Universidade Federal de Santa Maria

Ci. e nat., Santa Maria, V. 42, Special Edition, e5, 2020

DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179460X40267

Received: 10/10/2019 Accepted: 10/10/2019

 

 


Special Edition

 

Projeto de Extensão Prática Corporal em Dança Flamenca

 

Bodily practices in flamenco dance at an University Extension Project

 

 

Stéphane Soares VieiraI

Verônica Garcia DonosoII

 

Universidade Federal de Santa Maria – Campus Cachoeira do Sul, Brasil - tefi_vieira@hotmail.com

II Universidade Federal de Santa Maria – Campus Cachoeira do Sul, Brasil - veronica.donoso@ufsm.br

 

 

Resumo

O Projeto de Extensão “Prática corporal em dança flamenca:  o espaço relacional de um corpo sensível” apresenta à comunidade de Cachoeira do Sul-RS bases de consciência corporal, movimentação, expressão e interpretação através do aprendizado e conhecimento da cultura e dança flamenca. O flamenco é reconhecido pela UNESCO desde 2010 como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, e é uma expressão artística resultante da união entre cante, toque musical e movimentação corporal, sendo uma da arte complexa que deve ser entendida a partir do conjunto desses elementos. Essa composição tem como objetivo a narrativa de alguma história (cantada na música) e expressão dos sentimentos que essa história traz (como por exemplo tristeza, alegria ou pesar). O projeto conta com a participação da comunidade acadêmica e geral da cidade de Cachoeira do Sul, desenvolvendo a expressão e consciência corporal, combatendo o sedentarismo, trazendo qualidade de vida aos participantes, melhorando a postura e autoestima, propondo desafios e trabalho em equipe. O público alvo do projeto é composto de adultos e jovens de todos os gêneros, propondo a interação e aprendizado entre diferentes públicos. A arte é de todos e para todos, e a disseminação de diferentes culturas contribui positivamente para a formação cidadã.

Palavras-chave: Flamenco; Dança; Consciência corporal

 

 

Abstract

The extension project “Bodily practices in flamenco dance: the relational space of a sensible body” brings the community of Cachoeira do Sul, RS, bases of body awareness, movement, expression and interpretation through the learning and knowledge of flamenco culture and dance. Flamenco has been recognized by UNESCO since 2010 as an Intangible Cultural Heritage of Humanity, being an artistic expression resulting from the composition of the song, musical touch and body movement, being only possible through the understanding of the art as a set of these elements. This composition has as its main objective to narrate a story (present in the song) and to express the feelings that such story brings (for example, sadness, happiness, regret). The project has the participation of the academic community and the general community of Cachoeira do Sul alike, developing expression and body awareness, fighting against sedentary, bringing quality of life to participants, improving posture and self-esteem, proposing challenges and teamwork.  The project’s target audience ranges from young people to adults of all genders, proposing interaction and learning between different audiences. Art belongs from everyone to everyone, and the spread of different cultures makes a very positive contribution to the citizen formation.

Keywords: Flamenco; Dance; Body consciousness

 

 

1 Introdução

O Projeto de Extensão “Prática corporal em dança flamenca” envolve a comunidade acadêmica da Universidade Federal de Santa Maria – Campus Cachoeira do Sul e a comunidade geral da cidade através da arte flamenca. As atividades ocorrem por meio de aulas de dança, com exercícios de expressão, desenvoltura, consciência corporal, aprendizado de coreografias, compassos musicais, entre outros. O projeto objetiva conhecer mais sobre o flamenco através do estudo da cultura espanhola, suas origens, as influências de cada povo para formação da dança e cultura flamenca e os tipos de bailes e palos (ritmos).

É importante destacar que a dança flamenca é composta por um conjunto de elementos, e só é possível a sua compreensão através da totalidade destes, sendo: o cante, a movimentação corporal e a música. Assim, procura-se estimular os participantes a escutarem e entenderem as histórias contadas e cantadas pela guitarra e cante, reconhecendo os sentimentos que a musicalidade propõe e buscando, através da expressividade corporal, a interpretação dos sentimentos.

O flamenco é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade desde 2010. Assim como o folclore brasileiro tem suas diversas expressões artísticas e importância cultural para os brasileiros, o flamenco é uma arte de grande relevância para a história e cultura espanhola, contribuindo na compreensão da história de algumas regiões da Espanha, seus processos de ocupação territorial e a criação de uma arte específica através da junção multicultural de diversos povos que habitaram a península ibérica. A cultura e dança flamenca, assim, está relacionada à história da formação de um território e o encontro de diferentes povos, cada um influenciando com um pouco de sua cultura, para a consolidação dessa arte.

