Universidade Federal de Santa Maria

Ci. e nat., Santa Maria, V. 42, Special Edition, e11, 2020

DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179460X40484

Received: 10/10/2019 Accepted: 10/10/2019

 

by-nc-sa

 


Special Edition

 

Morfologia urbana: estudo e análise dos espaços livres em um recorte do município de Cachoeira do Sul (RS)

 

Urban morphology: study and analysis of open spaces in a portion of Cachoeira do Sul (RS, Brazil)

 

 

Quétilan Rodrigues DominguesI

Andreza da CostaII

Geanny Bañolas LealIII

Gianne SpethIV

Leonardo Ernandes da Silva PeresV

Bárbara M. Giaccom-RibeiroVI

 

I   Universidade Federal de Santa Maria, Cachoeira do Sul, Brasil - ketilanrdomingues@gmail.com

II  Universidade Federal de Santa Maria, Cachoeira do Sul, Brasil - aandrezadacosta@gmail.com

III Universidade Federal de Santa Maria, Cachoeira do Sul, Brasil – brbanolasgeanny@gmail.com

IV Universidade Federal de Santa Maria, Cachoeira do Sul, Brasil –gianne_speth@hotmail.com

V  Universidade Federal de Santa Maria, Cachoeira do Sul, Brasil –leonardo_peres39@hotmail.com

VI Universidade Federal de Santa Maria, Cachoeira do Sul, Brasil - barbara.giaccom@ufsm

 

 

Resumo

Os estudos desenvolvidos a partir da configuração da cidade através da morfologia urbana são importantes a fim de refletirmos sobre as necessidades do local em que vivemos, isto é, desde o âmbito da cidade, como em uma análise reduzida, voltada ao bairro. Dessa forma, a análise morfológica serve para subsidiar as ações realizadas por produtores do espaço e possibilitar reflexão sobre os impactos gerados a cada nova edificação ou intervenção no espaço urbano. O presente trabalho tem como objeto de estudo a análise morfológica em um recorte territorial em um município de pequeno porte gaúcho, recorte este caracterizado por residências de camada da população com maior poder aquisitivo e por locais que apresentam edificações irregulares e ocupações ilegais. O estudo tipológico sobre a forma urbana tem seu foco na análise dos espaços livres e como estes dialogam com os espaços construídos. São apresentados mapas e análises que identificam a ocupação do território, os diferentes tipos de espaços livres, sendo eles públicos ou privados, verdes ou impermeáveis. Os resultados mostram o modo em que esses espaços livres se apresentam e como são utilizados dentro do recorte. O estudo realizado apresenta uma metodologia de mapeamento e identificação da qualidade dos espaços livres, que, por sua vez, é muito importante para subsidiar novas análises em outros recortes da cidade e entender conexões e sistemas de espaços livres dentro do município, de maneira a proporcionar ao poder público uma ferramenta que auxilie no planejamento e qualificação dos espaços, tanto os já existentes, como também de futuros novos espaços.

Palavras-chave: Morfologia urbana; Espaços livres públicos; Espaços livres privados

 

 

Abstract

Urban morphology studies developed from the city configuration are important in order to enable consideration on the needs of the place we live, that is, from the city level, as in a reduced analysis, focused on the neighborhood. Thus, morphological analysis serves to subsidize the actions performed by space producers and enables reflection on the impacts generated with each new building or intervention in the urban space. The object of study of the present work is the morphological analysis of a portion of the urban fabric of a small town of Rio Grande do Sul, which is characterized by residences of the population with highest purchasing power in the city, and also by places that present irregular buildings and illegal occupations. The typological study on the urban form has its focus on the analysis of open spaces and how they dialogue with the built spaces. Maps and analyzes identify the occupation of the territory and the different types of open spaces, whether public or private, green or built. The results show how these open spaces are presented and how they are used within the study area. This work presents a methodology for mapping and identifying the quality of free spaces, which, in turn, is very important to support further analysis in other parts of the city and to understand connections and free space systems within the municipality, in order to provide to public agencies a tool that helps in the planning and qualification of the spaces, both the existing ones, as well as future new spaces.

