Universidade Federal de Santa Maria
Ci. e nat., Santa Maria, V. 41, e46, 2019
DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179460X36428
Received: 17/01/2019 Accepted: 09/10/2019
Section Education
O processo educativo e os problemas socioambientais: oportunidades para uma perspectiva complexa
The educational process and socio-environmental problems: opportunities for a complex perspective
Danielle Aparecida Reis LeiteI
I Doutora, professora/pesquisadora
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro - dani_aparecidareis@yahoo.com.br
Resumo
Ao longo dos séculos foi desenvolvida uma visão de mundo que, pautada pelo paradigma da simplificação, apresenta uma realidade cujos acontecimentos são descritos pelo determinismo, previsibilidade e linearidade. Entretanto, essa compreensão limita o entendimento do real, impedindo que avancemos no enfrentamento dos problemas postos no século XXI, aos quais enfatizamos os de natureza socioambiental. Nesse contexto, defendemos a necessidade do desenvolvimento de uma visão de mundo complexa, a fim de que possamos compreender o real a partir da incerteza, imprevisibilidade, irreversibilidade e probabilidade. Levando em consideração esses apontamentos, construímos esse trabalho que visa discutir sobre as possibilidades oferecidas pelo processo educativo para o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa, necessária para o enfrentamento dos problemas socioambientais contemporâneos. De maneira específica, apresentamos algumas considerações que justificam a aproximação entre o ensino de Física e a temática ambiental, tendo em vista que essa área do conhecimento oferece os elementos necessários para a compreensão da realidade a partir de uma visão complexa.
Palavras-chave: Complexidade; Problemas socioambientais; Educação
Abstract
Over the centuries, a world view has been developed that, based on the simplification paradigm, presents a reality whose events are described by determinism, predictability and linearity. However, this understanding limits the understanding of the real, preventing us from advancing in facing the problems posed in the 21st century, to which we emphasize those of a socio-environmental nature. In this context, we defend the need to develop a complex worldview, so that we can understand the real from uncertainty, unpredictability, irreversibility and probability. Taking these notes into consideration, we have constructed this work that aims to discuss the possibilities offered by the educational process for the development of a complex worldview, necessary for facing contemporary social and environmental problems. Specifically, we present some considerations that justify the approximation between the teaching of Physics and the environmental theme, considering that this area of knowledge offers the necessary elements for the understanding of reality from a complex view.
Keywords: Socio-environmental problems; Education; Complexity
1 Introdução
Nossa vida intelectual é decididamente mal construída. A epistemologia, as ciências sociais, as ciências do texto, todas têm uma reputação, contanto que permaneçam distintas. Caso os seres que você esteja seguindo atravessem as três, ninguém mais compreende o que você diz. Ofereça às disciplinas estabelecidas uma bela rede sociotécnica, algumas belas traduções, e as primeiras extrairão os conceitos, arrancando deles todas as raízes que poderiam ligá-los ao social ou a retórica; as segundas irão amputar a dimensão social e política, purificando-a de qualquer objeto; as terceiras, enfim, conservarão o discurso, mas irão purgá-lo de qualquer aderência indevida à realidade – horresco referens – e aos jogos de poder. O buraco de ozônio sobre nossas cabeças, a lei moral em nosso coração e o texto autônomo podem, em separado, interessar a nossos críticos. Mas se uma naveta fina houver interligado o céu, a indústria, os textos, as almas e a lei moral, isto permanecerá inaudito, indevido, inusitado (LATOUR, 2013, p. 10).
Iniciamos esse trabalho com os dizeres de Bruno Latour por considerarmos que os argumentos trazidos pelo sociólogo para justificar que “Jamais fomos modernos” denunciam a visão de mundo determinista construída ao longo dos séculos, apresentando a necessidade do desenvolvimento de um novo olhar sobre nossa realidade. O autor tece diversas críticas sobre a ciência e o seu constructo que, através de “práticas de purificação”, consolidou uma dicotomia entre a natureza e o mundo social, o que nos torna indiferentes ou até mesmo incapazes de reconhecer os “objetos híbridos”, originários da integração das ciências naturais e sociais.
Nossas reflexões, escolhas e atitudes são respaldadas por um pensamento que separa e nos instrumentaliza para lidar com as diferentes situações com as quais nos deparamos em nosso dia a dia. Compreendemos que essa visão de mundo, que limita nossos pensamentos e ações, impede que possamos, de fato, enfrentar os desafios que se colocam no mundo contemporâneo, como os de origem ambiental, por exemplo. Admitimos a insuficiência do enunciado atual da problemática ambiental que, descrevendo-a através de uma perspectiva compartimentalizada, mecânica e simplista, impede que possíveis caminhos para a superação de problemas dessa natureza sejam trilhados.
Essa compreensão compartimentalizada foi responsável por acentuar um pensamento dicotômico que separa o ser humano do meio natural. Essa dicotomia é apresentada como um dos responsáveis por reforçar a concepção antropocêntrica que, ao destacar a superioridade do ser humano em relação à natureza, o autoriza a usufruir dos seus bens a favor do bem-estar e da prosperidade social (GUIMARÃES, 2013). Esse domínio traz uma falsa sensação de segurança, já que, ao contrário do que se pensa, não é possível dominar a natureza e todos os seus fenômenos, muito menos controlar ou reverter as consequências da ação antrópica sobre o meio ambiente.
Por isso, entendemos que o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa pode contribuir para a superação desse entendimento, já que em um sistema complexo todos seus componentes interagem mutuamente, o que torna inviável a separação de um de seus integrantes do todo ou até mesmo prever comportamentos futuros ou reverter qualquer variável. Para Morin (2015a, p. 40):
Os novos conhecimentos, que nos levam a descobrir o lugar da Terra no cosmo, a Terra-sistema, a Terra-Gaia ou biosfera, a Terra-pátria dos humanos, não tem sentido algum enquanto isolados uns dos outros. A Terra não é a soma de um planeta físico, de uma biosfera e da humanidade. A Terra é a totalidade complexa físico-biológica-antropológica, onde a vida é uma emergência da história da vida terrestre. A relação do homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista, nem de forma disjuntiva.
Assim, podemos dizer que a superação de um problema de natureza complexa requer um pensamento complexo e, por isso, destacamos que uma visão de mundo complexa é imprescindível para o enfrentamento não apenas dos problemas ambientais, mas dos diferentes desafios que se colocam no contexto do século XXI. O que requer, como pontuado por Morin (2013), uma “reforma do pensamento” que, para o filósofo, pode ser viabilizada pela Educação.
No campo de pesquisa em Educação Ambiental, o processo educativo é reconhecido como um agente eficaz de transformação (CARVALHO, 2006) capaz de contribuir com a superação da Crise Ambiental. Sendo assim, destacamos as práticas educativas como um dos meios capazes de contribuir para que as concepções reducionistas e fragmentadas sejam superadas, aproximando os cidadãos de um conhecimento mais abrangente da questão ambiental. Dessa maneira, o processo educativo é apresentado como uma possibilidade para o desenvolvimento dessa visão complexa, além de contribuir para a formação de cidadãos críticos e reflexivos diante da problemática socioambiental (WATANABE-CARAMELLO, 2012). Assim como Jacobi (2006, p. 528), entendemos que:
O caminho para uma sociedade sustentável se fortalece na medida em que se desenvolvam práticas educativas que, pautadas pelo paradigma da complexidade, aportem para a escola e os ambientes pedagógicos, uma atitude reflexiva em torno da problemática ambiental, e os efeitos gerados por uma sociedade cada vez mais pragmática e utilitarista, visando traduzir o conceito de ambiente e o pensamento da complexidade na formação de novas mentalidades, conhecimentos e comportamentos.