Em uma sala de aula tradicional, o aluno tende a estar sentado e raramente desenvolver sua expressão corporal, retendo formas de se expressar e pouco interagindo com os colegas. Também há o receio – ocasionado muitas vezes por vergonha ou medo – dos alunos de se posicionarem frente à classe para apresentar um trabalho. No projeto, as aulas apresentam-se de forma dinâmica com aprendizado da dança e cultura flamenca, em que todos os alunos são tratados como aprendizes de uma arte nova. Trabalha-se o desenvolvimento da expressão individual, melhorando a autoestima, postura, forma de se movimentar, consciência sobre cada movimento do seu corpo e formas de se expressar. Dessa forma, esta extensão dá a oportunidade aos alunos e membros da comunidade de integrar ao conhecimento intelectual a expressão artística através do movimento.

A dança favorece a criatividade, ampliando as possibilidades de processos de aprendizagem e trazendo um momento de usufruto lúdico que rompe tensões decorrentes de atividades do dia a dia. Além disso, o projeto tem como objetivo envolver a comunidade externa à universidade, enfatizando o papel social da instituição através das atividades extensionistas. Também busca realizar o papel social através da disseminação da cultura e dança flamenca em locais que possam se beneficiar de atividades artísticas para melhorar a qualidade de vida e saúde física e mental das pessoas que frequentam esses lugares, tais como hospitais, asilos, escolas públicas e privadas. Dessa forma, busca-se contribuir na formação cidadã, levando novos conhecimentos através de atividades culturais relacionadas à dança flamenca.

O artigo está organizado em temas para a compreensão dos conceitos utilizados para o desenvolvimento do projeto, começando com bases de consciência corporal, seguida da história da dança flamenca, os bailes e as músicas, e, em terceiro, a explicação do projeto e sua realização na cidade de Cachoeira do Sul.

 

 

2 Consciência corporal

A consciência corporal pode ser definida como ter conhecimento sobre o próprio corpo. Significa reconhecer suas limitações, aprender a movimentar-se corretamente, tentar melhorar a relação da mente com o corpo e posicionar-se corretamente ao realizar diversas atividades durante o dia a dia (RUNWAY, 2018).

A importância dessa consciência se relaciona com vários fatores: adquirindo conhecimento sobre o nosso corpo e como movimentar-se corretamente em certas situações, por exemplo, ao exercer uma atividade física, seja ao praticar uma corrida ou dançar, evita-se lesões e problemas musculares. Também influencia na melhora da postura, no alongamento da coluna, no correto posicionamento dos ombros que, consequentemente, não lesionam os músculos dos ombros, no posicionamento dos braços, pernas, quadris, mãos, pés e outros membros e músculos (LACOMBE, 2018).

A partir da consciência corporal entende-se como cada parte do corpo se movimenta. Pode-se pensar a movimentação separadamente, compreendendo o movimento e a musculatura envolvida, para posteriormente realizar uma movimentação que envolva o corpo todo. A partir dessa compreensão do movimento isolado e completo aprende-se como o corpo se organiza no espaço e quais as suas limitações. Assim, a consciência corporal é necessária para prevenir lesões.

Além da consciência corporal ser extremamente importante ao realizar atividades físicas, esse autoconhecimento também é indispensável para realizarmos as atividades do cotidiano, que geralmente fazemos de modo automático, como por exemplo, quando se está sentado utilizando o computador ou assistindo televisão. Pensar na posição que o corpo está no momento destas ações e quais movimentos são feitos para chegar e sair desses posicionamentos (como nos sentamos, como levantamos), pode nos ajudar a melhorar a postura, evitar desconfortos e prevenir problemas mais sérios (BERTAZZO, 2015).

Para adquirir a consciência corporal, inicia-se com a observação dos movimentos feitos no dia a dia, desde o pisar no chão até a posição de dormir, observando qual o esforço feito por cada parte do corpo para sentar, agachar, carregar algum objeto, segurar um copo de água, entre outros diversos movimentos que fazemos ao longo do dia (BERTAZZO, 2015).