Keywords: Urban morphology; Public open spaces; Private open spaces

 

 

1 Introdução

Quando pensamos no ambiente em que vivemos, de modo automático, o primeiro cenário que nos vem à mente é a cidade, mas o que é cidade? Cidade pode-se definir como uma aglomeração de pessoas que ali fixam residência, trabalham, estudam e convivem, um conceito bastante resumido sobre o assunto, mas indo a fundo, pensamos, onde essas pessoas residem de fato? De que forma são locadas estas edificações? Onde trabalham? De qual maneira exercem o convívio? Estas são perguntas que a morfologia urbana auxilia em responder. A partir da morfologia, que é o estudo das formas, neste caso, das formas urbanas, é possível identificarmos a maneira que uma determinada população se estabelece no território, e é por meio do estudo das tipologias que conseguimos notar padrões com relação às edificações e ao modo como as pessoas utilizam o espaço não edificado.

Este trabalho busca conceituar o que são espaços livres públicos e privados. Exploram-se os benefícios que a presença de tais espaços traz à cidade por meio da análise de um recorte na área urbana do município de Cachoeira do Sul (RS). A partir de mapeamentos, captura de imagens e coleta de dados em campo, almeja-se identificar estes espaços e como estão sendo utilizados pela população.

 

2 Fundamentação Teórica

O conceito de espaço livre é algo que vem sendo discutido no âmbito do urbanismo ao longo dos anos, visto que há divergências sobre esta conceituação entre pesquisadores. Por exemplo, para Cavalheiro e Picchia (1992) os espaços livres compreendem apenas locais contemplados com vegetação ou de uso próprio ao lazer, cultura e prática de esportes, como as praças e parques. Já para Panerai (2006), os espaços livres abrangem todos os espaços que não são edificados. Em seu livro Análise Urbana, Panerai descreve os espaços livres como “o espaço público compreende a totalidade das vias: ruas e vielas, bulevares e avenidas, largos e praças, passeios e esplanadas, cais e pontes, mas também rios e canais, margens e praias” (PANERAI, 2006, p.79). A classificação de Panerai abrange todos os espaços não edificados como livres, abrangendo, inclusive, as ruas, diferentemente de Cavalheiro e Picchia, que mantêm as ruas em uma classificação à parte, pertencendo às redes viárias todo e qualquer espaço que tenha como objetivo apenas a funcionalidade de passagem e ligação entre dois pontos.

No entanto, observando o modo como as pessoas vivem, como interagem e convivem, não há como descartar o conceito abordado por Panerai, visto que a rua também é um espaço de apropriação do homem, sobretudo em cidades pequenas, onde ainda prevalece a cultura de apropriação da rua por parte da comunidade como um espaço de socialização entre os vizinhos, crianças jogando bola e andando de bicicleta e o modo como as pessoas criam suas ligações com o mundo externo.

Na esfera dos espaços livres, podemos classificá-los de duas maneiras: públicos ou privados. Os espaços livres privados são denominados como todas as áreas não construídas dentro do limite do lote, ou seja, a parcela do solo que pertence a terceiros, e a que não se tem acesso irrestrito. Já os espaços livres públicos são os espaços não edificados comum a todos, disponíveis para uso da população em geral, e nesta categoria enquadram-se os passeios e calçadas, as ruas, as praças, os parques e demais espaços não delimitados como lotes particulares.

É importante também reforçar que espaços livres não têm o mesmo conceito de áreas verdes. Sobre as diferenças nas definições, Lima et al. (1994) dizem:

Espaço livre: É o conceito mais abrangente, que integra os demais, contrapondo-se dos espaços construídos em áreas urbanas. Área verde: Área onde há a predominância de vegetação arbórea, que englobam as praças, os jardins públicos e os parques urbanos. Parque urbano: Enquadra-se como uma área verde, com função ecológica, estética e de lazer, no entanto com uma extensão maior que as praças e jardins públicos. Praça: Enquadra-se como um espaço livre público cuja principal função é o lazer. Quando não existe a vegetação e a mesma se encontra impermeabilizada não é considerada uma área verde. Arborização urbana: Representa elementos vegetais de porte arbóreo dentro da cidade. Nesse enfoque, as árvores plantadas em calçadas fazem parte da arborização urbana, porém não integram o sistema de áreas verdes” (LIMA, 1994, p.545).