Por outro lado, compreendemos que essa visão racionalista e disciplinar também está presente no ambiente escolar, o que apresenta a necessidade de repensar a organização e as abordagens teóricas realizadas nesse contexto. Entendemos que esse entendimento simplificador e determinista molda em muitos professores uma identidade epistemológica que – em muitos casos – ajuda a explicar a sensação de que alguns problemas específicos, como os socioambientais, por exemplo, não fazem parte do seu campo de atuação disciplinar e educativo. Contrários a esse entendimento, muitos pesquisadores do campo da Educação em Ciências e da Educação Ambiental enfatizam que o tema em questão deve receber uma abordagem transversal no ensino, capaz de traduzir a sua natureza complexa. Nesse contexto, a Física, por exemplo, é apresentada como um campo do conhecimento capaz de contribuir com o desenvolvimento dessa visão de mundo complexa, sendo responsável por revelar a natureza dinâmica, incerta, imprevisível e irreversível dos problemas socioambientais (WATANABE-CARAMELLO, 2012; REIS; SILVA; FIGUEIREDO, 2015).
Tendo em mente essas considerações, nesse artigo, fruto de uma reflexão teórica, objetivamos discutir as possibilidades oferecidas pelo processo educativo para o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa necessária para o enfrentamento dos problemas socioambientais postos na contemporaneidade. Nesse sentido, em um primeiro momento, buscamos nos campos filosófico e científico alguns indícios para compreender as origens da crise ambiental, que pode estar associada ao desenvolvimento de um pensamento determinístico. Admitindo que a ciência exerceu grande influência nas concepções de natureza desenvolvidas ao longo dos séculos, teceremos algumas reflexões sobre as visões de mundo pautadas pelo determinismo e pela complexidade. Posteriormente, apresentamos que o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa – considerada como necessária para o enfrentamento da crise ambiental e dos diversos desafios do século XXI – está associada a uma “reforma do pensamento” que, por sua vez, pode ser viabilizada pelo processo educativo.
2 As concepções sobre a natureza nos campos filosófico e científico: alguns indícios para o entendimento das origens da crise ambiental
Nas décadas de 1960 e 1970, a questão ambiental passou a compor as discussões mundiais de maneira bastante significativa. Neste período, diversas constatações apontavam para um quadro crescente e intenso de degradação do meio ambiente, caracterizando a denominada “Crise Ambiental” ou “Crise Civilizatória” (CARVALHO, 2007). Esse reconhecimento marcou profundamente o período atual com preocupações ligadas aos temas ambientais, de tal modo que diferentes grupos sociais têm voltado a sua atenção para problemas desta natureza.
Para Jacobi, Tristão e Franco (2009), essa crise ultrapassa os limites ecológicos e materiais por envolver valores, estilos de pensamento, imaginários sociais e pressupostos epistemológicos diversificados, fatores que revelam as fragilidades do conhecimento que sustenta o mundo moderno. Segundo os autores, a racionalidade cognitivo-instrumental é responsável pelo agravamento dos problemas ambientais que, disseminando o pensamento de dominação da natureza e da utilização desenfreada de seus recursos, caracteriza uma era marcada por degradações permanentes do meio ambiente. Esse cenário evidencia a complexidade do mundo real e exige que as análises simplificadoras centradas na racionalidade ocidental sejam superadas.
É nesse sentido que Silva (2007, p. 18-19) destaca que a Crise Ambiental evidencia a maneira como nos organizamos enquanto sociedade e a relação que estabelecemos com a natureza. Então, partindo de um estudo teórico o autor levantou algumas evidências que:
[...] apontavam a crise ambiental diretamente relacionada com as concepções modernas de progresso, desenvolvimento, ambiente e indivíduo. A partir dessas ideias, e apoiados em Leff (2002), começamos a perceber que a crise ambiental não poderia ser compreendida somente a partir da racionalidade vigente. A sua compreensão exige um outro pensar sobre o mundo, um pensar que postula a emergência do outro, do conhecimento não exteriorizado que nos leva a questionar o projeto da modernidade que sempre buscou a ideia totalizadora de unidade, uniformidade e homogeneidade.
Não há dúvidas de que essa crise seja resultado da relação exploratória que o ser humano mantém com a natureza ao longo dos séculos. Entende-se que o aproveitamento abusivo dos recursos naturais em favor do desenvolvimento e do bem-estar da humanidade é consequência de uma concepção antropocêntrica acentuada pela visão dicotômica que, ao separar a sociedade do meio natural, destaca a superioridade do ser humano em relação à natureza a qual é atribuída apenas um valor utilitarista. Sobre este fato, Oliveira (2011) argumenta que:
Mesmo antes da Revolução Industrial e das manifestações mais direcionadas à problemática ambiental, o ambiente foi notadamente afetado pelas atividades de diferentes grupos sociais na busca pela sobrevivência (CARVALHO, 1989). Os problemas decorrentes da vida insalubre, marcada por epidemias e doenças relacionadas à falta de saneamento na Idade Média, por exemplo, mostram que essas alterações antecedem o período histórico marcado pela Revolução Industrial, quando as manipulações do ambiente natural e os danos causados ao mesmo ficaram mais evidentes e marcaram nitidamente um novo padrão de relação entre a sociedade e a natureza. Pode-se considerar que esses novos padrões de relações são produtos do desenvolvimento científico-tecnológico das sociedades e são determinados principalmente pelo movimento de separação entre o homem e a natureza (OLIVEIRA, 2011, p. 15, grifos nossos).
Recorrendo a uma abordagem filosófica, é possível identificar as origens do pensamento que instaurou a dicotomia sociedade-natureza. Na Idade Antiga, Platão (428 a.C – 348 a.C) supera o entendimento da physis instaurada pelos pré-socráticos[1] ao enaltecer uma nova maneira de ver o mundo, apresentando ideias que revelam em seu cerne a dicotomia sujeito-objeto, corpo-alma, homem-natureza através de uma filosofia que diz respeito ao “mundo das ideias”[2] (BORHEIN, 1985). Na Idade Média, essas dicotomias são reafirmadas e é possível perceber em Santo Agostinho (354-430) as nuances daquilo que hoje entendemos ser um “valor utilitarista” atribuído à natureza, já que o meio natural era descrito pelo religioso como o responsável por garantir a sobrevivência e felicidade dos seres humanos[3]. Entretanto, segundo Cavalari (2007), essa concepção dicotômica “embora existente desde a Antiguidade Grega, [...] foi acentuada a partir da Idade Moderna, sobretudo, depois do Cogito cartesiano”. Por este motivo, para Borhein (1985) “a grande esquina” se situa no século XVII, com René Descartes (1596-1650).