A relação de corpo-espaço se materializa a partir da compreensão de que há um prolongamento do próprio corpo, e que forma uma unidade entre corpo e espaço. Para Duarte e Silva (2017), a consciência corporal permite o autoconhecimento, o aprendizado da corporeidade e sua subjetividade, que é primordial para a dança. Os autores sugerem exercícios que explorem a análise de si mesmo e suas possibilidades criativas, além de explorar a relação eu-outro, permitindo a troca com diferentes corpos e a compreensão das diferenças.

Essa base conceitual ganha conteúdo teórico através de trabalhos como o de Rudolf Laban (2006) e Merleau-Ponty (1999), que analisam a movimentação livre do corpo no espaço, além da conexão com a afetividade e, logo, expansão das emoções no corpo-espaço (LABAN, 2006).

Na análise de movimento de Laban (2006) estão presentes quatro fatores: Espaço, Tempo, Peso e Fluência. Em cada um desses fatores atuam ainda dois elementos derivados da atitude, chamados elementos atitudinais. Assim, no Peso atuam atitudes relaxadas ou energéticas, enquanto no fator Tempo há uma atitude curta ou prolongada. Já no fator Espaço pode-se identificar uma atitude linear ou flexível, e no fator Fluência uma atitude mais liberta ou controlada. Assim, são oito elementos atitudionais, que se conjugam com fatores formando distintas ações corporais, com diversas opções de combinações e nuances. A qualidade do movimento não é somente relacionada com os fatores, mas principalmente com os elementos atitudinais frente aos fatores. Dança é, portanto, o espaço relacional de um corpo sensível.

 

2.1. Consciência corporal e a dança flamenca

A dança flamenca é marcada pelo movimento de mãos, braços e técnicas de sapateado. Para a sua execução é necessário que os joelhos estejam levemente flexionados, para diminuir o impacto das articulações e permitir maior força no sapateado. Por outro lado, os movimentos dos membros superiores são, em geral, mais alongados, com os braços e mãos elevados em relação ao restante do corpo. O flamenco, assim, pode ser lido pela oposição dos movimentos aterrados dos membros inferiores e dos movimentos alongados dos membros superiores. 

O desenvolvimento da consciência corporal durante o aprendizado da dança flamenca ocorre paulatinamente, e esse processo de reconhecimento do corpo e da movimentação de cada membro é necessário para a execução da dança, de forma que cada parte do corpo tenha uma estrutura adequada, mas realizando movimentos diferentes concomitantemente. Assim, simultaneamente ocorrem o sapateado e a movimentação diferente de braços e mãos.

No início do aprendizado da dança flamenca, observa-se uma dificuldade na realização dos movimentos das mãos juntamente com os braços, pernas e pés, isso porque não há a consciência corporal das articulações de mãos e braços que permite dissociar, por exemplo, o movimento das mãos, punhos e dedos do restante do movimento dos braços. Por outro lado, os movimentos das pernas e pés são de mais rápido aprendizado, por se assemelham a movimentos usuais cotidianos do caminhar.

Para desenvolver a consciência, são realizados diversos exercícios movimentando cada parte que forma o conjunto da dança, aprendendo a movimentar corretamente os dedos, mãos e pulsos, e adicionando outros elementos quando estes se tornam mais confortáveis de serem realizados, ou seja, quando se acostuma o corpo a realizá-los com naturalidade.

 Durante as aulas esses exercícios são feitos em etapas: primeiramente estudam-se os movimentos de dedos e mãos; após o aquecimento das articulações passa-se a treinar a estruturação dos braços juntamente com a movimentação dos dedos e mãos, podendo ser observado um exemplo desse exercício na Figura 1. Depois, estuda-se isoladamente a movimentação dos pés e pernas e a composição desses movimentos no corpo-espaço. Também se estuda separadamente as bases para a realização dos sapateados e principalmente a estruturação adequada do corpo para realizar os movimentos. Após todos os exercícios dos diferentes membros e estruturação do corpo como um todo, passa-se a estudar o conjunto das movimentações, executando-os a partir de uma montagem coreográfica.  

 

Figura 1- Registro dos exercícios de movimentação das mãos e estruturação dos braços realizados durante a aula

 

2.2 Expressão corporal e a dança flamenca

Como comentado, a expressão corporal é fundamental para uma boa execução da dança flamenca, que é caracterizada por ter os pés mais presos ao chão e os braços mais elevados, por movimentos de mãos e pulsos característicos, ao mesmo tempo em que se desenvolve o sapateado. Tudo isso, executado concomitantemente, requer concentração para que sejam executados corretamente. De acordo com a composição da dança flamenca (cante, dança e toque), expondo na letra da música a narrativa de uma história, cabe ao bailaor ou bailaora expressar corporalmente o está sendo contado, para que o espectador capte a essência do relato.