Deste modo, os espaços livres formam um sistema que engloba os demais subsistemas – as áreas verdes, os parques, as praças e a arborização urbana. Juntos em um sistema – o de espaços livres – são extremamente importantes para qualificar as cidades, criando oportunidades de lazer, além de contribuir para as questões ecológicas e de bem-estar da população.

O estudo da morfologia da cidade deve abranger diversas frentes de trabalho, desde a escala macro, em que se analisa o território de forma geral, até a escala micro, onde se concentram os estudos em porções reduzidas do território, o que permite analisar de forma minuciosa determinados aspectos da configuração e da paisagem urbana em um contexto mais específico. Segundo Rossi (1995), o estudo da paisagem urbana está dividido em três eixos: a escala da cidade, a escala do bairro e a escala da rua. Ainda conforme Rossi, a morfologia está diretamente atrelada ao conceito de tipologia como método de análise. Para este autor, a cidade se faz a partir dos espaços edificados e estes espaços são os determinantes com relação aos espaços livres. Em um recorte urbano hipotético, muitas vezes, é possível encontrar diversas tipologias de edificações, que podem estar isoladas no lote, o que sugere a presença de espaços livres intralote em todo o seu perímetro; tipologias em fita, em que as residências não possuem quaisquer recuos laterais, assim como suas fachadas estão rentes à rua; edificações que utilizam todo o perímetro do lote; dentre outras várias tipologias possíveis. É importante lembrar, contudo, que muitas destas construções estão ligadas a um contexto histórico diferente ao que vivemos atualmente, onde a forma de apropriar-se do espaço era outra; bem como eram distintas as permissões e restrições legais de ocupação dos lotes e os instrumentos urbanísticos que regulavam a construção das cidades.

 

3 Metodologia

O estudo dos espaços livres ora desenvolvido baseia-se em Amorim e Tângari (2006), que associam a análise da paisagem urbana aos conceitos de tipologia construtiva e morfologia urbana, resultando em um estudo tipo morfológico que permite identificar os agentes formadores da cidade e os tipos edilícios resultantes destes fatores, nos possibilitando compreender a dinâmica de evolução urbana. Adotou-se um recorte na área urbana do município de Cachoeira do Sul como estudo de caso. Foram produzidos e analisados mapas de uso do solo, de figura e fundo e dos espaços construídos e dos espaços livres públicos e privados.

Para realização dos mapeamentos foi usada a base cadastral georreferenciada do município de Cachoeira do Sul, cedida à UFSM (Universidade Federal de Santa Maria, Campus Cachoeira do Sul) pela Secretaria da Fazenda da Prefeitura Municipal. A base de dados refere-se ao levantamento cadastral multifinalitário realizado em 2010, que foi atualizado por aquela secretaria desde então. Os dados foram sistematizados em ambiente SIG (Sistemas de Informações Geográficas), onde foi construído um banco de dados espacial, possibilitando, assim, a realização das análises espaciais. Além da utilização da base cadastral georreferenciada, também foi realizado levantamento em campo de diversos aspectos mapeados, tais como o uso e ocupação do solo, e levantamentos fotográficos do recorte.

 

3.1. Contextualização espacial

O município de Cachoeira do Sul, localizado na porção central do estado do Rio Grande do Sul, está distante cerca de 200 quilômetros da capital, Porto Alegre. Contando com uma população estimada de 82.201 habitantes (IBGE, 2019), o município tem oficialmente registrados apenas três bairros em todo seu perímetro. No entanto, popularmente, a cidade está subdividida em 55 bairros, delimitados a partir da formação do município e de sua expansão, e decorrente do modo como as famílias passaram a fixar residência e estabelecer seus meios de produção e geração de renda, seja pelo comércio e serviços ou indústria. O recorte a ser analisado localiza-se na porção leste do perímetro urbano do município e compreende espacialmente o limite popular entre dois bairros da cidade: o Rio Branco e o Soares (figura 1a).