Esse século, ainda marcado pela atmosfera intelectual do Renascimento, foi caracterizado pela rejeição das ideias vigentes e pelo incentivo à reconstrução das teorias no campo científico, o que foi responsável por transformar a visão de mundo do homem ocidental. O estabelecimento de um novo “método” para a ciência é acompanhado pela perspectiva empirista – proposta por Bacon (1561-1626) – e pelo enaltecimento da razão para a determinação das certezas científicas, proposto por Descartes. Nesse momento, o conhecimento deixa de ser teórico-especulativo e passa a ser prático, tornando-se inseparável da técnica.
Descartes amplia sua visão determinística e mecânica sobre o método científico para explicar os fenômenos naturais que, assim como as variáveis de um laboratório, passaram a ser compreendidos como um sistema de partículas que atuam mecanicamente, regido por leis matemáticas deterministas e por relações diretas de causa e efeito. Em consequência, todo e qualquer processo natural, isolado do seu contexto real, era decomposto e reduzido em partes simples, cuja análise das propriedades particulares resultava em conclusões gerais, o que “[...] negava a complexidade e o devir em nome de um mundo eterno e cognoscível regido por um pequeno número de leis simples e imutáveis” (PRIGOGINE; STENGERS, 1984, p. 4).
Para Descartes, a razão é a força primordial da humanidade, sendo que as ideias claras e distintas devem guiar a compreensão de o mundo construída pelo homem (PESSANHA, 1987). Por isso, a razão é o recurso que permite o homem dominar e explorar essa natureza quantificável e instrumentalizada, fato que é expresso claramente na sexta parte do “Discurso do Método”, uma de suas obras mais relevantes. Nessa passagem, o filósofo expõe que o conhecimento é uma forma de poder e dominação ao afirmar que:
[...] é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, é possível encontrar-se uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão claramente como conhecemos os vários ofícios de nossos artífices, poderíamos utiliza-los da mesma forma em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar senhores e possuidores da natureza (DESCARTES, 1987, p. 71, grifos nossos).
É a primeira vez na história que a natureza realmente passa a existir, porém de uma maneira totalmente excludente e inconcordável (BORHEIN, 1985). Por vários séculos, a ciência, a partir de uma visão racional, mecânica e técnica (denominada por muitos autores de clássica), descreveu a natureza através de leis universais cujos fenômenos, considerados imutáveis, eram caracterizados por sua causalidade, legalidade, determinismo, estabilidade e previsibilidade sendo descritos por meio de trajetórias deterministas e reversíveis no tempo (PRIGOGINE; STENGERS, 1984).
Na Física, Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1643-1727) também são citados com frequência quando se discute sobre esse assunto, principalmente porque esses cientistas elaboraram explicações para fenômenos mecânicos contribuindo para o desenvolvimento de uma visão determinística de mundo. Assim, a Mecânica Clássica, segundo Prigogine (2011, p. 115), é caracterizada como a “ciência que fundamenta nossa visão de uma natureza regida por leis deterministas e reversíveis em relação ao tempo”.
À Galileu, que alicerçado em um racionalismo matemático estabeleceu os fundamentos da Mecânica Clássica, associa-se o entendimento que revela a capacidade da ciência em desvendar a verdade global da natureza através da experimentação – ferramenta qualificada para decifrar a linguagem matemática e única de um mundo homogêneo. Para Prigogine e Stengers (1984, p. 32), a partir do entendimento galileano de que a experimentação local poderá descobrir a verdade geral, “[...] os fenômenos simples que a ciência estuda podem desde logo entregar a chave do conjunto da natureza, cuja complexidade não é mais que aparente: o diverso reduz-se à verdade única das leis matemáticas do movimento”.
Newton, através da Lei da Gravitação Universal e do Cálculo Infinitesimal, consolidou uma dinâmica duplamente universal, já que (i) determinou que a interação gravitacional entre dois ou mais corpos ocorre quaisquer que sejam suas dimensões, ou seja, são aplicáveis tanto em nível microscópio (movimento dos átomos) quanto macroscópico (movimento dos planetas e estrelas em uma galáxia); e que (ii) as leis do movimento são válidas para qualquer sistema dinâmico, tendo em vista que qualquer movimento acelerado é mantido por forças que agem sobre os diferentes pontos do sistema[4] (PRIGOGINE; STENGERS, 1984).
Por muitos séculos, as leis da Física newtoniana traduziram a descrição de um conhecimento ideal, objetivo e completo (PRIGOGINE, 2011). Dadas as condições iniciais de qualquer sistema, através das equações de movimento obtidas a partir das leis de Newton, era possível determinar com precisão as posições e velocidades dos corpos sujeitos as forças conhecidas e, ainda que essas condições fossem alteradas, o comportamento futuro desse sistema poderia ser previsto, já que a estabilidade e regularidade são as principais características de qualquer solução. Segundo as considerações de Pires (2011, p. 364):
Com base na experiência surgiu a crença de que o Universo era uma máquina estritamente determinista governada por leis imutáveis. Relembremos a afirmação de Laplace de que se o estado do Universo fosse conhecido em um dado instante, o futuro cósmico inteiro poderia ser unicamente fixado, com precisão infinita, a partir das leis de Newton. Não existiriam processos verdadeiramente aleatórios na Natureza. [...]. A Mecânica Clássica descrevia, assim, a resposta causal dos corpos às forças neles aplicadas que, por sua vez, davam origem a movimentos regulares, previsíveis e com trajetórias geometricamente simples.
Essa perspectiva conquistou uma abrangência significativa ao longo de vários séculos e, por nutrir um sentimento de confiança e certeza, destacou-se dentre a comunidade científica. Pode-se dizer que essa visão adquiriu um grande prestígio, já que, através das leis e equações gerais marcadas pelo rigor matemático, contribuiu de forma efetiva para a sistematização dos conhecimentos antes obscuros (WATANABE-CARAMELLO, 2012).
Entretanto, a ciência contemporânea ultrapassa esse entendimento ao revelar um mundo complexo marcado pelas incertezas, probabilidades e irreversibilidade. Além disso, constituindo um sistema complexo, sociedade e natureza deixam de ser classificadas hierarquicamente em relação aos demais elementos. Nesse sentido, no próximo item serão exploradas as principais características dessa compreensão de mundo que revelam algumas possibilidades para o enfrentamento da Crise Ambiental.
3 Da perspectiva determinista à complexidade: possibilidades oferecidas pela Física do não-equilíbrio
Alguns séculos mais tarde, as ideias que caracterizavam o comportamento determinístico e mecânico do universo foram questionadas pelo campo científico. Pode-se dizer que no século XX, a ciência alcança novas fronteiras que contribuíram para o desenvolvimento de um novo entendimento da realidade. Com a Mecânica Quântica e a noção de caos, constata-se que as flutuações observadas em diversos processos físicos são inerentes à natureza, o que causou um grande impacto na ciência (PIRES, 2011).