A expressão corporal, assim como a consciência corporal, é desenvolvida ao longo do tempo, como se fosse um teatro juntamente com a dança. É necessário ter certa sensibilidade e aproximação com a música e coreografia, e também aprender a colocar os sentimentos na expressão do corpo, como paixão, alegria ou pesar. A expressão corporal diz muito sobre os sentimentos e sobre determinadas situações em que as pessoas se encontram e faz muita diferença sob o olhar do espectador. A imagem abaixo (figura 10) demonstra algumas expressões que podem ter impactos na interpretação de quem as vê. Por exemplo, a postura e a ausência de postura podem indicar confiança e falta de confiança durante a realização de apresentações e, também, de atividades cotidianas.

 

Figura 10- Ilustração de ausência de postura e a presença de postura

 

Além disso, as expressões faciais também são importantes, pois as letras das músicas contam histórias, como demonstrado na figura 11.

 

Figura 11 – Fotografia de baile no espetáculo da Associação Cultural de Dança Espanhola Cuadra Flamenca, em 2014. Na imagem a bailaora Verônica Donoso e os cantaores Elsa Maya e Fernando de Marília

Fotografia: Ignacio Aronovich

 

 

3 Sobre a dança flamenca

Muitos autores afirmam que o flamenco é uma arte em constante transformação, como afirma Silvia de Rezende Canarim (2017) na sua dissertação em Artes Cênicas:

Desde seu surgimento, em meados do século XIX, o Flamenco – que se expressa através da união da dança, da música e do canto – vem evoluindo e assimilando as novas transformações histórico-culturais de seu tempo. (CANARIM, 2017, p.14)

 

De fato, o seu surgimento foi possível pela miscigenação de diversos povos, cada um contribuindo com um elemento de sua cultura.

O estudo do Flamenco não se relaciona somente ao conhecimento da movimentação corporal, pois depende da compreensão do que está sendo dito para ser representado corporalmente ou musicalmente. Na dança Flamenca isso é bastaste claro, pois há uma interação entre o bailaor/a, o/a guitarrista e o/a cantaor/a. Na tríade baile/toque/cante que se forma, há a narrativa de um sentimento, que pode ser tanto transmitido pelos artistas aos expectadores como somente ser utilizado como um diálogo entre os participantes, sem necessidade de público expectador.

O sentimento cantado é, logo, representado visualmente pelo bailaor/a. A atuação corporal é uma manifestação que, a partir da movimentação, se conecta com uma narrativa e se espacializa de maneira única, a partir da linguagem individual e particular de cada um.

Para o espectador, trata-se de uma observação de uma narrativa emocional que se corporifica através de uma codificação de movimentos típicos do Flamenco, como o movimento suave de mãos e braços, em contraponto a movimentos mais ríspidos do corpo e de um sapateado intenso. Esses elementos, juntos ao trabalho dos músicos, fazem parte da história que está sendo contada por todos, e dita ao observador em forma audível e visual.

A música e o cante flamenco são bastante complexos, pois envolvem diferentes formas musicais, os palos, que acontecem sob uma estrutura básica de ritmo e harmonia. Atualmente, diversas pessoas buscam aprender sobre a cultura flamenca e sobre a sua expressão artística, praticando o flamenco, se apropriando e o executando com muita seriedade, exemplo disso é a existência de diversas escolas flamencas aqui no Brasil, em diversas regiões do país. Além disso, pelo flamenco se tratar de uma interpretação de uma história musicada, a expressividade e interpretação são sempre diferentes, enriquecendo cada vez mais essa arte. 

 

3.1 Breve histórico sobre a formação da cultura flamenca

O flamenco surge através da mistura de culturas dos povos que habitavam a região Sul da Espanha, também conhecida como Andaluzia, dentre eles os árabes, ciganos, judeus, muçulmanos, contando também com influências afro e hispano-americanas. (ESTEVES, 2013, p.11). O povo cigano entrou na península Ibérica em 1425, espalhando-se por diversas regiões, dentre elas a Andaluzia. É através desse povo que surgem as origens do cante, relacionadas aos núcleos urbanos que tinham grande parte da população cigana (BIGLIONE, 2018). Entretanto, não existem documentos que indicam a data de origem da cultura flamenca, isso porque não foi uma criação em si, mas uma transformação que levou anos para ser reconhecida como flamenco, e que se desenvolveu de forma natural.

