma grandiflorum Willd. ex. Spreng. K. Schum (cupuaçu) foi observada em 18 quintais e de Euterpe oleraceae Mart. (açaí) em 14. Isso demonstra certa preocupação com o uso e a valorização de espécies vegetais nativas da região Amazônica. Consequentemente, contribuindo para o fortalecimento de uma cultura local.
O quintal que apresentou o maior Índice de Shannon-Wiener foi o de número 17 com 3,553. Esse alto índice deve-se ao fato de que este é um dos quintais que apresentou maior riqueza de espécies. Vale ressaltar que o quintal em questão apresentou maiores densidades absoluta e relativa.
Todos os quintais apresentaram valores acima de 0,500 de equabilidade (Tabela 4). Isso significa que a equabilidade dos quintais pesquisados está próxima de um ecossistema natural. A equabilidade de Pielou propõe que, quanto mais próximo do valor 1,00, maior será a diversidade de espécies e uma melhor distribuição entre o número de indivíduos por espécie (VIEIRA; ROSA; SANTOS, 2012).
A alta diversidade de espécies encontradas nesta pesquisa está de acordo com vários estudos que descrevem a vegetação em regiões tropicais: Amazônia peruana (PERRAULT-ARCHAMBAULT; COOMES; PERRAULT-ARCHAMBAULT, 2008); Mesoamérica (MONTAGNINI, 1992); Brasil (PERONI et al., 2016); e Regiões tropicais (KUMAR, 2015).
A diversidade de culturas agrícolas encontradas nos quintais reflete necessidades específicas (incluindo necessidades alimentares e prioridades e preferências alimentares das famílias), nutricionais complementares pelas principais fontes alimentares, em oposição a fatores econômicos, ecológicos e sociais (KUMAR; NAIR, 2004).
Essa diversidade de espécies encontrada nos quintais agroflorestais urbanos em Alta Floresta é maior que a relatada por vários autores em diferentes estados amazônicos (HIRAOKA et al., 2003; WINKLERPRINS, 2003). A alta diversidade é resultado de uma combinação de espécies nativas e exóticas. Do total de 243 espécies encontradas nos quintais urbanos de Alta Floresta, 33,75% são de espécies nativas e 66,27 são exóticas. Das exóticas, sete espécies foram identificadas como plantas exóticas invasoras. Trabalhos registraram 31 espécies exóticas invasoras, ou potencialmente invasoras para a Amazônia Legal brasileira (SILVA; SILVA-FORSBERG, 2015). As espécies exóticas predominam nos quintais de Alta Floresta, devido ao município ser colonizado por pessoas de diferentes estados brasileiros. Os quintais são reflexos da cultura de cada mantenedora.
No trabalho de Almeida e Gama (2014), as espécies exóticas também foram predominantes com cerca de 78% do total. Esses resultados condizem com a crescente influência externa decorrente, principalmente, de aspectos como a miscigenação de culturas, por sua vez justificada pela migração (ALMEIDA; GAMA, 2014). Importante salientar que as espécies nativas foram encontradas em todos os quintais agroflorestais de Alta Floresta, assim como em estudos em outras regiões (ALMEIDA; GAMA, 2014). Outra questão a ser considerada é o fato de haver poucas espécies nativas da Amazônia de uso alimentar e medicinal conhecidas na cidade.
Florentino et al. (2007) encontraram elevado percentual de espécies exóticas na localidade por eles estudada, na maioria dos casos, trazidas por parentes, amigos ou vizinhos. Espécies exóticas, variedades inexistentes na região também são incorporadas aos hábitos locais. No que se refere às exóticas invasoras, do total de espécies introduzidas em um ambiente, apenas 0,01% tornam-se invasoras, pois grande parte dessas é eliminada em um dos estágios de invasão no novo habitat (WILLIAMSONS; FITTER, 2006). Mesmo que poucas espécies exóticas se tornem invasoras, os impactos que essas causam aos ecossistemas podem ser desastrosos econômica e ambientalmente (SILVA; SILVA-FORSBERG, 2015).
Maior diversidade indica maior complexidade em um sistema e, em geral, menor vulnerabilidade. Assim, o índice de diversidade é uma ferramenta para o gerenciamento de agroecossistemas, pois pode servir como um indicador do equilíbrio do sistema ecológico (MACHADO et al., 2005).
3.3 Similaridade florística dos quintais agroflorestais urbanos
Os 30 quintais apresentaram baixa similaridade, “pois similaridades abaixo de 50% são consideradas baixas” (PEREIRA et al., 2010, p. 76). Sendo assim, a vegetação estudada dos quintais agroflorestais urbanos apresentou composição florística própria, heterogênea amparada pelos baixos níveis de similaridade (Figura 3).