O advento da Mecânica Quântica – na qual destacamos os trabalhos de Niels Bohr (1885-1962), Werner Heisenberg (1901-1976) e Erwin Schrödinger (1887-1961) – e a teoria da relatividade restrita e geral de Einstein (1879-1955), perturbaram algumas das certezas postas pela mecânica newtoniana (como a ordem, a separabilidade, a redução e a lógica indutiva-dedutiva), desvendando um mundo cercado pela descontinuidade, acaso e incerteza.
Em linhas gerais, podemos dizer que o modelo atômico proposto por Bohr impulsionou o surgimento de uma série de estudos posteriores que fortaleceram a Mecânica Quântica. A partir do estudo do átomo de Hidrogênio, Bohr formulou alguns postulados[5] que atribuíam uma nova orientação ao modelo atômico e, através deste, foi possível reproduzir os seus espectros.
Heisenberg, motivado a estudar e explicar a alternância das linhas espectrais do átomo de Hidrogênio de Bohr, foi o responsável por estabelecer as “relações de incerteza” que indicam, ao contrário da mecânica newtoniana, a impossibilidade de determinar, simultaneamente e com precisão, a posição e a componente momentum de um objeto quântico (RIBEIRO FILHO, 2002).
Schrödinger determinou a equação fundamental da Teoria Quântica não Relativística, uma famosa formulação matemática que inaugurou a Mecânica Ondulatória e que é responsável por descrever as ondas de matéria e possui como solução a função de onda. A incerteza e a indefinição foram assumidas como características intrínsecas ao mundo quântico e, a partir dessa interpretação, a Teoria Quântica foi caracterizada como probabilística tendo em vista que a função de onda, que representa o estado de uma partícula quântica, possibilita apenas determinar a probabilidade de encontrá-la em um certo ponto do espaço (RIBEIRO FILHO, 2002).
Os fenômenos que antes eram descritos pela Física através de trajetórias delimitadas e previsíveis, a partir desse novo entendimento passaram a ser associados à probabilidade e à incerteza. Com isso, Prigogine (2011, p. 198) destaca que, em decorrência das flutuações e instabilidades, a certeza cede seu lugar para a possibilidade, fazendo com que “o futuro não seja dado” e que, por isso, “vivemos o fim das certezas”. Nesse sentido, é factível afirmarmos que nos depararmos com instabilidades e bifurcações no mundo real é uma regra e não uma exceção, inaugurando um horizonte com novas possibilidades de interpretação do real.
No entanto, o determinismo temporal ainda continuou sendo válido para a Mecânica Quântica, da mesma forma que na Mecânica Clássica newtoniana. Prigogine (2011) cita a equação fundamental de Schrödinger como um exemplo clássico dessa constatação, já que, da mesma maneira que as equações clássicas do movimento, essa equação pode ser reversível em relação ao tempo. Conhecendo as condições iniciais, essas leis garantem a previsão de comportamentos futuros e a retroação ao passado, sendo a maior diferença o fato de que, enquanto na Mecânica Clássica é possível observar as trajetórias, na Mecânica Quântica a função de onda não é observável. Conforme elucidado pelo autor, “o tempo tal como foi incorporado nas leis fundamentais da Física, da dinâmica clássica newtoniana até a relatividade e a física quântica não autoriza nenhuma distinção entre passado e futuro” (PRIGOGINE, 2011, p. 10).
Ainda segundo o autor anteriormente referenciado, a questão do tempo recebe outro enfoque quando analisada a partir Física de não equilíbrio que relacionada à “[...] dinâmica dos sistemas dinâmicos instáveis e à ideia de caos, força-nos a revisar a noção de tempo tal como é formulada desde Galileu” (PRIGOGINE, 2011, p. 11).
Prigogine e Stengers (1984, p. 98) destacam que a Termodinâmica pode ser considerada “a base da ciência do complexo”, já que seus estudos envolvem um número muito grande de partículas e de sistemas que, longe do equilíbrio, remetem à instabilidade e todas as características decorrentes desta, das quais discutimos anteriormente. A partir desse enfoque, o olhar para os processos dissipativos em sistemas dinâmicos e instáveis, levou a comunidade científica a revisar a ideia da reversibilidade dos fenômenos tal como formulada a partir da concepção determinista da mecânica newtoniana.
Enquanto que a Primeira Lei da Termodinâmica trata da conservação de energia, na Segunda é possível identificar os elementos imprescindíveis para a compreensão da irreversibilidade dos fenômenos naturais. O Segundo Princípio revela que, constatada a impossibilidade da conversão integral de certa quantidade de calor em trabalho, verifica-se que parte dessa energia será dissipada, ocasionando a evolução do sistema. Essa evolução, que implica no aumento da desordem e que conduz ao equilíbrio térmico, é medida pelo grau de entropia do sistema. Em um sistema fechado, a entropia sempre tende a aumentar.
Assim, a degradação da energia durante esse processo de conversão impede a reversibilidade do sistema. Dessa maneira, a Segunda Lei da Termodinâmica insere a noção de “flecha do tempo” que quebra a simetria temporal, contribuindo para a transformação da visão que se possuía sobre a reversibilidade dos fenômenos naturais. Em outras palavras, Prigogine (2011, p. 11) esclarece que:
A física de não equilíbrio estuda os processos dissipativos, caracterizados por um tempo unidirecional, e, com isso, confere uma nova significação à irreversibilidade. [...] a irreversibilidade não pode mais ser identificada como uma mera aparência que desapareceria se tivéssemos acesso a um conhecimento perfeito. Ela é uma condição essencial de comportamentos coerentes em populações de bilhões e bilhões de moléculas.
Dessa maneira, Prigogine (2002) destaca o papel da entropia e da Física de não equilíbrio para o entendimento de uma característica fundamental e intrínseca à estrutura do universo: a irreversibilidade. Embora a descrição microscópica do universo seja feita por meio de sistemas dinâmicos instáveis, o desafio que se coloca é a ruptura com a simetria temporal no nível macroscópico.
Apesar de em um primeiro momento ter-se considerado que a irreversibilidade postulada pela Termodinâmica era incompatível com as leis reversíveis da dinâmica newtoniana (PRIGOGINE, 2002), a inserção da seta do tempo e a análise dos sistemas instáveis a nível estatístico modifica o entendimento dos fenômenos naturais, já que tais fenômenos não são mais descritos unicamente por trajetórias fixas e funções de onda, mas sim por probabilidades (PRIGOGINE, 2011).
Prigogine e Stengers (1984, p. 5) consideram que, a partir dessas constatações, a ciência passa “por um progresso teórico” – que os autores não hesitam em chamar de metamorfose – resultado de uma transformação da concepção clássica de mundo que, deixando de interpretá-lo através das leis determinísticas universais e reversíveis, abre espaço para a existência de um universo complexo, rico em diversidades e incertezas. Consequentemente, descobre-se “[...] que o diálogo racional com a natureza não constitui mais o sobrevoo desencantado dum mundo lunar, mas a exploração, sempre local e eletiva, duma natureza complexa e múltipla”.