Podemos apenas imaginar o seu surgimento, através do histórico de ocupação territorial da Espanha em diferentes períodos e de acordo com suas características, e também interpretar algumas letras de cantes flamencos que indicam o seu surgimento a partir de atividades cotidianas, como o trabalho de um ferreiro, eternizado em uma letra de Martinete, o palo mais antigo do flamenco, cantado sem acompanhamento de violão:

 

Al compás del martillo un gitano cantaba

Y su pecho era el yunque de un querer que forjaba

Parecía de bronce el gitano juncal

Con su carne morena

Como el mismo metal

 

       Começando pelos árabes, que de 711 até 1492 ocupavam boa parte do território espanhol, principalmente Andaluzia, local por onde entraram. Esse período de ocupação árabe foi muito importante para o enriquecimento da região e do povo andaluz. De acordo com Vera Alejandra Biglione, foi uma das épocas mais ricas em diversas áreas do conhecimento, como ciência, medicina e literatura e, por isso, ficou conhecida como a fase dourada da Espanha (BIGLIONE, 2018).

Dentre as influências da cultura árabe na dança flamenca podemos destacar a utilização do melisma no cante, que consiste em estender as sílabas de uma palavra em um determinado trecho da música, na maneira de utilizar os versos, na dança e no desenvolvimento da guitarra flamenca. A guitarra flamenca foi se desenvolvendo através da técnica árabe de tocar o instrumento alaúde e também através do próprio instrumento, como podemos observar na figura 2 e 3 abaixo.

 

Figura 2- Ilustração do alaúde árabe

   

 

Figura 3 - O grande guitarrista Paco de Lucia e seu grupo musical em seu último concerto no Brasil, em novembro de 2013. Paco de Lucia, junto a outros artistas, como o cantaor Camarón de la Isla, modernizaram o flamenco com a inserção de novas combinações musicais e instrumentos (como o cajón peruano) e deram visibilidade mundial à arte

 

 

Ao ouvirmos os cantes flamencos, podemos observar, nas letras, narrações de histórias que aconteciam no dia a dia, histórias de perdas, alegrias, estando relacionadas com o dia a dia do povo, como as letras de Bulerías a seguir:

 

Levantate Valdomero

Que tomará, tomará, tomará, tomaraton

Cafelito sabroso

Hervido en la cafetera

Hecho con agua del pozo

 

A mi me duele me duele

La boquita de decirte

Gitana si tu me quieres

 

       Devido à perseguição religiosa, os mouros e descendentes de árabes que permaneceram na Espanha após a expulsão acabaram se misturando com os povos ciganos para que não fossem percebidos. Através dos mouros que surgem os lamentos flamencos, originados da expulsão de seu território e a perseguição e marginalização que sofriam pelos reis católicos. (FLAMENCOPOLIS, 2011)

       A primeira etapa da formação dessa arte ficou conhecida como tempos primitivos do flamenco, de 1750 até meados do século XIX, que corresponde à fase em que, ao mesmo tempo em que se formavam os núcleos urbanos com uma mistura de povos fugindo de da expulsão e julgamento dos reis católicos, disseminavam-se as danças e cantos populares por toda a Espanha. Logo, os povos reuniam-se para cantar suas dores e alegrias, lamentar suas perdas formando, assim, “uma só voz no flamenco” (BIGLIONE, 2018).

       No período de 1750 a 1812, os ritmos flamencos se formam a partir da mistura de outros estilos musicais, como as seguidillas boleras, fandangos, jotas, pólos, tiranas, jaleos, zorongos e cachucas. A partir disso, o flamenco se constituía lentamente e, após 1812, passa a ter uma importância nacional, como modo de interpretar a arte e a tradição espanhola, sem reproduzir os modos franceses e italianos. A arte espanhola começava a ser valorizada e reconhecida como arte nacional. (FLAMENCOPOLIS, 2011)