A partir da análise de similaridade, obteve-se a formação de sete grupos. O maior grupo (cluster um) obteve 14 quintais; o segundo, sete quintais; o terceiro grupo, cinco; e os outros grupos (quarto, quinto, sexto e sétimo) foi representado por apenas um quintal. Para realizar a formação dos sete grupos, considerou-se a taxa de similaridade abaixo de 50%.
Essa baixa similaridade se deve ao alto índice de diversidade, apresentado anteriormente. Os quintais que apresentaram maior similaridade foram o 5 e o 10, com aproximadamente 100%; e os quintais 11 e 22, com aproximadamente 95%.
Esses resultados dos agrupamentos se deram devido às características comuns entre os grupos de quintais, como a área, o tempo de ocupação, o número de famílias botânicas e de espécies presentes em cada quintal. A localização geográfica dos quintais estudados e a proximidade ou não dos quintais não refletiram na similaridade deles.
3.4 Categorias de uso das espécies vegetais dos quintais agroflorestais urbanos
As espécies identificadas nos quintais foram agrupadas em oito categorias de uso: frutíferas (frut.), olerícolas (oler.), condimentares (cond.), grãos (gr.), madeireira (mad.), medicinal (med.), ornamental (orn.) e sombreamento (somb.). Algumas espécies mencionadas se encaixam em mais de uma categoria de uso. No entanto, para as porcentagens de categorias, foi considerado o principal uso da espécie.
Espécies de plantas com algum objetivo medicinal conhecido pelas mantenedoras são 22,64% das espécies, sendo 55 espécies, dentre as 243 encontradas. As espécies com maior número de indivíduos verificados foram Morinda citrifolia L. (noni), seguidas por Plectranthus L'Hér Andrews (boldo) e Alternanthera dentata (L.) Kuntze (terramicina). A predominância do noni é explicada pela disseminação de propriedades medicinais em diversos canais de comunicação da cidade. No Mato Grosso, estudos indicam que as plantas medicinais são as primeiras a serem utilizadas e seu uso é expressivo em Juruena - MT (MACIEL; GUARIM NETO, 2008). No nordeste brasileiro, 26% de todas as espécies identificadas são para fins medicinais (ALBUQUERQUE; ANDRADE; CABALLERO, 2005). Outras espécies, em especial as nativas, poderiam ser consideradas medicinais. No entanto, o potencial dessas espécies permanece pouco descrito pela ciência.
Na categoria de frutíferas, as espécies que mais se destacaram foram Musa sp. L. (banana), com 764 indivíduos; Theobroma grandiflorum (Willd. Ex Spreng.) K. Schum. (cupuaçu), com 647 plantas; Ananas comosus (L.) Merril (abacaxi), com 265 plantas; Euterpe oleracea Mart. (açaí), com 207 indivíduos; e Mangifera indica L (manga), com 119 plantas. Nos quintais foram encontradas 53 espécies frutíferas, em um total de 21,82% de todas as espécies identificadas. A presença do cupuaçu (T. grandiflorum) foi observada em 18 quintais e açaí (E. oleracea) em 14. Esse dado também indica que os responsáveis pelos quintais estão utilizando plantas nativas da região, contribuindo para a construção de uma cultura local.
Nos quintais, foram encontradas 38 espécies ornamentais, que representa 15,64% de todas as espécies identificadas. As espécies que mais se destacaram em relação ao número de indivíduos foram: Ixora coccinea L. (ixória), com 153 indivíduos, e Catasetum ssp. Rico ex Kunth (orquídeas), com 38 plantas. Ficou evidente o interesse dos responsáveis por manterem os quintais com boa aparência, cultivando essas espécies na frente e/ou nas laterais das casas.
Na categoria sombreamento, a maioria das espécies é florestal. Foram identificadas 36 espécies, representando um total de 14,82% de todas as espécies dos 30 quintais. As espécies mais frequentes foram Mauritia flexuosa L. f. (buriti) com 58 indivíduos; Handroanthus impetiginosus (Mart. Ex DC.) Mattos (ipê-roxo), com 46 plantas, e Schizolobium amazonicum Huber ex. Ducke (pinho-cuiabano), com 28 plantas. Nem todas as espécies da categoria sombreamento identificadas foram plantadas; a maioria cresceu espontaneamente, constituindo uma floresta no sentido de sombrear a residência.
Nos quintais, foram encontradas 30 espécies de olerícolas (12,35%) cultivadas para a alimentação humana, sendo as mais representativas: Manihot esculenta Crantz (mandioca), totalizando 1.173 indivíduos, e Colocasia esculenta (L.) Schott. (inhame), com 184 plantas. Segundo a maioria das mantenedoras dos quintais, o principal objetivo do plantio de hortaliças é comercializar e, em segundo lugar, suplementar os alimentos. O plantio dessas espécies ocorre em canteiros convencionais ou em materiais reaproveitados.