De certa maneira, podemos dizer que o surgimento de preocupações desse tipo também está diretamente associado com a transformação dos próprios objetos de interesse das ciências naquele momento. Em outras palavras, percebeu-se que características como a imutabilidade dos fenômenos naturais, associadas à estabilidade, certeza, previsibilidade e reversibilidade, não eram suficientes para descrever e compreender todo e qualquer acontecimento:
No mundo que nos cerca, constatamos a existência de objetos que obedecem a leis clássicas deterministas e reversíveis, mas correspondem a casos simples, quase exceções, como o movimento planetário de dois corpos. De resto, dispomos de objetos a que se aplica o segundo princípio da termodinâmica; eles são, aliás, a imensa maioria (PRIGOGINE, 2002, p, 82).
Corroborando essas considerações, Prigogine e Stengers (1984, p. 5) afirmam que:
Não estamos mais no tempo em que os fenômenos imutáveis prendiam a atenção. Não são mais as situações estáveis e as permanências que nos interessam antes de tudo, mas as evoluções, as crises e as instabilidades. Já não queremos estudar apenas o que permanece, mas também o que se transforma, as perturbações geológicas e climáticas, a evolução das espécies, a gênese e as mutações das normas que interferem nos comportamentos sociais.
Consequentemente, a simplicidade, a ordem e a regularidade são incorporadas em uma “moldura epistemológica mais ampla”, caracterizada pela complexidade, desordem e o caos (FIEDLER-FERRARA, 2003). Segundo Morin (2015b, p. 14):
O próprio desenvolvimento da ciência física, que se consagrava a revelar a Ordem impecável do mundo, seu determinismo absoluto e perpétuo, sua obediência a uma Lei única e sua constituição de uma forma original simples (o átomo) desembocou finalmente na complexidade do real. Descobriu-se no universo físico um princípio hemorrágico de degradação e de desordem (segundo princípio da termodinâmica); depois, no que se supunha ser o lugar da simplicidade física e lógica, descobriu-se extrema complexidade microfísica; a partícula não é um primeiro tijolo, mas uma fronteira sobre uma complexidade talvez inconcebível; o cosmos não é uma máquina perfeita, mas um processo em vias de desintegração e de organização ao mesmo tempo.
É possível afirmar que esse cenário propiciou o “advento” da complexidade. Morin (2015b) descreve que a complexidade pode ser concebida como um tecido de constituintes heterogêneos e inseparavelmente associados, sendo que a interação entre estes constituintes gera distintos acontecimentos, ações, retroações, determinações e acasos, o que caracteriza a dinamicidade do nosso universo. De acordo com esta definição, toda a realidade conhecida é concebida como um sistema, ou seja, a associação combinatória de elementos diferentes. Essa associação é caracterizada como interdependente, em que pequenas modificações em um dos elementos podem causar grandes mudanças no sistema como um todo, o que caracteriza a ideia de sistema aberto.
Entretanto, de acordo com Fiedler-Ferrara (2003), depois de vários séculos de “hegemonia cartesiana”, a ciência deverá enfrentar uma mudança de paradigma tendo em vista que o pensar complexo ainda não constitui o pensamento científico deste século. Para o autor, essa mudança paradigmática é necessária, já que a ciência da atualidade não atende às necessidades do mundo contemporâneo, que se deve a: (i) especialização, que limita a criatividade humana, (ii) seu distanciamento do real, que nega a complexidade, (iii) desarticulação com os problemas reais da humanidade, como os sociais e ambientais e a (iv) preocupação de muitos cientistas pelo prestígio pessoal e pelo angariamento de recursos para seus projetos.
O pesquisador justifica a emergência dessa mudança de paradigma levando em consideração a gravidade dos problemas de diferentes naturezas com os quais convivemos na atualidade que podem ser superados com o auxílio do pensar complexo. Ou seja, o enfrentamento de desafios complexos requer o desenvolvimento de um olhar complexo.
De maneira especial, consideramos que o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa é necessária para o enfrentamento dos problemas socioambientais. Entendemos que essa visão complexa contribui para que possamos agir de acordo com o princípio da precaução, já que a incorporação das incertezas no tratamento das questões ambientais e o reconhecimento da irreversibilidade desses fenômenos exige que desenvolvamos essa postura a fim de prevenir a consumação de possíveis impactos futuros. Morin (2015b, p. 83) destaca que:
A complexidade não é uma receita para conhecer o inesperado. Mas ela nos torna prudentes, atentos, não nos deixa dormir na aparente mecânica e na aparente trivialidade dos determinismos. Ela nos mostra que não devemos nos fechar no “contemporaneísmo”, isto é, na crença de que o que acontece hoje vai continuar indefinidamente. Por mais que saibamos de tudo o que aconteceu de importante na história mundial ou em nossa vida era totalmente inesperado, continuamos a agir como se nada de inesperado devesse acontecer daqui para frente. Sacudir essa preguiça mental é uma lição que nos oferece o pensamento complexo.
Nesse sentido, concordamos com Fiedler-Ferrara (2003) que esse cenário solicita uma mudança da nossa própria concepção de realidade. Mais do que técnicos e especialistas competentes ou intelectuais brilhantes (aos quais sempre designamos o poder de tomar as decisões sobre a nossa vida), devemos nos preocupar com a formação de cidadãos que efetivamente participem das discussões relativas ao enfrentamento dos desafios cotidianos. Por isso:
E nesse sentido que devemos trabalhar e educar as novas gerações. Nossos esforços devem ser na direção da construção de um novo paradigma – seja ele o complexista ou qualquer outro ao qual nos conduzamos através do processo histórico-cultural – que colabore para a felicidade e a harmonia dos seres numa relação de amor recíproco e pela natureza. Contudo, estejamos cientes de que esse processo histórico-cultural é produzido a partir de nossas ações. Por isso, fiquemos atentos a elas e à nossa responsabilidade (FIEDLER-FERRARA, 2003, p. 18).
A partir desse posicionamento, no próximo item teceremos algumas considerações sobre o papel da educação para o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa. De maneira especial, nos apoiaremos no posicionamento retratado por Edgar Morin que, no conjunto de sua obra, retrata a importância da educação para a construção de um olhar complexo sobre a realidade.
4 A “reforma do pensamento”: o papel da educação para o desenvolvimento do pensamento complexo
Morin (2013) apresenta uma série de argumentos que revelam os desafios postos para compreender o mundo na atualidade. Vivemos em uma “era planetária” que se manifesta através da interação, disputas e contradições existentes entre fenômenos sociais, políticos, econômicos, religiosos, étnicos, demográficos, científicos marcados por uma disputa de interesses, constituindo, assim, uma realidade complexa cujos componentes interagem em uma organização sistêmica de escalas locais a globais.
Por outro lado, nossa visão de mundo ainda retrata uma realidade determinista, pautada por concepções lineares e simplificadoras, que “[...] consideram os fenômenos vivos e sociais a partir de uma causalidade linear e de uma concepção mecanicista/determinista que vale unicamente para as máquinas artificiais” (MORIN, 2013, p. 19). Por esses motivos, essa “concepção simplista” considera o presente e passado como conhecidos e, a partir de projeções, reguladas por uma causalidade linear, o futuro pode ser previsto (MORIN, 2015b). Nossa visão de mundo ainda obedece ao paradigma[6] da simplificação, sistematizado pela disjunção e pela redução, sendo que o mesmo está culturalmente inscrito em nossa sociedade, normatizando nossos pensamentos e ações. Para Morin (2015b):
O paradigma simplificador é um paradigma que põe ordem no universo, expulsa dele a desordem. A ordem se reduz a uma lei, a um princípio. A simplicidade vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução) (MORIN, 2015b, p. 59)
A ideia de que o todo pode ser separado de suas partes e que as partes podem ser separadas do todo, garante, inclusive, a reafirmação de dicotomias (como aquela que desassocia a sociedade da natureza), o que é responsável por gerar uma visão simplificadora do universo, distanciando as dimensões física, biológica, antropossociológica.