       Os cafés de cante surgem no período de 1860 a 1910, a partir da necessidade de encontrar locais em que os primeiros artistas que se profissionalizavam pudessem mostrar e apresentar a arte do flamenco. Os cafés de cante aconteciam com a apresentação de espetáculos do maior atrativo do flamenco: o baile, que era acompanhado paralelamente da guitarra e do cante. Esse tipo de local era como os cafés cantantes franceses da época, e como havia o crescimento do sentimento do flamenco ser uma arte nacionalista, cada vez mais os cafés cantantes se transformavam de acordo com a cultura espanhola. Exemplo disso é o desuso dos instrumentos como violino e pandeiro, passando a utilização somente da guitarra com o cante flamenco. Contudo, os cafés de cante passaram a ser considerados impróprios e muitos foram fechados. (BIGLIONE, 2018)

       É importante ressaltar que, foi nos cafés de cante que o flamenco tomou sua forma como nos é apresentado, com a composição do baile, cante e o toque do violão, além da estrutura musical e formato de espetáculo que é utilizado até hoje. Foram também nesses recintos que muitos artistas famosos surgiram, pois eram locais onde havia oportunidade para as pessoas apresentarem a arte. Porém, com o fechamento dos cafés, muitos artistas ficaram sem trabalho e tiveram que procurar outra forma de apresentar-se. Assim, começam a realizar espetáculos em locais abertos como praças e teatros, fase sendo conhecida como Ópera Flamenca. (BIGLIONE, 2018)

       As Óperas Flamencas tinham caráter muito popular, pois os artistas se apresentavam em locais abertos e saíam para turnês com apresentações por preços muito baixos, sendo essas as tentativas de espalhar a cultura flamenca para maiores públicos. Essa fase foi responsável por levar o flamenco para outros locais, pois os grupos de artistas se reuniam para viajar a outros países fazendo espetáculos, tentando ascender na carreira e disseminando o flamenco pelo mundo.  (BIGLIONE, 2018)

 

3.2 Palos flamencos e tipos de baile

Os palos se referem aos ritmos Flamencos, e variam de acordo com sua estrutura e letra, como variações nos compassos, escala tonais, acordes, histórias contadas e outras características. Dentre os palos mais conhecidos do Flamenco estão as Bulerías, Alegrías, Tangos, Seguiriyas, Soleás, Fandangos e outros.

Em termos de conceituação musical, as principais escalas tonais tratadas no Flamenco são as do modo Jônico e frígio, que foram inspiradoras dos cantos litúrgicos bizantino e grego (ZANIN, 2008).

Nos palos estão presentes a cadência e o compasso que, no caso Flamenco, também é bastante específico. Por exemplo, os compassos flamencos podem ser: binários, ternários, compasso de doze tempos, compasso com polirritmia ou sobreposição de até três compassos diferentes, alternado ou interno (ZANIN, 2008).

Como exemplo, temos os compassos de 12 tempos (a exemplo das Alegrías, Bulerías e Soleás), de 4 tempos (como os Tangos) e os de 3 tempos (como as Sevillanas). Uma Soleá segue um mesmo compasso de ritmos das Alegrías e Bulerías, mas se diferencia pelo tempo lento e pesado, marcado por acentos fortes em diferentes momentos do compasso, o que lhe dá essa característica de “pesar”. Também o cante trará temas mais dramáticos. Há também a leitura do compasso a partir da letra, que seguem estrofes, que no flamenco são chamadas de coplas: no caso das Sevillanas, são 4 coplas.

Esses compassos flamencos são diferentes dos ritmos musicais multiplicativos, pois não tem origem na multiplicação ou divisão, mas normalmente se formam de forma aditiva. Também os compassos de ritmos irregulares, como o 6/8, é bastante típico de toda a península Ibérica (ZANIN, 2008).

A soma com alternâncias rítmicas, típicas de compassos de doze tempos do flamenco, podem ser de 2+2+3+3+2, no caso de um palo Seguiriya, ou de 3+3+2+2+2, de Soleá, por exemplo (ZANIN, 2008). Essa divisão interna do compasso se deve à marcação dos tempos fortes característicos de cada palo. Assim, a distinção de cada um dos palos exemplificados é pelo deslocamento relativo dos acentos métricos, e que são responsáveis por causar sensações diferentes, que podem ser interpretados de formas diversas.

Também na estrutura musical de cada palo existem particularidades do Flamenco, que são os elementos que compõem a estrutura. Esses elementos se organizam de forma livre, à exemplo do jazz, onde também existe liberdade estrutural, embora também existam estruturas mais convencionais de montagem em cada palo (ZANIN, 2008).