 

Figura 1 – (a) Delimitação do recorte dentro da malha urbana de Cachoeira do Sul e (b) aproximação à área de estudo, com demarcação do “Beco dos Trilhos”

Fonte: adaptado de Open Street Map (2019) e adaptado de Google Earth (2019)

 

Tanto o bairro Rio Branco, como o bairro Soares, têm como principal característica residências de famílias mais abastadas. Estas são consideradas as localidades que concentram as maiores rendas per capita do perímetro urbano da cidade. Porém, apesar de os bairros serem caracterizados como classe média a alta, na porção central deste recorte, há uma área na qual passava a antiga linha férrea do município. Após a interrupção do transporte ferroviário, os trilhos foram retirados e a área passou a ser ocupada irregularmente, formando pequenos segmentos de favelas, locais que, ainda hoje, apresentam problemas em termos de infraestrutura urbana e questões sociais. O local é popularmente conhecido como “Beco dos Trilhos” (figura 1b).

O bairro Rio Branco originou-se a partir da chegada de descendentes de imigrantes alemães, por volta do ano de 1857, vindos da região onde hoje são os municípios de Agudo e Restinga Seca. Os imigrantes recém-chegados ao Rio Grande do Sul já possuíam conhecimentos relacionados à utilização da mecanização no plantio, o que resultou na introdução desta cultura na produção agrícola da então Vila Nova de São João da Cachoeira, por meio do uso de máquinas a vapor que puxavam a água do rio Jacuí para a irrigação do arroz. Estes foram os pioneiros na instalação das primeiras indústrias do município, e por terem estabelecido suas residências no Bairro Rio Branco, pode-se afirmar que o mesmo possui como característica predominante, a arquitetura das residências com traços da cultura alemã (SCHUH; CARLOS, 1991).

Por volta de 1896, as famílias uniram-se no intuito de criar um clube direcionado para a prática de esportes, tais como tiro ao alvo, tênis, ginástica etc. Nasce então o clube Schütze Verein Eintracht, conhecido atualmente como Sociedade Rio Branco. Outro fato que se tornou marcante para o nascimento do bairro foi o momento em que os moradores da região sentiram a necessidade de ter um local propício para o culto da religião que praticavam, o evangelismo luterano. Assim, por volta do ano de 1867, deu-se início a projetos para arrecadar verbas que mobilizou as famílias para a construção do templo Martin Lutero, cujas obras iniciaram-se em 30 de junho de 1930, e foi inaugurado em 19 de abril de 1931 (RITZEL, 2012).  

A ocupação do bairro Soares iniciou-se na década de 1950, por meio do loteamento Vila Soares. A área ocupada é mais recente em comparação ao bairro Rio Branco. Sua localização no município consistia em uma área de expansão à época, visto que a cidade de Cachoeira do Sul teve seu desenvolvimento originado nas proximidades do rio Jacuí. Observando-se as construções existentes no local, constata-se a ocorrência de edificações contemporâneas (RITZEL, 2012).  

Atualmente, configura-se como forte ponto nodal do bairro a “Praça da Soares”, nome popular entre a comunidade dado à praça Senhorinha Pillar Soares, que atrai a população não apenas do bairro, mas de diversas localidades da cidade, devido ao espaço verde de livre apropriação, bem como ao espaço para a prática de esportes, como corrida e caminhada, às pequenas quadras de areia para jogos e aos espaços infantis, dotados de brinquedos e parquinhos.

 

 

4 Resultados e Discussões

Neste item, são apresentados os mapeamentos realizados dentro do recorte urbano, subdividindo as discussões em duas escalas: a escala do bairro e a da rua. Deste modo permite-se uma melhor reflexão sobre os espaços livres de um modo geral, abrangendo o recorte como um todo e aproximando-se dos espaços livres intralote na escala da rua, onde pode-se analisar como estão sendo utilizados os espaços livres privados dentro de um quarteirão selecionado dentro do recorte.

 

4.1 Escala do bairro

As análises na escala do bairro contaram com o auxílio de imagens orbitais (i.e., disponíveis na plataforma GoogleEarth). Entretanto, a visita a campo e o exercício de percorrer as ruas do recorte têm fundamental importância para o reconhecimento do local e do modo como a comunidade se apropria das ruas e espaços livres.