Essa visão determinística pautada por esse paradigma acarretou muitas adversidades, sendo que uma das mais significativas foi a instauração de um pensamento que valoriza cada vez mais as especificidades, o que conduziu a fragmentação dos saberes em campos compartimentalizados. Segundo as considerações de Morin (2013; 2015a), essa compartimentalização é acentuada pela cisão entre a cultura humanista e a cultura científica. Enquanto a primeira volta-se exclusivamente para a reflexão de problemas humanos fundamentais a partir de uma perspectiva que visa “alimentar a inteligência geral” e estimular a reflexão sobre o saber e os desafios enfrentados pela humanidade, a segunda vem construindo um pensamento segmentado, que exclui o sujeito da produção do conhecimento científico e visa medir, controlar e verificar o objeto a ser estudado. Nesse sentido, a ciência se pauta em um pensamento racionalista, instrumental, monológico e dominador, ignorando as múltiplas dimensões do ser humano nesse processo.
Essa ruptura valoriza o conhecimento científico em detrimento do conhecimento social, desconsiderando que a ciência é formulada em um contexto histórico, em que fatores sociais, políticos, econômicos, religiosos, éticos, influenciam de maneira direta o seu desenvolvimento. No âmbito científico, há uma priorização cada vez mais frequente dos saberes fragmentados e compartimentalizados, partindo-se do entendimento de que a realidade poderá ser compreendida de maneira mais efetiva por uma visão que separa a parte do todo, analisando suas especificidades. Consequentemente, esse princípio contribuiu para a fragmentação dos conjuntos complexos (como a natureza e o ser humano) em diferentes compartimentos, culminando na compartimentalização disciplinar, responsável por gerar a especialização e a hiperespecialização.
Para Morin (2015a), essa hiperespecialização, se fecha em si mesma e, além de fragmentar o todo em parcelas, impossibilita a integração de uma problemática específica em seu contexto global, impedindo que a vejamos em sua totalidade. Isso limita as possibilidades de compreensão e de reflexão dos problemas planetários, já que “[...] todos os problemas particulares só podem ser posicionados e pensados corretamente em seus contextos; e o próprio contexto desses problemas deve ser posicionado, cada vez mais, no contexto planetário” (MORIN, 2015a, p. 14). Assim, somos incapazes de enxergar a realidade a partir da sua multidimensionalidade e de refletir sobre a crise e os problemas planetários, sendo que, na concepção de muitos, essa crise nem mesmo existe.
Outra consequência é que o conhecimento se torna cada vez mais restrito aos experts, considerados os únicos aptos a tomarem decisões pela população a partir de conhecimentos técnicos e especializados e, assim, retira-se dos cidadãos o direito de pensar e opinar sobre seu contexto (MORIN, 2015a). Para Morin, isso constitui um paradoxo, já que todo o avanço científico e tecnológico que produz a cada dia uma vasta quantidade de conhecimento tem provocado a ignorância e a cegueira dos cidadãos em virtude do fechamento, especialização e fragmentação do saber, sendo que é praticamente impossível democratizar um conhecimento tão fechado. Sendo assim, o que se coloca é o desafio de enfrentar a “[...] complexidade do real, isto é, de perceber as ligações, interações e implicações mútuas, os fenômenos multidimensionais, as realidades que são, simultaneamente, solidárias e conflituosas” (MORIN, 2013, p. 76-77) e de possibilitar que os cidadãos tenham acesso a esse conhecimento e que possam utilizá-lo na tomada de decisões diárias.
Por isso, o autor defende a necessidade de que ocorra uma revolução do pensamento atual, sendo que esse entendimento deve propiciar o desenvolvimento de um pensamento complexo[7] que revela uma “causalidade circular e multirreferencial”. A complexidade configura-se como o entendimento de uma realidade pautada pela instabilidade, probabilidade e a incerteza, que constitui um sistema complexo, composto por diferentes variáveis e que interatuam de maneira irregular e contínua. Sendo assim:
O complexo requer um pensamento que capte relações, inter-relações, implicações mútuas, fenômenos multidimensionais, realidades que são simultaneamente solidárias e conflitivas [...], que respeite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade, um pensamento organizador que conceba a relação recíproca entre todas as partes. [...] Se todas as coisas são causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e mantidas por uma ligação material e insensível que as sujeitam, torna-se impossível conceber as partes sem conceber o todo e tampouco o todo sem conceber as partes (MORIN, 2013, p. 22).
Porém, conforme é destacado por Morin (2013), o pensamento complexo não pode ser simplesmente aprendido e, por isso, defende a ideia de uma “reforma do pensamento”. De acordo com o filósofo, essa reforma é vital para os cidadãos deste milênio ao passo que possibilitará o uso pleno de suas aptidões mentais, o que não seria a única, mas uma condição sine qua non para enfrentarmos essa barbárie.
Para o autor, um dos principais meios que podem contribuir para a reforma do pensamento é a educação. Entretanto, isso exige, antes de tudo, uma reforma da própria estrutura do sistema educativo, já que o mesmo é pautado em isolamentos e fragmentações do conhecimento de acordo com o “paradigma da simplificação”. Morin apresenta que a estrutura disciplinar das diferentes modalidades de ensino é um dos obstáculos para religar e reaproximar o que é concebido de maneira desarticulada, sedimentada e até mesmo repulsiva:
Nossa formação escolar e, mais ainda, a universitária nos ensina a separar os objetos de seu contexto, as disciplinas, uma das outras para não ter que relacioná-las. Essa separação e fragmentação das disciplinas é incapaz de captar “o que está tecido em conjunto”, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo (MORIN, 2013, p. 18).
Essa cisão e fragmentação de saberes compartimentalizados em disciplinas não condiz com uma realidade permeada por problemas cada vez mais polidisciplinares, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários (MORIN, 2015a). Nesse sentido, o autor considera que o ensino pautado em disciplinas isoladas dificulta a compreensão das inter-relações estabelecidas entre o todo e a parte e, por isso:
Devemos, pois, pensar o problema do ensino, considerando, por um lado, os efeitos cada vez mais graves da compartimentalização dos saberes e da incapacidade de articulá-los, uns aos outros; por outro lado, considerando que a aptidão para contextualizar e integrar é uma qualidade fundamental da mente humana, que precisa ser desenvolvida, e não atrofiada (MORIN, 2015a, p. 16)
No caso específico dessa investigação, reconhecemos que esse argumento justifica a nossa intenção de reafirmar as relações que podem ser estabelecidas entre a Física e a questão socioambiental. Assim como Carvalho (2012, p. 132), destacamos que “os problemas ambientais ultrapassam a especialização do saber”, o que requer o envolvimento de conhecimentos das mais diversas áreas que, a partir de uma abordagem que reúne as compreensões sobre os processos biológicos, geográficos, históricos, econômicos e sociais que estão por trás dessas questões, “[...] atuam em conjunto e buscam formas interdisciplinares de cooperação entre si e de compreensão da realidade”.