 

 

4 O projeto de extensão

Criado em 2018, o projeto é único no Campus Cachoeira do Sul, sendo pioneiro no desenvolvimento artístico cultural através da dança flamenca em projetos de extensão da UFSM. A ideia de criar o projeto surgiu da observação de carências de atividades artísticas e culturais no município, principalmente relacionadas à dança, e também da observação da necessidade de se trabalhar a consciência corporal, postura e capacidade de comunicação dos alunos do campus. O projeto foi registrado sob o número 049862, e foi contemplado com recursos do edital FIEX 2019.

O Flamenco é uma arte complexa pela sua composição de diversos elementos de expressão corporal e interpretação musical. É um constante desafio ensinar ao corpo movimentos complexos e estudar palos e expressividades novas e diferentes.

 

4.1 Benefícios das atividades

A dança, especificamente no projeto dança flamenca, traz muitos benefícios para quem participa, dentre eles a prática de exercício físico e a melhora da consciência corporal. Com a prática de exercícios que melhoram a consciência em relação ao corpo, presta-se mais atenção na postura e nos movimentos e, pouco a pouco, melhora-se a qualidade de vida, diminuindo dores nas costas, ombros, articulações entre outras.

Envolvendo públicos diferentes, o projeto permite o convívio de pessoas de diversas áreas, promovendo a troca de conhecimento e também desafios de aprendizado e superação de dificuldades como grupo, o que contribui para a formação cidadã dos participantes, desenvolvendo a capacidade de trabalhar em equipe e de interação com o outro, além de trabalhar a desinibição, o desenvolvimento da paciência e da capacidade de expressar sentimentos através da dança.

 

 

5 Conclusões

O projeto destaca a importância de se trabalhar a conscientização corporal através da interação entre baile, cante e toque musical, e enfatiza a relevância de projetos de extensão que dialoguem com a movimentação corporal e expressividade artística. É esperado que o projeto seja valorizado como contribuinte na formação da sociedade, de forma a inserir nova cultura na vida das pessoas, melhorando a qualidade de vida e contribuindo para a formação cidadã dos participantes do projeto e da comunidade em geral.

 

 

Agradecimentos

Este trabalho se concretizou graças ao apoio da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Santa Maria, ao Custeio do Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX) e ao Viveiro Cultural.

 

 

Referências

BERTAZZO, I. Corpo Vivo: Reeducação do Movimento. 2st ed. São Paulo: SESC, 2015.

BIGLIONE, VA. Uma Análise da Cena de Dança Flamenca em São Paulo: contextos e processos artísticos [monography]. São Paulo: Comunicação das Artes do Corpo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2018.

CANARIM, S de R. Israel Galván: Poética em Metamorfose. [dissertation]. Porto Alegre: Instituto de Artes/Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2017.

DUARTE, G de O; SILVA, MR da, organizers. Qual a sua dança? Dança para crianças e adolescentes. 1st ed. Santa Maria, RS: UFSM, NTE e UAB, 2017.

ESTEVES, B. Dança Flamenca: Corpo, Técnica e Estética [monography]. Natal: Departamento de Artes/Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2013.

FLAMENCOPOLIS [Internet]. Faustino Nuñez, 2011. [cited 2019 Ago 18]. Available from: http://www.flamencopolis.com.

LABAN, R. El domínio del movimiento. Cuello JB translator. Editoral Fundamentos: Madrid, 2006.

LACOMBE, P. Consciência corporal: o que é e como ela influencia nosso dia a dia [Internet]. Campinas: Instituto Patrícia Lacombe; 2018 Set 24 [cited 2018 ago 18]. Available from: http://patricialacombe.com.br/bog/consciencia-orporal-o-que-e-e-como-ela-influencia-nosso-di-a-dia/.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. 2 st ed. Martins Fontes: São Paulo, 1999.

RUNWAY D. Entenda o que é consciência corporal e como ela ajuda no dia a dia [Internet]. 2018 mar 21 [cited 2018 ago 18]. Available from: https://blog.runway.com.br/entenda-o-que-e-consiencia-corporal-e-como-ela-influencia-nosso-dia-a-dia/.

ZANIN, FC. O violão flamenco e as formas musicais flamencas. R.cient./FAP, 2008;3(jan/dez):123-152. Available from: http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/article/view/1630.