A partir de observações feitas em campo, pode-se constatar que o recorte apresenta um gabarito considerado baixo para as edificações: em sua maioria, as edificações são de um ou dois pavimentos. Pontualmente, observa-se a presença de edifícios residenciais multifamiliares que não ultrapassam quatro pavimentos.

A análise combinada das observações em campo e das imagens orbitais resultou no mapa de figura e fundo apresentado na figura 2. Identifica-se que, de modo geral, as edificações estão localizadas no perímetro externo das quadras, criando miolos livres em seu interior, fato associado à presença dos espaços livres intralote. A partir deste mapa, também se verifica a faixa significativa não edificada presente na porção centro-leste do recorte, local onde antigamente havia a linha férrea, e hoje é ocupado ilegalmente por edificações construídas de modo irregular. A configuração deste local consiste em uma quebra na malha urbana desta porção da cidade, resultante da própria conformação do terreno, o que, associada à característica da ocupação (i.e., irregular e por população de baixa renda), acabou por se tornar uma barreira física e socialmente segregadora[1] que delimita os bairros Soares (a oeste) e Rio Branco (a leste).

O mapa da Figura 2 também indica a existência de um traçado viário com certo grau de regularidade. As quadras estão consolidadas em duas tipologias mais relevantes, sendo elas quadrangulares e retangulares. Apenas a porção que abriga o “Beco dos Trilhos” foge do padrão imposto pela malha urbana, formando um caminho sinuoso, sem a representatividade de uma quadra definida.

 

Figura 2 – Mapa de figura e fundo

Fonte: elaboradas pelos autores (2019)

 

O mapa de uso do solo (Figura 3) permite, de fato, caracterizar a área de estudo como predominantemente residencial, havendo o uso misto de modo pontual, sendo este caracterizado por pequenos comércios que atendem localmente aos bairros, tais como padarias, salões de beleza e pequenas lojas, onde se registra a presença da moradia junto ao comércio.

 

Figura 3 – Mapa de uso do solo e espaços livres

 Fonte: Elaboradas pelos autores (2019)

 

 O uso institucional também está presente no recorte, sendo representado por instituições de ensino, de culto religioso, estabelecimentos voltados à segurança pública e clubes recreativos, estes últimos, com maior ocorrência na porção pertencente ao bairro Rio Branco. Já o uso estritamente comercial das edificações está concentrado na borda oeste e sudoeste do recorte, visto que, nesta região, inicia-se uma das zonas comerciais do município, incluindo parte da área caracterizada com o centro comercial da cidade.

Além dos usos do solo, a figura 3 apresenta a classificação dos espaços livres privados e os espaços livres públicos. O mapeamento de tais espaços, possibilitado pelos dados obtidos nas visitas a campo e com auxílio de imagens orbitais, permite identificar a presença de espaços livres intralote ocorrendo de modo significativo na área de estudo. A figura 3 evidencia que grande parte do recorte analisado está sob o poder privado, representada pela cor laranja, cujas áreas sobressaem-se em comparação aos espaços livres públicos, representados pela cor branca.

O mapa de uso do solo e espaços livres, entretanto, apenas diferencia as áreas construídas daquelas que constituem o sistema de espaços livres. Dentro desta classificação, distinguem-se os espaços livres públicos dos espaços livres privados, não sendo diferenciados os espaços permeáveis dos espaços impermeabilizadas. O mapa da figura 4 apresenta a diferenciação das áreas de fato vegetadas por meio da classificação dos espaços livres em quatro classes: praças, áreas impermeáveis, viárias com arborização e maciços vegetativos.

 

Figura 4 – Mapa de classificação dos espaços livres

 Fonte: Elaborado pelos autores (2019)

 

A análise da figura 4 permite verificar que o recorte é contemplado com duas praças: a norte, a praça da Soares (figura 5a), e a sul, uma porção da praça Dr. Honorato de Souza Santos (figura 5b). Entretanto, não é possível associar a existência de tais praças com o atendimento satisfatório da comunidade por espaços livres, sendo alarmante a proporção de espaços livres pavimentados em comparação aos espaços contemplados com vegetação. As praças presentes no recorte são deficitárias em termos de espaços de qualidade, não são dotadas de equipamentos e mobiliário público, dentre as demais infraestruturas que atraem a utilização por parte da população.

