Universidade Federal de Santa Maria

Ci. e nat., Santa Maria, V. 42, Ed. Especial, e48, 2020

DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179460X40716

Received: 10/10/2019 Accepted: 10/10/2019

 

by-nc-sa

 


Special Edition

 

Potencial de Aplicação do Resíduo de Cinza de Casca de Arroz

 

Rice Husk Ash Residue Application Potential

 

 

Marcela Trojahn NunesI

Fabiele Schaefer RodriguesII

 Jocenir BoitaIII

 

I   Laboratório de Síntese e Caracterização de Nanomateriais (LSCNano) - Universidade Federal de Santa Maria - Campus Cachoeira do Sul, Cachoeira do Sul, Brasil - marcelatrojahn@gmail.com

II  Laboratório de Síntese e Caracterização de Nanomateriais (LSCNano) - Universidade Federal de Santa Maria - Campus Cachoeira do Sul, Cachoeira do Sul, Brasil - fabielesrodrigues@hotmail.com

III Laboratório de Síntese e Caracterização de Nanomateriais (LSCNano) - Universidade Federal de Santa Maria - Campus Cachoeira do Sul, Cachoeira do Sul, Brasil - jocenir.boita@ufsm.br

 

 

Resumo

A utilização de resíduos agrícolas tem se tornado uma necessidade, devido ao seu alto custo ambiental. Como exemplo disso, temos a cinza de casca de arroz (RHA), produzida pela queima indiscriminada da casca de arroz, bem como, temos a necessidade de buscar por alternativas de reaproveitamento do resíduo de forma sustentável, seja aplicando em nanomateriais, seja extraindo o SiO2 presente na cinza de casca de arroz. Este estudo aborda o uso de técnicas de caracterização para o resíduo de cinza de casca de arroz, mostrando a qualidade da SiO2 presente no resíduo.
Palavras-chave: Cinza de casca de arroz; SiO­2; Cristobalita

 

 

Abstract

The use of agricultural waste has become a necessity due to its high environmental cost. As an example of this, we have rice husk ash (CCA), produced by the indiscriminate burning of rice husk, as well as the need to look for alternatives to reuse the waste sustainably, either by applying it to nanomaterials or by extracting SiO2 present in rice husk ash. This study addresses the use of characterization techniques for rice husk ash residue, showing the quality of SiO2 present in the residue.

Keywords: Rice husk ash; SiO­2; Cristobalite

 

 

1 Introdução

O arroz é um dos alimentos mais importantes para a nutrição humana, sendo o segundo cereal mais cultivado no mundo, ocupando uma área aproximada de 168 milhões de hectares, produzindo aproximadamente 741 milhões de toneladas de grãos em casca. O Brasil possui uma produção anual de 11 a 13 milhões de toneladas de arroz com casca nas últimas safras (média de 2008/09 até 2014/15), conforme a SOSBAI (2016).

O grão de arroz consiste da cariopse e da casaca, que é uma camada protetora. A casca é composta de duas folhas modificadas que correspondem a cerca de 20% do peso do grão. Através da secagem, separa-se a casca da cariopse, obtendo-se o arroz integral (JULIANO e BECHTEL, 1985).

A casca de arroz em função do seu alto poder calorífico, aproximadamente 16,720 kJ/kg, e do baixo custo, é utilizada como alternativa a substituição da lenha empregada na geração de calor e vapor necessários para os processos de secagem e parboilização dos grãos de arroz na própria indústria (DELLA et al., 2001). Após a queima da casca de arroz, temos como resultado a cinza da casca (CCA), gerada nesse processo, por sua vez, quando descartada de maneira imprópria promove a poluição no solo, pois apresenta uma quantidade de carbono residual, além da concentração de óxidos alcalinizantes, como por exemplo, CaO, MgO, K2O, Na2O, e outros, os quais, ao entrar em contato com a água, alcalinizam o meio aquoso (ZUCCO, 2007).

Segundo Zucco e Beraldo (2008), o aproveitamento de resíduos agrícolas mostra-se primordial em função do alto custo ambiental proveniente do seu inadequado descarte na natureza. Desta maneira, a cinza de casca de arroz produzida pela sua queima indiscriminada tornara-se preocupante em virtude do grande volume produzido anualmente. As pesquisas envolvendo a obtenção de materiais para a construção civil, empregando a CCA na aplicação industrial e o uso na construção civil (concreto e argamassa), revelam que a cinza deve ser de alta qualidade, com elevado grau de pureza, principalmente, pela exigência de que apresente elevada reatividade química. Uma vez que, segundo Isaia et al. (2016), o teor da sílica da CCA, quase sempre acima de 90 %, quando queimada com controle de temperatura conferindo-lhe uma microestrutura amorfa. Contudo, estima-se que a maior parte da produção de CCA tenha aplicações secundárias devido à queima sem controle de temperatura, o que resulta em um grau de cristalinidade, possuindo menor reatividade.