Entretanto, para o alcance desse pensamento complexo não basta abrir as fronteiras que separam esses conhecimentos, mas sim transformá-las. Consequentemente, Morin destaca a necessidade da busca de um conhecimento que respeite as individualidades sem separá-las do todo e, assim, destaca que “A reforma necessária do pensamento é aquela que gera um pensamento do contexto e do complexo. O pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as inter-retroações entre qualquer fenômeno e seu contexto, e deste com o contexto planetário” (MORIN, 2013, p. 22).
Morin (2013) centra parte de suas discussões apresentando diversos motivos que justificam a reforma das Universidades, entretanto, ao considerar que o pensamento complexo não pode ser “aprendido”, mas sim construído, destaca que a reforma do ensino deve valorizar todas as etapas do desenvolvimento humano e, por isso, deve iniciar-se desde o ensino primário. De acordo com as considerações do autor, esta etapa do ensino deve valorizar e incentivar a curiosidade infantil e “ciências e disciplinas estariam ligadas, ramificadas umas com as outras, e o ensino poderia representar uma ponte entre os conhecimentos parciais e um conhecimento em movimento do global” (MORIN, 2013, p. 25). O ensino secundário deve evidenciar o diálogo entre a cultura das humanidades e a cultura científica “não apenas levando em conta uma reflexão sobre conhecimento adquirido e o futuro das ciências, mas também considerando a literatura como escola e experiência de vida” (MORIN, 2013, p. 25). Na Universidade, deve ocorrer uma reforma institucional em que os Departamentos ou Institutos dedicados às ciências passem a privilegiar uma reintegração polidisciplinar em torno de um núcleo organizador sistêmico, onde problemas transdisciplinares[8] devem ser evidenciados.
O sistema educativo deve, então, valorizar a aptidão interrogativa, já que a criticidade nasce da dúvida que estimula o desenvolvimento de um pensamento lógico e argumentativo. Diante dessas considerações, Morin (2015a) destaca que, ao invés de uma “cabeça bem cheia”, o sistema educativo deve valorizar uma “cabeça bem-feita”, ou seja, de nada vale o acúmulo estéril de informações e conhecimentos compartimentalizados se o indivíduo não é capaz de utilizá-los no tratamento dos problemas com os quais convive cotidianamente e de situá-los em uma realidade complexa, dando certo sentido aos saberes que possui. Assim, Morin apresenta alguns princípios que possibilitariam a formação de uma “cabeça bem-feita”:
Assim, podemos imaginar os caminhos que permitiriam descobrir, em nossas condições contemporâneas, a finalidade da cabeça bem-feita. Tratar-se-ia de um processo contínuo ao longo dos diversos níveis de ensino, em que a cultura científica e a cultura das humanidades poderiam ser mobilizadas. Uma educação para a cabeça bem-feita, que acabe com a disjunção entre as duas culturas, daria capacidade para se responder aos formidáveis desafios da globalidade e da complexidade na vida cotidiana, social, política, nacional e mundial. É imperiosamente necessário, portanto, restaurar a finalidade da cabeça bem-feita, nas condições e com os imperativos próprios de nossa época (MORIN, 2015a, p. 33)
Então, o desenvolvimento da habilidade de contextualizar e globalizar os saberes passa a ser impreterível para a educação. Nesse sentido, a promoção da transdisciplinaridade contribuiria para a complexificação do conhecimento, tornando as práticas pedagógicas abertas ao diálogo.
Morin (2013, 2015b) destaca que são três os princípios que devem acompanhar essa reforma pensamento: (i) além do rompimento com a concepção de uma causalidade linear que deve dar espaço uma causalidade espiral (em que os efeitos e produtos interagem de maneira constante e passam a ser considerados causadores e originadores em uma teia de relações complexa), destaca (ii) o princípio que revela a necessidade do desenvolvimento de uma visão dialógica que permite a aproximação de princípios que parecem opor-se uns aos outros e (iii) o princípio hologramático que faz referência ao entendimento de que a parte constitui o todo ao mesmo tempo em que o todo constitui a parte.
Essa reforma da educação torna-se, assim, indispensável já que a reformulação do pensamento dela decorrente apresenta uma “necessidade social-chave” ao possibilitar o alcance de uma “democracia cognitiva”, ou seja, a formação de cidadãos críticos e conscientes, capazes de enfrentar os problemas de seu tempo, favorecendo “[...] a capacidade de refletir, de meditar sobre o saber e, eventualmente, integrá-lo em sua própria vida para melhor esclarecer sua conduta e o conhecimento de si” (MORIN, 2013, p. 60).
5 Conclusões
Nesse trabalho, fruto de uma reflexão teórica, procuramos discutir sobre as possibilidades oferecidas pelo processo educativo para o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa, necessária para o enfrentamento dos problemas socioambientais postos na contemporaneidade. A partir da abordagem teórica realizada, foi possível identificar as origens da visão de mundo pautada pelo determinismo e simplificação e, assim, evidenciamos as contribuições da Física do não-equilíbrio para o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa.
Entendemos que essa abordagem possa ser uma possibilidade para aproximarmos a temática ambiental e a Física. Dessa maneira, o ensino de Física na educação básica oferece diferentes oportunidades para o trabalho didático com a temática ambiental, já que esta área do conhecimento oferece diferentes aportes para a análise da questão socioambiental sob o ponto de vista da complexidade. A complexidade configura-se como um elo que une essas duas “áreas” que, em um primeiro momento, parecem estar tão distantes.
A questão socioambiental requer um olhar complexo que, além de possibilitar uma análise abrangente dos problemas dessa natureza, solicita o desenvolvimento de uma postura crítica e fundamentada nas mais diversas situações que requerem a tomada de decisão. Esse tema requer uma análise de um ponto de vista complexo tanto para o entendimento do meio físico (já que os fenômenos naturais ocorrem em um sistema complexo ao qual se associa a instabilidade, probabilidade e irreversibilidade) quanto para o entendimento do meio social (a partir das relações estabelecidas entre a política, economia, ciência, tecnologia e cultura nesse cenário).
Levando em consideração os argumentos de Morin que apresentam as potencialidades dos espaços educativos para o desenvolvimento de uma visão de mundo complexa, nesse trabalho destacamos que seja promovida uma Educação Ambiental que além de possibilitar o desenvolvimento da postura crítica, deva incorporar aspectos da complexidade. São esses posicionamentos que justificam, inclusive, a necessidade de que as práticas educativas de EA recebam um enfoque transversal e é nesse sentido que nos esforçamos em estabelecer as contribuições do ensino de Física para o desenvolvimento de atividades de Educação Ambiental.
Porém, cabe destacar que entendemos que as ideias aqui expostas indicam que a complexidade constitui um desafio e não uma solução pronta e acabada para o destino do mundo. Outro aspecto que merece destaque relaciona-se com o fato de que a educação não deve ser considerada a solução para todas as limitações impostas pelo paradigma da simplificação. Afirmações deste tipo fundamentam-se em um pensamento simplificador e apresentam-se como um obstáculo para o desenvolvimento dessa visão complexa.