 

Figura 5 (a) Praça Soares, espaço de prática de esportes e (b) Praça Honorato de Souza

Fonte: acervo pessoal (2019)

 

Além das praças, registra-se uma massa vegetativa de maior porte, considerado o contexto de estudo, apenas ao longo do Beco dos Trilhos. Devido à presença dos trilhos antigamente, o local possuía, em seu entorno, vegetação para isolamento visual e amortecimento de ruídos decorrentes do funcionamento da ferrovia, reduzindo impactos ambientais nas moradias já existentes no território.

Com relação aos espaços livres privados, o mapa da figura 4 evidencia algumas ocorrências, sobretudo no bairro Soares, de miolos de quadras arborizados, o que previamente entende-se como áreas permeáveis. Isto configura um cenário positivo, pois a presença de áreas permeáveis dentro dos lotes auxilia na infiltração das águas pluviais diretamente para o solo, não sobrecarregando, assim, o sistema de microdrenagem. 

Quanto à arborização urbana, nota-se que o recorte apresenta poucas ruas com arborização significativa. As vias com a maior presença de árvores ficam no bairro Rio Branco: em um trecho da Av. Presidente Vargas, nas vias que circundam o Colégio Barão do Rio Branco, sendo elas a rua Comendador Fontoura, rua Isidoro Neves da Fontoura, um segmento da rua Ernesto Alves e rua Marechal Floriano. Nesses locais, encontram-se as árvores da espécie plátanos, que foram plantadas na gestão do prefeito Ácido Witeck (i.e., entre os anos de 1989 e 1992), ora nas calçadas, ora em canteiros centrais das vias. O bairro Rio Branco foi contemplado pelo plantio dos plátanos, que acabaram tornando-se icônicos no imaginário da população cachoeirense. As vias que circundam o colégio Barão do Rio Branco, assim como o segmento da via Ernesto Alves, contam com canteiros centrais nas vias, onde também há a presença dos característicos plátanos.

 

4.2 Escala da rua

Para adentrarmos nas análises relacionadas à escala da rua, selecionou-se um quarteirão do recorte urbano sob estudo, onde foram analisadas as tipologias das edificações (majoritariamente residenciais), seus recuos e a relação edificação–lote, bem como a maneira como os espaços livres privados estão sendo utilizados. Para determinar a escolha deste quarteirão, analisou-se o recorte como um todo, para identificação daquele que apresentasse as tipologias mais recorrentes do recorte: edificações de um pavimento – (i) isoladas no lote, (ii) sem um dos recuos laterais e (iii) sem ambos os recuos laterais. A figura 6 apresenta a localização do quarteirão selecionado entre as ruas Jorge Franke, José Pereira Fortes, Afonso Soares e Gaspar Martins.

 

Figura 6 (a) Localização do quarteirão selecionado em relação à área de estudo;  (b) aproximação do quarteirão escolhido com  demarcação dos espaços livres privados permeáveis

 Fonte: adaptado de GoogleEarth (2019)

 

A quadra possui área total de cerca de 22.092 m², sendo que desta área, 75% (cerca de 16.569 m²) são caracterizados por áreas livres, que, por sua vez, não correspondem, necessariamente, a áreas permeáveis: a análise de imagens orbitais permite identificar a presença de piscinas e áreas pavimentadas. Na figura 6b, estão mapeadas apenas as áreas verdes permeáveis, desconsiderando as áreas impermeáveis.

Quanto às tipologias, este quarteirão é composto por 26 lotes que se apresentam em formatos retangulares, com áreas entre 308 m² e 3.155 m². Conforme observa-se na figura 7, cerca de 51% dos lotes apresentam edificações isoladas no lote, 30% apresenta a falta de um dos recuos, 9,5% registram a ausência de dois ou mais recuos e 9,5% dos lotes estão vazios. É importante salientar que, para título de cálculo, foi considerada apenas a edificação principal de cada lote, ou seja, a edificação frontal; porém, analisando a figura 7, identifica-se que boa parte dos lotes apresentam mais de uma edificação que, em alguns casos, se caracterizam como salões de festas, quiosques, anexos, entre outros. Tais construções secundárias não seguem a mesma tipologia da edificação principal, havendo, assim, incidência de tipologias isoladas no lote ao fundo, ou com a ausência de um ou dois recuos laterais.