Na categoria condimentares, as espécies totalizaram 4,53% de todas as espécies. Nos quintais foram encontradas 11 espécies, as quais se destacaram em número de indivíduos: Allium fistulosum L. (cebolinha), com 313 plantas; Crocus sativus L. (açafrão), com 42 indivíduos; Zingiber officinale Rosceae (gengibre), com 36 plantas; e Cinnamomum zeylanicum J. Presl (canela), com 16 plantas.
Outra categoria foi a de grãos, utilizados na alimentação humana e animal, que representaram 4,12% de todas as espécies. Nesta, 10 espécies foram encontradas, sendo Zea mays L. (milho) a espécie com maior número de indivíduos (260), seguida por Phaseolus vulgaris L. (vagem-de-feijão) com 53 plantas.
Outras espécies importantes foram Sesamum indicum L. (gergelim), Canavalia ensiformis (L.) DC. (feijão-de-porco) e Arachis hypogaea L. (amendoim). O uso desses grãos ocorre principalmente em alimentos humanos. O excedente é utilizado na alimentação de animais, como no caso de Z. mays L., enquanto o S. indicum L. (gergelim-preto) é utilizado como prática agroecológica no controle de formigas-cortadeiras, segundo os entrevistados. Geralmente existe o hábito de troca de sementes e mudas entre os vizinhos.
Dez espécies foram encontradas na categoria madeireira, representando espécies que podem ser utilizadas na extração de matéria-prima, representando 4,12% das espécies. Hymenaea courbaril L. (jatobá) com 15 indivíduos, juntamente com Bertholletia excelsa Bonpl. (castanha-do-Brasil) e Cedrela fissilis Vell. (cedro) com 10 indivíduos cada. Aqui também as espécies nativas são predominantes. O principal objetivo do cultivo dessas espécies é o uso em cabos de ferramentas, cercas, lenha, etc.
Das oito categorias de uso levantadas neste estudo, a medicinal se destacou. O cultivo de plantas medicinais em quintais é muito difundido em todas as regiões do Brasil, o que permite autonomia familiar, pelo menos no que diz respeito ao tratamento de problemas comuns de saúde (AMOROZO, 2008). Essa forma de uso se destaca e adquire valores econômicos e ecológicos importantes, principalmente se analisadas as famílias botânicas e seus representantes.
Importante destacar a produção de alimentos e temperos nas demais categorias. Portanto, esse cenário reforça a importância dos quintais na produção de alimentos para autoconsumo, para maior segurança alimentar (NAIR, 1986) e, consequentemente, a melhoria da qualidade de vida.
É salutar a presença de árvores nos quintais urbanos. Assim, considera-se que essas plantas desempenham papel fundamental na manutenção do microclima, com temperaturas agradáveis, diminuindo a amplitude térmica, e com impactos positivos no ambiente urbano. Além disso, essas plantas fornecem abrigo e alimento para a fauna nativa que é um componente desses espaços. A fauna, consequentemente, traz benefícios para os quintais como a dispersão de espécies e aumento da agrobiodiversidade.
4 CONCLUSÕES
Os quintais agroflorestais urbanos de Alta Floresta - MT, no sul da Amazônia brasileira, são em média pequenos. Contudo, apresentam riqueza florística e alta diversidade de espécies vegetais. O uso das espécies dos quintais, em sua maioria exóticas, também é diverso, sendo o uso medicinal o mais relevante, seguido do alimentar. Ainda pouco se conhece, na região, das espécies nativas que possuem finalidades alimentícia e medicinal. O cultivo, a finalidade e a forma de uso de diferentes espécies são importantes para diversificar a produção agrícola e para a segurança alimentar. Diante disso, em Alta Floresta, onde a monocultura da pecuária e da soja é predominante, com base na florística dos quintais urbanos, estes possuem papel fundamental na conservação da agrobiodiversidade. No entanto, são necessárias estratégias de controle e de manejo de espécies exóticas invasoras para diminuírem os impactos e os riscos decorrentes da contaminação biológica nos quintais agroflorestais.
RESUMO
Main Text
1 INTRODUÇÃO
2 MATERIAL E MÉTODOS
2.1 Área de estudo
2.2 Métodos de amostragem
2.3 Método de coleta de dados
2.4 Análise dos dados
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Tamanho e tempo de uso dos quintais agroflorestais urbanos
3.2 Composição florística dos quintais agroflorestais urbanos
3.3 Similaridade florística dos quintais agroflorestais urbanos
3.4 Categorias de uso das espécies vegetais dos quintais agroflorestais urbanos
4 CONCLUSÕES