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[1] Os pré-socráticos são assim denominados já que viveram por volta do século VI a.C em um momento histórico anterior ao de Sócrates (470 a.C – 399 a.C). Foram esses filósofos que estabeleceram “a primeira tentativa de pensar racionalmente a natureza dando os primeiros passos para o abandono de um padrão de submissão a uma natureza dada, dominadora e inquestionável” (BORHEIN, 1985, p. 17). Para a compreensão do pensamento pré-socrático sobre a natureza, é necessário entender o que esses filósofos denominaram de physis. Os pré-socráticos entendiam que a physis compreendia em si tudo o que existe, abrangendo tudo o que é primário, fundamental e persistente, como “o céu e a terra, a pedra, a planta, o animal e o homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses”, ou seja, “a physis compreende a totalidade daquilo que é” (BORHEIN, 1972, p. 14). Nesse sentido, incomodava aos pré-socráticos determinar a arché (princípio de tudo o que vem a ser) da physis. Segundo Cavalari, Campos e Carvalho (2001, p. 16) “A partir da amplitude e da radicalidade do conceito de physis, os pré-socráticos puderam elaborar uma concepção de natureza extremamente abrangente, que vai muito além do conceito que temos hoje de natureza”. Dessa maneira, embora as preocupações desses filósofos estivessem voltadas em elencar explicações racionais para os fenômenos naturais observados, inclusive para a origem humana, o ser humano era compreendido como parte constituinte da physis.
[2] Nessa teoria, o filósofo considera que o mundo material, a natureza e tudo que a constitui (o que foi chamado de mundo sensível) seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias dos modelos e paradigmas oriundos do mundo das ideias (mundo inteligível). Portanto, o “mundo das ideias” seria fonte do conhecimento verdadeiro e causa necessária de tudo o que existe; o que determina o grau de perfeição de tudo que constitui o mundo sensível é a sua maior ou menor identificação com os modelos presentes no mundo inteligível. Desta forma, para Platão a existência de um Belo em si, um Bom em si ou um Grande em si, seria o fator determinante das características que observamos nos objetos que constituem o mundo sensível. Através da instauração dessa dicotomia, o homem ganha destaque na filosofia platônica, já que a verdade não é mais estabelecida a partir daquilo que é dado pelo meio natural e considerada inquestionável. Essa verdade surge da relação que é estabelecida entre o sujeito e o objeto. Segundo Borhein (1985, p. 18), essa relação é essencial para o entendimento do vínculo que o homem passa a estabelecer com a natureza, já que a exaltação desse sujeito “instaura um vagaroso, mas incoercível processo através do qual a verdade será sempre mais definida como o campo dominável – construído e mesmo criada – pelo homem”.
[3] Ao contrário de Platão ou dos Pré-Socráticos, Santo Agostinho julgava que a origem de tudo, inclusive da natureza, associava-se a uma figura divina, considerada por ele como “o supremo e infinito bem, sobre o qual não há outro: é o bem imutável e, portanto, essencialmente eterno e imortal”. Porém, embora o homem e a natureza fossem construídos a partir da bondade de Deus, o ser humano, elaborado a sua imagem e semelhança, é dotado de razão e por isso, superior à natureza, o que justifica o fato da mesma ser considerada responsável por garantir a sua sobrevivência e felicidade. Um dos meios para alcançar a felicidade está relacionado ao consumo desses bens com cautela e resignação (RAMOS, 2010).
[4] Trata-se da Segunda Lei de Newton: F=m.a. Prigogine (2011) considera essa lei um “exemplo por excelência” do determinismo por sua reversibilidade no tempo, já que, conhecendo as condições iniciais de um sistema submetido a essa lei, é possível calcular os estados subsequentes e precedentes a esse momento, mostrando que passado e futuro desempenham sempre o mesmo papel.
[5] (i) O elétron ocupa estados estacionários que são órbitas circulares específicas, sendo que, em cada uma delas, ele possui uma energia constante; (ii) o elétron possui valores determinados de energia que correspondem às órbitas permitidas; (iii) ao permanecer em uma dessas órbitas, o elétron não recebe ou perde energia de maneira espontânea; (iv) o elétron recebe energia de uma fonte externa apenas em pacotes discretos; (v) ao receber um quantum de energia, o elétron atinge um estado excitado e realiza um salto quântico; (vi) ao retornar a uma órbita de menor energia, o elétron perde uma quantidade de energia.
[6] Thomas Kuhn (1997, p. 13) define um paradigma como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Entretanto, Morin apresenta uma definição distinta daquela apresentada por Kuhn e explica que um paradigma é “um tipo de relação lógica (indução, conjunção, disjunção, exclusão) entre certo número de noções ou categorias mestras. Um paradigma privilegia certas relações lógicas em detrimento de outras, e é por isso que um paradigma controla a lógica do discurso” (2015b, p. 112). Para o filósofo, o paradigma da simplificação domina as nossas visões sobre a realidade, nas quais imperam concepções reducionistas relacionadas com a simplificação, separabilidade e previsibilidade.
[7] Na perspectiva de Edgar Morin, um pensamento complexo é um pensamento unificador que se insere em um contexto planetário. Nesse sentido, os acontecimentos, informações ou conhecimentos são situados a partir de uma visão de inseparabilidade com o meio em que está inserido, o qual é permeado por aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos. Em outras palavras, o pensamento complexo busca pelas relações e inter-retroações dos fenômenos com o seu contexto, das relações do todo com as partes, reconhecendo “a unidade dentro da diversidade, o diverso dentro da unidade; de reconhecer, por exemplo, a unidade humana em meio às diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais em meio à unidade humana” (MORIN, 2015, p. 25).
[8] Para Morin, a transdisciplinaridade, fruto do paradigma da complexidade, caracteriza o intercâmbio e as articulações entre as disciplinas das diferentes áreas do conhecimento. Nesse caso, as fronteiras que separam o saber, delimitando o conhecimento a territórios restritos e fragmentados, são superadas, o que é responsável por promover a construção de um saber uno que é composto por aspectos de diferentes naturezas. Morin (2015a) apresenta exemplos de algumas áreas de conhecimento que surgiram a partir da segunda revolução científica do século XX e que buscam ligar, contextualizar e globalizar os saberes, ou seja, que são transdisciplinares. Essas “novas ciências”, tais como a Ecologia (preocupa-se com o estudo de um ecossistema que é compreendido como um sistema complexo e recorre a múltiplas disciplinas para seu estudo, além de recorrer às ciências humanas para analisar as interações entre o mundo humano e a biosfera), ciências da Terra (que percebem nosso planeta como um sistema complexo que se autoproduz e se auto organiza, articulando-se a disciplinas como Geologia, Metereologia, Vulcanologia e Sismologia) e Cosmologia (parte do entendimento do universo como um sistema complexo em que, para o conhecimento do cosmo, a articulação entre a astrofísica e a microfísica é essencial) são apresentadas pelo filósofo como integradoras, já que tomam sistemas complexos como objeto de estudo.