 

Figura 7 – Tipologias recorrentes no quarteirão

 

Fonte: Elaborado pelos autores (2019)

 

Por fim, analisando sobretudo as imagens aéreas do quarteirão, pode-se afirmar que o miolo de quadra pode ser classificado como permeável, e com presença de maciços vegetativos. É importante salientar que esta característica de miolo de quadra permeável está presente na grande maioria das quadras do recorte analisado, havendo alguns quarteirões onde este miolo apresenta-se com áreas de maiores dimensões, o que contribui para a drenagem das águas pluviais através do solo, auxiliando, assim, na prevenção de problemas relacionados a alagamentos.

 

5 Conclusão

Com base em Amorim e Tângari (2006), entende-se que a morfologia urbana constitui um método de análise que investiga os componentes físico-espaciais (e.g., lotes, ruas, tipologias edilícias e áreas livres) e socioculturais (e.g., usos, apropriação e ocupação) da forma urbana e como eles variam em função do tempo. Por meio da análise de características da área de estudo e aspectos culturais inerentes à sociedade, busca-se aliar a visão científica à percepção do espaço sob o ponto de vista do usuário, estratégia capaz de conferir qualidade ao futuro desenho, projeto e ação, influenciando o projeto urbano e seu reflexo na formação da paisagem.

Este trabalho buscou recuperar os principais conceitos no que tange à esfera dos espaços livres dentro de áreas urbanas, trazendo definições de diferentes autores, assim como enfatizando que espaços livres não necessariamente estão relacionados a espaços permeáveis, trazendo assim a diferenciação sobre o que são espaços livres, sendo eles públicos ou privados, as praças e parques, os maciços vegetativos e a arborização viária.

A metodologia aplicada para a realização da pesquisa e mapeamentos é eficaz, de modo que os estudos realizados foram focados em um determinado recorte espacial da malha urbana do município de Cachoeira do Sul (Rio Grande do Sul), porém, o método de análise aplicado a este recorte pode ser expandido para aplicação em outros recortes da cidade. Os resultados configuram-se importantes quanto à utilização e qualidade dos espaços livres, conferindo à metodologia potencial de servir como um instrumento de análise ao poder público sobre a qualidade dos espaços livres públicos da cidade, bem como os resultados constituírem-se como base para o planejamento de novos espaços ou revitalização dos espaços já existentes, tomando como norteadoras as necessidades  e/ou deficiências identificadas em cada localidade.

 

 

Referências

AMORIM, F. P.; TÂNGARI, V. Estudo tipológico sobre a forma urbana: conceitos e aplicações. Paisagem e Ambiente, 2006;22:61-73. DOI: 10.11606/issn.2359-5361.v0i22p61-73.

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LIMA, A. M. L. P.; CAVALHEIRO, F.; NUCCI, J. C.; SOUSA, M. A. L. B.; FIALHO, N. O.; PICCHIA, P. C. D. Problemas de utilização de termos como espaços livres, áreas verdes e correlatos. In: Anais do II Congresso de Arborização Urbana [Internet]; 1994, São Luís, MA: SBAU, 1994. p. 539-553.

PANERAI, P. Análise urbana. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília; 2006. 

RITZEL, M. Templo Martim Lutero. História de Cachoeira do Sul, 2012. Disponível em: http://historiadecachoeiradosul.blogspot.com/2012/07/templo-martim-lutero.html. Acesso em: 15 jul. 2019.

ROSSI, A.  A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SCHUH, A. S.; CARLOS, I. M. S. Cachoeira do Sul, em busca de sua história. Porto Alegre: Editora Martins Livreiro, 1991.



[1]   Entendemos a segregação social como uma separação espacial (i.e., geográfica) de um grupo de pessoas em virtude de diversos fatores, como a raça, o poder aquisitivo, religião, etnia, educação, nacionalidade ou qualquer outro fator que possa servir como meio de discriminação (CASTELLS, 1983).