Assim, em 1924 o uso da CCA em concreto foi patenteado. A partir daí, surgiram diversas pesquisas com o uso da CCA em matrizes cimentícias, tanto para cinzas produzidas com queima controlada, quanto aquela à base de cinza de casca de arroz residual (NAIR et al., 2006).

A utilização da CCA pode melhorar as propriedades do concreto, além de viabilizar um destino sustentável a rejeitos que geralmente seriam descartados no meio ambiente ou em aterros industriais. Neste mesmo cenário temos a necessidade da substituição de alguns componentes nos concretos, como o cimento e o seus agregados devido ao seu elevado custo e escassez dos componentes na natureza, podendo esta substituição ser realizada através do aproveitamento de resíduos. Onde o uso desses rejeitos pode melhorar as propriedades do concreto.

Conforme Schulz (2013), são considerados nanomateriais todos aqueles constituídos por partículas ou aglomerados delas com tamanho que apresente entre 1 e 100 nm. Assim, é importante ressaltar que a nanotecnologia, ou seja, uma tecnologia que manipula de maneira controlada a matéria nessa escala relaciona-se diretamente apenas aos nanomateriais manufaturados, projetados para ter características de interesse na escala de nanômetros. Além disso, as nanopartículas (NPs) podem ser obtidas através de diferentes componentes químicos, com destaque para os óxidos de zinco, manganês e titânio, contudo a utilização dos óxidos de ferro apresenta vantagens, como facilidade de síntese, magnetismo, baixa toxicidade, biocompatibilidade, alta capacidade de adsorção e baixo custo (HUA et al., 2012; XU et al., 2012).

O trabalho tem como objetivo obter resultados que possibilitem o uso de resíduos em aplicações tecnológicas, seja em catálise, engenharias e também como material suporte para nanopartículas diversas. 

 

 

2 Materiais e Métodos

2.1Resíduo de cinza de casca de arroz

O resíduo de cinza de casca de arroz é adquirido em empresas que beneficiam arroz, onde após a queima descontrolada da casca do arroz, gerando a cinza de casca de arroz. Após a coleta da cinza de casca de arroz, este resíduo passa por uma separação através de peneiras passante 200 mesh. É realizado um tratamento térmico de 100 °C durante 30 minutos para eliminar o excesso de água contida na cinza de casca de arroz. Na figura 1 temos a imagem da cinza de casca de arroz após o tratamento térmico.  

 

Figura 1 – Resíduo de cinza de casca de arroz

 

2.2 Técnicas de caracterização

2.2.1 Difração de Raios X (XRD)

A técnica de difração de raios X consiste na medida microestrutural de materiais, cristalinos e amorfos, podendo em alguns casos, medir na fase liquida. As aplicações são vastas em diferentes áreas de conhecimento, como, por exemplo, na engenharia, ciência de materiais, química, física, entre outras, (BOITA, 2014).

Conforme Zachariasen (1945), considerando o ponto de vista da física ondulatória, os raios X, ao atingirem o material, podem ser espalhados elasticamente pelos elétrons de um átomo (dispersão ou espalhamento coerente). O fóton de raios X após a colisão com o elétron muda sua trajetória, contudo mantém sua fase e energia, podendo assim dizer que a onda eletromagnética é instantaneamente absorvida pelo elétron e retroespalhada, onde cada elétron atua como centro de emissão de raios X.

Assim, a intensidade difratada depende principalmente do número de elétrons no átomo, bem como da distribuição dos átomos no espaço, pois os vários planos de uma estrutura cristalina apresentam diferentes densidades de átomos ou elétrons, fazendo com que as intensidades difratadas sejam distintas para os diferentes planos cristalinos originados, segundo Boita (2014).

Deste modo, o XRD permite obter informações sobre a estrutura cristalina ou amorfa dos materiais, geralmente na fase sólida. As medidas foram realizadas em um Mini Flex da marca Rigaku, na faixa de 5º - 100°, com ânodo de Cu Kα (17.5 mA, 40 kV e λ = 1.54 Å). Os picos de difração foram indexados usando o software Crystallographica Search-Match (version 2.1.1.1) e a base de dados cristalográficos ICDD, The International Centre for Diffraction Data.

 

2.2.2 Espectroscopia de Fotoelétrons Induzidos por Raios X (XPS)

Baseada no efeito fotoelétrico, elucidado por Albert Einstein em 1905, temos a técnica de Espectroscopia de Fotoelétrons Induzidos por Raios X (XPS). Esse efeito está relacionado à emissão de fotoelétrons de uma superfície após a absorção de fótons (fotoemissão), conforme Hofmann (2005) e Watts e Wolstenholme (2003).

A Espectroscopia de Fotoelétrons Induzidos por Raios X consiste na incidência de fótons de raios X com energia bem definida sobre a superfície, os quais interagem com os elétrons da amostra, transferindo-lhes energia. Salienta-se que a energia do fóton incidente deve ser maior do que a energia de ligação do elétron ao átomo, fazendo com que ele seja emitido com certa energia cinética.

Como resultado, o espectro obtido pelo XPS é representado por um número de contagens em função da energia cinética dos fotoelétrons, podendo ser alterada para energia de ligação. Este processo permite a identificação dos elementos presentes a partir da posição dos picos, possibilitando, ainda, uma varredura na região de um pico de interesse, mostrando o estado químico de um determinado elemento (WATTS e WOLSTENHOLME, 2003).

A identificação dos picos originados no XPS de acordo com o nível quântico do fotoelétron de origem deve ser realizada com o auxílio de um banco de dados, de acordo com Moulder et al. (1992).

A Espectroscopia de Fotoelétrons Induzidos por Raios X (XPS) foi medida no Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) do CNPEM em Campinas - SP. As medidas foram feitas no modo convencional, em modelo K- Alpha (Thermo Scientific) com energia de 100 - 4000 eV, com sistema de compensação de carga. Para fins de tratamento de dados, os espectros foram corrigidos com base no pico do C 1s (284,5 eV), com precisão experimental de 0,1 eV e medidos com energia de 1486,6 eV através de ânodo de Alkα. O tratamento de dados foi realizado com uso do software CASA XPS, versão 2.3.14 e ajustados com uma função soma Gaussiana - Lorentziana assimétrica (20 % de contribuição).

 

 

3       Resultados e Discussão

O difratograma apresentado na figura 2 corresponde ao resíduo da cinza de casca de arroz, que corresponde à fase Cristobalita (Si02), de acordo com a base de dados cristalográfica. A presença da única estrutura relacionada ao SiO2, é resultado da presença de Si na casca do arroz cerca de 90 %, o que mesmo após a sua queima não ocorre sua degradação ou mudança de fase.  

 

Figura 2 – Difração de raios X do resíduo de cinza de casca de arroz junto da medida padrão fornecida pela base de dados ICSD.

 

A cristalinidade encontrada no resíduo de cinza de casca de arroz surpreende, pois sem haver tratamento térmico considerável acima de 100 °C, já se encontra em uma excelente cristalinidade. Isso pode vir a potencializar suas aplicações tecnológicas.

A análise de espectroscopia de fotoelétrons induzidos por raios (XPS) correspondeu a medidas na região de ampla energia, e na região local do Si 2p para o resíduo de cinza de casca arroz mostrado na figura 3. A medida na região local apresenta apenas uma componente com energia de ligação em 103,5 eV, posição em energia correspondente ao padrão de SiO2 encontrada na literatura (Craciun et al., 1995), relacionada a ligações Si-O. Este resultado de XPS esta correlacionado com o resultado de XRD.

 

Figura 3 – Espectro de XPS do resíduo de cinza de casca de arroz em (a) em ampla energia e (b) varredura local Si 2p.

 

Em ambos os resultados das técnicas de caracterização XRD e XPS, mostram uma medida limpa com qualidade sinal/ruído excelente, mostrando a qualidade do composto encontrado no resíduo de cinza de casca arroz. As aplicações do composto SiO­2 são inúmeras, e cada vez mais se expande, principalmente na eletrônica.  

 

 

4 Conclusões

Os resultados de XRD e XPS se relacionam entre si, descrevendo a mesma linguagem em termos de resultados, mostrando que o resíduo possui apenas a fase de SiO2, sem a presença de outras impurezas junto do resíduo. Para a medida de XRD a fase corresponde a Cristobalita, e no XPS, possuem ligações do tipo Si-O, o que reforça o resultado de XRD. Estes resultados evidenciam potenciais aplicações com o uso de resíduo de cinza de casca de arroz, seja como material suporte para nanoestruturas diversas, ou o SiO2 de forma extraída do resíduo a partir de tratamento químico, para aplicações em meios industriais, como na indústria de pneus, creme dental, vidros e principalmente em sistemas que empregam a areia como agregado, sendo o caso da área de construção civil. Este último requer mais estudos quanto à substituição do mesmo em aplicações tecnológicas que envolvem o uso de areia convencional.

 

 

Agradecimentos

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Processo 403838/2016-9.

 

 

Referências

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